Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 5 de dezembro de 2015

Eula Carvalho Pinheiro e o Ensaio sobre a Cegueira - "outra maneira de ver e ler a cidade" - Inserido na edição #21 Revista Blimunda

Capa do artigo da edição #21, Revista Blimunda - Fevereiro 2014

A edição completa pode ser consultada e lida, aqui
em http://www.josesaramago.org/blimunda-21-fevereiro-2014/

O presente documento da académica Eula Carvalho Pinheiro, pode ser lido e estudado entre as páginas 60 a 69.

"Mas estamos realmente cegos. Cegos da razão, da sensibilidade, de tudo aquilo que faz de nós, não um ser razoavelmente funcional no sentido da razão humana, mas ao contrário, um ser agressivo, egoísta, um ser irracional. E o espetáculo que o mundo nos mostra é precisamente este. Um mundo de desigualdades, um mundo de sofrimento sem justificação. 1
José Saramago Há dez mil anos (aproximadamente), o homem constatou que se jogasse sementes à terra poderia multiplicar a quantidade de alimento, e, assim, aumentar as chances de sobrevivência. Acontecia, pois, a primeira grande transformação: a Revolução Agrícola, na qual o instrumento de produção era a ferramenta – movida pelo braço do homem – e a terra o bem mais precioso. Nesse período – entre 8000 a.C. e 6500 a.C. – registra-se o surgimento da cidade: entre as primeiras estão Çatalhüyük na Anatólia, atual Turquia; Mehrgarth, Paquistão, Sul, um dos assentamentos agrários mais antigos da Ásia; Jericó, a primeira cidade cercada por fosso e muro, na Palestina.
Muitos milênios depois disso, pouco antes de 1800 d.C., surge uma nova ruptura no processo de produção: o surgimento da máquina movida por força não-humana. Esse momento foi denominado de Revolução Industrial. Lembremos, por exemplo, da invenção do trem – século XIX – e das transformações daí decorridas: o homem tem a possibilidade de conhecer mais rapidamente outros lugares viajando por terra; a Europa se faz conhecida; pintores descobrem o sol do Mediterrâneo; o homem sai de casa para trabalhar. O capital é o elemento fundamental nesse contexto. Enfim, há massiva urbanização e ascensão de novas grandes cidades (primeiramente na Europa). Isso, necessariamente, se faz representar na literatura com maior ênfase.
Renato Cordeiro Gomes afirma:
As relações entre literatura e experiência urbana tornam-se mais contundentes e radicais na modernidade, quando a cidade transformada pela Revolução Industrial se apresenta como um fenômeno novo, dimensionado na metrópole que perde o seu métron. A desmedida do espaço afeta as relações com o humano. Sob o signo do progresso, alteram-se não só o perfil e a ecologia urbanos, mas também o conjunto de experiências de seus habitantes. Essa cidade da multidão, que tem a rua como traço forte de sua cultura, passa a ser não só o cenário, mas a grande personagem de muitas narrativas, ou a presença encorpada em muitos poemas.2 Dessa segunda revolução para cá, as transformações se intensificaram sobremaneira.
Hoje, estamos diante da terceira: a Revolução da Informação, na qual o conhecimento – mais que a terra e o capital – se faz imprescindível, porque as fronteiras do saber e do não-saber são tênues, ou seja, elas estão em constante processo de mudança – um conceito pode ser modificado no dia seguinte. Devemos, então, nos atualizar continuamente a fim de mantermo-nos «conectados» ao mundo: «os tempos mudaram muito ultimamente, há que atualizar os meios e os sistemas, pôr-se a par das novas tecnologias» (Intermitências da Morte, p. 137). Já não se faz preciso sair de casa: as imagens chegam em tempo real pela tela da televisão, do computador; e, assim, com semelhante precisão a comunicação se realiza entre as várias regiões do mundo; parece que voltamos a produzir dentro do nosso habitat.
O intelectual contemporâneo, consciente desse processo, lê a cidade e a materializa em linguagem:
cinematográfica, pictórica, musical, discursiva. Essa representação reflete, necessariamente, esse novo mundo: um só mundo com inúmeras particularidades. Nesse sentido, a Literatura, em particular a escrita de José Saramago nos romances Ensaio sobre a Cegueira, Intermitências da Morte, A Caverna, Ensaio sobre a Lucidez, materializa em linguagem a cidade: não mais identificando, em geral, pessoas e lugares, mas constrói textos nos quais pessoas e lugares são um e todos ao mesmo tempo, ou seja, a não-nomeação, o anonimato; significa dizer que uma determinada situação pode estar ou acontecer em qualquer parte. Renato Cordeiro Gomes afirma essa tendência no título Todas as Cidades, a Cidade: literatura e experiência urbana, obra de 1994; e ratifica essa postura quando afirma:
Percebe-se hoje, que a cidade para ser cenário da narrativa não necessita de presença encorpada. Sua ausência deixa, entretanto, todas as suas marcas: a violência, a solidão, a ausência de valores morais, a exacerbação do sexo, nenhum traço de humanismo, a perda da philia, a cidade compartilhada; enfim, são corroídos os traços que poderiam identificar uma identidade forte, traços que se tornam débeis, rarefeitos. E, essa cidade é toda e qualquer, não há mais necessidade de descrição de um cenário que localize identidades.
Em Ensaio sobre a Cegueira, «A mulher do médico disse ao marido, O mundo está todo aqui dentro» (ESC, 102). O manicômio, assim, como um microcosmo, representa o que acontece ou que pode acontecer em qualquer parte. Nesse lugar estão inseridos, além das pessoas portadoras do «mal-branco», a indiferença, o isolamento, impostos pelas autoridades:
O médico disse, As ordens que acabamos de ouvir não deixam dúvidas, estamos isolados, mais isolados do que provavelmente já alguém esteve, e sem esperança de que possamos sair daqui antes que se descubra o remédio para a doença. ESC, 51
O médico disse, Todos ouvimos as ordens, aconteça o que acontecer, uma coisa sabemos, ninguém vos virá ajudar, por isso seria conveniente que nos começássemos a organizar já, porque não vai tardar muito que esta camarata esteja cheia de gente, esta e as outras [...] ESC, 52 Além disso, o fato de as personagens não possuírem nomes próprios também corrobora a ideia de que uma pessoa pode ser qualquer pessoa: «os nomes, que importa os nomes» (ESC, 65); «Um, fez uma pausa, parecia que ia dizer o nome, mas o que disse foi, Sou polícia, e a mulher do médico pensou, Não disse como se chama, também saberá que aqui não tem importância.» (ESC, 66). A personagem mais destacada do romance sempre será nomeada de «a mulher do médico». Uma vez mais, a mulher se destaca na narrativa saramaguiana, confirmando o que ficara registrado no romance Memorial do Convento: «Deus quando quer não precisa de homens, mas de mulheres ele não pode dispensar-se nunca.»
Os outros cegos chegaram juntos. Tinham-nos apanhado nas suas casas, um após o outro, o do automóvel, primeiro de todos, o ladrão que o roubou, a rapariga dos óculos escuros, o garotinho estrábico, este não, a este foram-no buscar no hospital onde a mãe o levou. A mãe não vinha com ele, não tivera a astúcia da mulher do médico, declarar que estava cega sem o estar, é uma criatura simples, incapaz de mentir, mesmo para seu bem. ESC, 48 – Grifos nossos
Também não surpreenderá que busquem todos estar juntos o mais possível, há por aqui mais afinidades, umas que já são conhecidas, outras que agora mesmo se revelarão, por exemplo, o ajudante da farmácia foi quem vendeu o colírio à rapariga dos olhos escuros, no táxi do motorista foi o primeiro cego ao médico, este que disse ser polícia encontrou o ladrão cego a chorar como uma criança perdida e quanto à criada do hotel, foi ela a primeira pessoa a entrar no quarto quando a rapariga dos óculos escuros desatou aos gritos. ESC, 67 – Grifos nossos
«A mulher do médico» será, no interior do manicômio, os «olhos», e depois de lá saírem também, pois será ela quem conduzirá pela cidade as pessoas atingidas pelo «mal-branco» (quando este mal já tiver atingido a totalidade de uma determinada população por contágio) que dela estiverem próximas:
[...] eu sou, unicamente, os olhos que vocês deixaram de ter, Uma espécie de chefe natural, um rei com olhos numa terra de cegos, disse o velho da venda preta, Se assim é, então deixem-se guiar pelos meus olhos enquanto eles durarem, por isso o que proponho é que, em lugar de nos dispersarmos, ela nesta casa, vocês na vossa, tu na tua, continuemos a viver juntos [...] ESC, 245
Durante uma longa caminhada pela cidade – percurso necessário para se chegar à casa do médico e de sua mulher –, «a mulher do médico» vira ruas repletas de lixo, soubera pelo «velho da venda preta» de outras calamidades, mas o que mais a chocou foi o fato de presenciar cães a comerem um homem e, por isso, ao chegarem em casa diz [...] vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos, não sou rainha, não, sou simplesmente a que nasceu para ver o horror, vocês sentem-no, eu sinto-o e vejo-o [...] ESC, 262
O romance Ensaio sobre a Cegueira do título às páginas que o compõem está permeado por palavras do campo semântico do OLHAR; a própria epígrafe – ficcionalmente criada – «Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.» traz essa evidência. Nesse sentido, não bastam os olhos para ver, se não houver sensibilidade capaz de identificar o que está escrito nas ruas: «na verdade os olhos não são mais do que umas lentes, umas objectivas, o cérebro é que realmente vê» (ESC, 70). Em As Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino essa postura também está registrada O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso e, enquanto você acredita estar visitando Tâmara, não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes. 
A dicotomia olhar – ver perpassa toda a narrativa; chegando, inclusive, a deixar evidente que na falta da capacidade de ver outros sentidos substituem a visão; a audição é um dos exemplos possíveis. Os ruídos da cidade são reconhecidos, identificados, mesmo que não se esteja vendo; são, pois, familiares, fazem parte do dia-a-dia de seus habitantes.
Por experiência, o cego sabia que a escada só estaria iluminada enquanto se ouvisse o mecanismo do contador automático, por isso ia premindo o disparador de cada vez que se fazia silêncio. A luz, esta luz, para ele, tornara-se em ruído. [...] Um carro parou na rua, até que enfim, pensou, mas acto contínuo estranhou o barulho do motor, Isto é diesel, isto é um táxi, disse e carregou uma vez mais o botão da luz. ESC, 20
De igual forma existe a dicotomia claro – escuro; luz – sombra; haja vista a própria condição imposta pelo “mal-branco” como ficara conhecida esse tipo de cegueira: no lugar da treva o branco absoluto. [...] esta cegueira é branca, precisamente o contrário da amaurose, que é treva total, a não ser que exista por aí uma amaurose branca, uma treva branca [...] ESC, 28
As horas foram passando, um após outro os cegos adormeceram. Alguns tinham tapado a cabeça com a manta, como se desejassem que a escuridão, pudessem apagar definitivamente os sóis embaciados em que os seus olhos se haviam tornado. As três lâmpadas, suspensas do tecto alto, fora do alcance, derramavam sobre os catres uma luz suja, amarelada, que nem era capaz de produzir sombras. ESC, 76 Por outro lado, metáforas como «luzes escassas» são encontradas no sentido de pouco conhecimento como em «o misterioso território da neurocirurgia, acerca do qual não possuía mais do que luzes escassas» (ESC, 29); ou, ainda, «às cegas», ou seja, sem convicção, sem precisão: «Por enquanto não lhe receitarei nada, seria estar a receitar às cegas» (ESC, 24).
A cidade se destaca em dois momentos, antes da epidemia do «mal-branco» e depois de algum tempo de permanência da cegueira total. Primeiramente descreve-se uma cidade na qual o trânsito se fazia confuso e uma provável poluição visual provocada pelos anúncios luminosos era também registrada:
[...] os passeios estavam todos ocupados por automóveis, não encontraram espaço para arrumar o carro, por isso foram obrigados a procurar sítio numa das ruas transversais [...] ESC, 13 
Fizera-se noite quando saiu do consultório. Não tirou os óculos, a iluminação das ruas incomodava-a, em particular a dos anúncios. ESC, 31
Depois de algum tempo, devido ao «mal-branco», tudo isso se agrava: «Os transportes estão um caos, respondeu o velho da venda preta, e passou aos pormenores, aos casos e aos acidentes » (ESC, 126); a cidade chega ao ápice do caos: pára. [...] daí em diante não se ouviu mais um ruído de motor, nenhuma roda, grande ou pequena, rápida ou lenta, voltou a pôr-se em movimento. Aquelas pessoas que antes costumavam queixar-se das dificuldades cada vez maiores do trânsito, peões que à primeira vista pareciam não levar rumo certo porque os automóveis, parados ou andando, constantemente lhes cortavam o caminho, condutores que, depois de terem dado mil e três voltas até conseguirem descobrir um local onde arrumar enfim o carro, se tornavam em peões e passavam a protestar pelas mesmas razões deles depois de terem andado a reclamar pelas suas [...] ESC, 127 O caos em que a cidade acaba por encontrar-se agrava-se ainda mais; são ruas repletas de lixo, de mau cheiro, de pessoas a vagar sem direção, indefesas, chega-se, por fim, ao fundo de uma situação de degradação e humilhação.
No entanto, os sobreviventes dessa epidemia têm a oportunidade de voltarem a ver, pois a cegueira, segundo a narrativa, é reflexo do medo: 
«o medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos» (ESC, 131). O medo, então, parece acabar pois Se eu voltar a ter olhos, olharei verdadeiramente os olhos dos outros, como se estivesse a ver-lhes a alma, A alma, perguntou o velho da venda preta, Ou o espírito, o nome pouco importa, foi então que, surpreendentemente, se tivermos em conta que se trata de pessoa que não passou por estudos adiantados, a rapariga dos óculos escuros disse, Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos. ESC, 262
No final do romance, as pessoas voltam a ver. Contudo o médico apresenta sua visão dessa situação vivida: «Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem» (ESC, 310).
Aí está, uma vez mais, uma cidade que pode ser qualquer cidade."

"Referências Bibliográficas
CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. 2.ª ed. Trad. Diogo Mainard. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DOCUMENTÁRIO Janela da Alma de Jaó Jardim e Walter Carvalho, 1999.
GOMES, Renato Cordeiro. Cartografias Urbanas: representações da cidade na Literatura. In. SEMEAR (Edição eletrônica).
WWW.letras.puc-rio.br — Acesso em 14 de janeiro de 2008.
SARAMAGO. José. Memorial do Convento. 7.ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.
SARAMAGO. José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SARAMAGO. José. As Intermitências da Morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
NOTAS
1. Depoimento presente no documentário Janela da Alma de João Jardim e Walter Carvalho, 1999.
2. GOMES, Renato Cordeiro. Cartografias Urbanas: representações da cidade na Literatura.
3. Idem. Idem. p. 3"