quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

«Lugar-comum do quadragenário» Poema de José Saramago escrito nos seus quarenta anos

(Quadro de João Amaral, realizado em aguarela - 2015)


17 de Outubro (1993)

"Javier e María «inauguraram» ontem a sua casa, festejando ao mesmo tempo o recente aniversário de Javier, 41 anos, uma mocidade. (Ao escrever este número lembrei-me, subitamente, de que por essa mesma idade escrevi um poema, «Lugar-comum do quadragenário», que não resisto a transcrever aqui. Era assim: 

Quinze mil dias secos são passados, 
Quinze mil ocasiões que se perderam, 
Quinze mil sóis inúteis que nasceram, 
Hora a hora contados 
Neste solene, mas grotesco gesto 
De dar corda a relógios inventados 
Para buscar, nos anos que esqueceram, 
A paciência de ir vivendo o resto. 

Como vejo eu isto, trinta anos depois? Sorrio, encolho os ombros, e penso: «Que coisas nós dizemos aos quarenta anos...».) Fechado o parênteses, volto ao assunto. María e Javier resolveram convidar amigos para a festa e a casa encheu-se de gente, a maior parte da qual eu não conhecia nem de vista. Mas não é esta a questão. A questão foi ter eu confirmado a tremenda dificuldade que tenho em conviver com pessoas que ainda não tive tempo de conhecer, e mais quando o ambiente ferve de música alta e de palavras que têm de ser gritadas. Senti--me a pessoa mais sem graça, mais sem espírito, que é possível imaginar, e não me restou outra saída que desaparecer discretamente e ir fazer companhia ao cão que, na nossa casa, sofria de abandono como creio que só podem sofrer os cães."

in, "Cadernos de Lanzarote - Diário I"
Caminho, páginas 144 e 145

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