Espaço dedicado a José Saramago na Festa do Avante - PCP
Análise que pode ser aqui consultada
José Saramago – É preciso recomeçar a viagem. Sempre.
«-Vivemos entre os homens, ajudemos os homens. – E que faz o senhor para isso? – Conserto-lhes os sapatos, já que nada mais posso fazer agora.» In Claraboia1
No mês em que se cumprem, e assinalam, 4 anos da morte de José Saramago; no mês em que se estreia mais um filme baseado na sua obra, O Homem Duplicado, de Denis Villeneuve, relembremos neste espaço alguns tópicos da obra do escritor, um dos maiores e mais fecundos autores da nossa Literatura, obra que, justamente, mereceu reconhecimento internacional e recebeu o maior prémio que é possível atribuir a uma Literatura, a uma Língua, a um Autor: o Prémio Nobel.
Saramago não é autor de fácil abordagem. Que o digam Maria Odete Santos Jubilado, Maria Alzira Seixo, Teresa Cristina Cerdeira da Silva, Clara Ferreira Alves, Maria Lúcia Lepecki, Helena Kaufman, Leyla Perrone-Moisés, Eula Pinheiro, Carlos Reis, Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Dacosta, Harold Bloom, António José Borges, Baptista Bastos, Fernando Venâncio, só para referir alguns dos autores que se meteram em trabalhos sobre os códigos de uma escrita que rescreve os modos da abordagem romanesca, ao mesmo tempo que reinventa a própria linguagem em que esses códigos se plasmam – e julgo que o terão encetado com renovado prazer, dado não se haverem limitado aos estudos iniciais e terem, de forma recorrente, regressado ao «local do crime», ou seja, a esse vasto repositório das suas especulações ensaísticas. Há anos, numa homenagem a José Saramago realizada na festa do L´Humanité, assinalando a edição francesa de Levantado do Chão, homenagem em que tive a honra de participar, faziam-me uma pertinente pergunta: porquê, tantos e tão diversos autores, haviam percorrido os signos de uma escrita, a um tempo real e fantástica, do universo ficcional saramaguiano? Sem dados disponíveis, como agora, saiu-me de jorro uma, provavelmente, pouco científica resposta: esse facto deve-se, por certo, ao fluxo narrativo do autor, a esse estranho modo de contar, a uma fala que é moderna e clássica, sedutora e racional, inquietante e irónica, poética e sagaz, e a nossa cartesiana postura, perante o humano que a estrutura, nos convocar para abordagens diversas sobre tão complexo discurso na ânsia, vã, por certo, de plenamente a descodificar.
Partindo da obra romanesca de José Saramago – a que podemos considerar dentro de um universo temático que estrutura uma reflexão demorada e estimulante, e profusamente informada, quer na forma quer na abordagem, sobre esse estranho e equívoco desígnio do ser português, ou seja, da singularidade histórica e cultural das gentes que, desde o século XII, habitam este rectângulo ibérico, e que na diversidade temporal que a obra de Saramago reflecte, inclui títulos que vão de Manual de Pintura e Caligrafia até A História do Cerco de Lisboa, considerando-se assim, em definição conjuntural, como a 1.ª fase da sua obra ficcional; a que se debruça sobre a ficcionalidade do real, mesmo quando o mágico a invade, e do histórico: Levantado do Chão, Viagem a Portugal, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra e História do Cerco de Lisboa – recorrência a que Saramago só voltará, com rasante ironia, num dos seus títulos finais, A Viagem do Elefante e, já após a sua morte, com esse notabilíssimo romance que é Claraboia, tantos anos guardado e que nos mostra um autor que, aos 31 anos possuía já uma escrita seguríssima, uma capacidade de análise e de descrição invulgares. Neste romance o jovem Saramago inscreve, com desarmante clareza (nos métodos da abordagem, na agilização linguística) uma perspectiva lúcida e assertiva sobre o percurso das componentes sincrónicas, hipodiegéticas e intertextuais que estruturam o modo literário, como lhe chamou Maria Alzira Seixo, ou seja, os plurais acervos simbólicos, o poder de representação da natureza humana que configuram o discurso ficcional saramaguiano, cujos se explanarão em plenitude nos textos posteriores. Aos 31 anos, Saramago é já um autor de inegáveis capacidades inventivas, seguro e dextro nos recursos, estilísticos e narrativos, mesmo quando considera, em louvável autocrítica, ser Claraboia um livro também ingénuo, mas que (...) tem coisas que já têm que ver com o meu modo de ser. Nada mais exacto.
E aqui cabe referir, dado que novas edições da sua obra se perfilam nos escaparates, esse estranho objecto literário que é Manual de Pintura e Caligrafia. José Saramago, encena neste livro a utópica ambição, que todo o criador de génio persegue, de explicar, de tornar menos absurdo o volátil existencial, esse magma que nos cola, mente e vísceras, a este cósmico chão – a necessidade de tornar, através da arte, perene o que é efémero e dar algum sentido ao caos. Transportar na pele, nos ossos, esse semental de ideias, de que nos fala Luís Rebelo de Sousa e que este romance, ainda não inteiramente compreendido de Saramago, dado que percorre, com subtileza, alguns dos formulários do nouveau roman, sendo este um texto a um tempo denso, complexo e prospectivo; brilhante exercício que é sobre a linguagem, a arte misturando-se com os referentes memoriais e introspectivos, a desnudar-se num rarefeito autodiegético, num tempo ainda de incertezas mas já de balanço, fim de uma jornada e recomeço – o rigor e o domínios formais que Manual inaugura e se prolongará com uma respiração mais solta em Levantado do Chão, livro que contém já os sinais de uma escrita poderosa, um estilo de reconhecida identidade. É José Saramago que nos dirá numa passagem de Manual, em jeito expositivo, que a sua obra posterior glosará até que esse exercício vocativo se torne um programa, um modo, forma de abordagem do real e do histórico ficcionáveis, ou da realidade transmudada em modo de ficção: sei disto um pouco, porque o aprendi em tempos, porque tenho pintado, porque estou a escrever. Agora mesmo o mundo transforma-se lá fora. Nenhuma imagem o pode fixar: o instante não existe.
É a partir destes sinais, deste modo de inventar utopias, que o universo narrativo de Saramago se estrutura, dissecando os signos, dentro do realismo mágico, até ao osso. É no irónico, nos «sinais da vida» e no profundo humanismo, nessa «competência ideológica» de que nos fala Philipe Hamon, que a ficção de Saramago se definirá, dentro e fora de fronteiras (literárias e ideológicas), rasgando preconceitos e impondo-se como um dos mais geniais criadores literários contemporâneos, tornando universal uma Literatura que parecia condenada a ser periférica.
Na obra singular que nos legou, na sua pluralidade imagética, no humano que a edifica, encontramos o esplendor da linguagem, os significantes perenes que, diversamente, atravessam essa escrita e a tornam rara, absorvente e mágica: o desafio intertextual; a tradição oral; o jogo com as derivantes da sabedoria popular; as componentes metonímicas; a herança prosódica integrando os campos semânticos; o surreal e o fantástico; a certeza, como em Defoe, Rousseau e Yourcenar, de que «toda a verdade é ficção» ou ficcionável; a questão da verdade (a dualidade verdade/histórica vs. verdade/ficcional) – os teoremas de uma escrita poderosa e única, esse gosto/gozo de jogar no cerne das palavras, como acontece na evocação de O Lusíadas num dos seus mais brilhantes e lúcidos textos dramáticos, Que Farei com Este Livro?
Que faremos nós, hoje e aqui, com esse legado único, com esse monumento de palavras que os livros de José Saramago são? Partir com eles numa nova, exaltante viagem, dado que o fim duma viagem é apenas o começo doutra.
Respeitou-se, neste título, a grafia do autor
Domingos Lobo
Jornal Avante - Edição Nº2117 - 26-6-2014