Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 24 de abril de 2016

"Grândola" cantada por Luis Pastor e João Afonso e restantes companheiros presentes na casa de José Saramago e Pilar del Río em Tías Lanzarote

Relembrar e comemorar Abril - 42 anos de Abril - 1974/2016

Pode ser visualizado via YouTube, aqui

"El sábado de la semana pasada tuvimos la fortuna de conocer a Joao Afonso, el sobrino de José Alfonso. Fué en la biblioteca de Saramago en Tías - Lanzarote. Allí coincidió el grupo de artistas que visitaba la isla con motivo del concierto de Luis Pastor y su nuevo disco Duos. Fue una reunión íntima que terminó acariciada por poemas y canciones. Y no pude evitar coger la cámara y ponerme a grabar para socializar el pasaje." de Fernando Berlín da RadioCable.com

Enquanto não chega a edição deste mês recuperamos a "Blimunda" de Abril de 2013 - Revista Digital

Capa da edição #11 - Abril de 2013

Sinopse da edição #11 (Abril de 2013), que pode ser recuperada e descarregada gratuitamente para leitura, via página da Fundação José Saramago, aqui

"A Blimunda de abril está aqui! Com várias páginas sobre o festival Rota das Letras de Macau, uma entrevista a Andréa del Fuego, Prémio José Saramago, um dossier sobre os 50 anos da Feira do Livro Infantil de Bolonha, com a escolha de um livro descoberto na Feira por editores, autores e ilustradores portugueses, e a habitual secção Saramaguiana, com um texto de Laura Restrepo, que assinala também nas páginas da Blimunda a abertura da Feira do Livro de Bogotá que dedica a José Saramago grande parte da sua programação.

Tudo isto e muito mais no número 11 da Blimunda, do mês de abril."

Cartaz de "Blimunda" de Azio Corghi, ópera baseada no "Memorial do Convento" de José Saramago (Teatro Alla Scala, Milão - 1990)

Teatro Alla Scala

"Blimunda" de Azio Corghi, ópera baseada no "Memorial do Convento" de José Saramago

22 de Maio de 1990

Cartaz de apresentação do espectáculo, depositado na Fundação José Saramago e que faz parte da exposição permanente "José Saramago: A semente e os frutos"

"Blimunda, o Orfeu no feminino ou passagem de Blimunda" por Itália, 
por Maria Armandina Maia

O artigo de Maria Armandina Maia, publicado na revista "Camões  Revista de Letras e Culturas Lusófonas" (n.º3, Outubro-Dezembro de 1998), pode ser recuperado aqui,

"Blimunda", a ópera lírica em três actos que às 21.30 do dia 20 de Maio de 1990 estreava no Teatro Lírico de Milão, tinha a assinatura do compositor italiano Azio Corghi, autor de uma obra consagrada, que conhecera representações nos mais prestigiados teatros e salas de concerto, também a nível internacional. Na obra deste compositor, responsável pela Cátedra de Composição no Conservatório de Milão, colaborador da Fundação Rossini e da Casa Ricordi, ocupavam lugar de indiscutível relevo as obras musicais que resultavam de incursões pelo mundo literário, sobretudo com a composição Gargantua, experiência de tal modo notável que levaria o Teatro alla Scala de Milão a confiar-lhe o projecto da ópera lírica Blimunda, extraída do romance de José Saramago, Memorial do Convento.
O autor do Memorial tinha, por essa altura, três obras suas publicados em Itália: Memoriale del Convento, Feltrinelli, Milano, 1984; La Zattera di Pietra, Feltrinelli, 1987; e Storia dell'Assedio di Lisbona, Bompiani, 1990, traduções assinadas por Rita Desti (com excepção do Memoriale del Convento, fruto de uma tradução a quatro mãos, de Rita Desti e Carmen Radulet).
Para o vasto e exigente público italiano, Saramago era o autor português mais conhecido depois do "fenómeno" Pessoa, o primeiro a merecer destaque e interesse de casas editoras que constituíam um selo de garantia. No entanto, era junto de um núcleo de intelectuais que José Saramago assumia foros de verdadeira revelação, pela qualidade e ineditismo da sua palavra literária.
Ligado, na sua maior parte, a Instituições Universitárias, este grupo promovia a obra e o escritor que, pela sua mão, conheceu cidades como Perugia, Florença, Roma, Milão e Turim, em conferências e reuniões que se multiplicavam.
Foi, aliás, num destes momentos que conheceu Azio Corghi, que, impressionado pela atmosfera criada no Memorial, confessou a José Saramago o seu desejo de "contar a história de um Orfeu no feminino". A resposta de Saramago baptizaria a ópera. "Chamê-la-emos Blimunda".
Num exercício de grande unidade, escritor e compositor intersectaram os respectivos saberes, dando lugar ao magnífico trabalho que é o libreto de Blimunda, descrito pela crítica Lidia Bramani (casa Ricordi), como "uma estrutura em que são determinantes a voz recitante, solistas, oiteto madrigalista, coro, orquestra, electrónica, que se intersectam ao longo de linhas que se fragmentam e refazem, entrecruzando-se, distanciando-se, por vezes tocando-se ao de leve em três espaços musicalmente e cenograficamente distintos: o espaço acústico, o espaço imaginário e o espaço real".
Mas a estreia da ópera não se limitou em Milão ao público da sala que na noite de 20 de Maio encheu o Teatro Lírico, para aplaudir uma obra que, num só tempo, nos deslumbrava e quase estarrecia pela opulência, grandiosidade e magnificência, mas também pelo seu próprio e surpreendente avesso, na contenção da gestualidade, na pureza dos sons, no acenar dos sentidos.
Nos dias que a antecederam, numa organização promovida pela Universidade de Milão, tinha lugar o Colóquio Viaggio intorno al Convento di Mafra, na belíssima "Sala di Rapprezantanza", cujo programa era completado por um concerto de homenagem a autores portugueses do tempo – Carlos Seixas, Domingos Bomtempo e Francisco Lacerda – excelentemente interpretados por um grupo do Conservatorio Verdi, ao qual a Fundação Calouste Gulbenkian, num assinalável esforço de colaboração, facultara, num curtíssimo espaço de tempo, as partituras das obras.
Um vasto público ouviu, entre outros, textos de Piero Ceccucci: Il "Memoriale del Convento" nell'itinerario narrativo di José Saramago e Eduardo Lourenço: O Memorial da história humana como história santa.
De registar, sobretudo, as intervenções dos dois autores, Azio Corghi e José Saramago, que se prolongariam num longo debate com o público, em que falaram longamente do(s) sonho(s) de cada um: "Eu acho que, depois de o padre Bartolomeu Gusmão ter inventado a "passarela" e eu ter inventado a "máquina para viajar", é chegado o momento de o Maestro Corghi explicar a sua obra". A resposta de Corghi deixa clara a unidade da travessia entre a obra e a ópera: "História e história tenderiam para harmonizar-se numa síntese até exigirem, tornando-a "quase necessária", a intervenção da música".
Voltando às palavras de Lidia Bramani "A extraordinária coerência estrutural do Memorial do Convento permite compreender globalmente o pensamento do escritor. Mantendo um desenrolar de sequências, Saramago torna o tempo narrativo centrífugo, dissolvendo a rigidez deste a partir do interior. O tempo psicológico, individual e colectivo vence o da narração convencional graças a uma prosa moderníssima, barroca, opulenta, transbordante de rasgos de projecção, simultaneamente capazes de uma suavíssima essencialidade".
Foi assim no tempo de estreia de Blimunda em Itália. E foi também assim que José Saramago se fez Nobel: com uma estatura de excelência e humildade que ampliou, indelevelmente, o espaço da literatura e da cultura portuguesas no mundo.




"Saramago e a literatura como resistência" de João Céu e Silva - Revista "Café com Letras" n.º 1 (Abril de 2016)

Para leitura e acompanhar as diversas publicações, aqui fica o site

"Saramago e a literatura como resistência" de João Céu e Silva 

"Se há escritor em que a literatura de resistência está bem presente, o seu nome é José Saramago. Se há homem em que isso também aconteça, o nome é o mesmo. 
Poder-se-ia questionar o porquê de começar com o escritor em vez do homem se foi o primeiro que surgiu, e só dele é que a literatura saiu. Não é preciso pensar muito, afinal no tempo em que estamos, após a sua morte, um é inseparável do outro, a exemplo do último terço da sua vida, aquela que o firmou para aquilo que agora interessa, a literatura, foi sempre o seu rosto. Mesmo que falasse para audiências de três mil pessoas em Lisboa, em Cartagena das Índias ou em Frankfurt quem falava era o escritor e o leitor nunca ficou em dúvida. 
Para se analisar o conceito de resistência na sua literatura, pode-se situar a obra apenas durante o período de tempo que vai de Levantado do Chão ate Caim. Pois esse é aquele em que as anteriores tentativas literárias foram superadas e o seu carácter de resiliência melhor se mostra. É certo que na escrita anterior, como no romance do princípio, Terra do Pecado; na poesia inicial, Os Poemas Possíveis, e até nos poucos contos que constituem a sua obra, como Objeto Quase, a resistência está sempre presente. Mesmo no antigo romance que foi publicado postumamente, Clarabóia, isso acontece. Mas é sobretudo em Manual de Pintura e Caligrafia que a narrativa mais longa encontra o inimigo que é preciso enfrentar, pois é nele que a compreensão da história se apresenta como importante para a personagem principal e ficam definidos os limites da acção e, também, a plataforma onde se instala a contestação ao discurso oficial dos protagonistas sociais. 
É, no entanto, em Levantado do Chão que se inicia o percurso que José Saramago faz em nome da literatura de resistência ou, pode também dizer-se, com mais visibilidade e regularidade, de um propósito que já vem de antes — ou de quase sempre. Curiosamente, num tempo em que pareciam ter desaparecido os motivos políticos que levariam um autor a criar uma narrativa contra a situação e a fixação de uma outra história no que diz respeito à humanidade, é, no entanto, cinco anos após a chegada da democracia a Portugal que José Saramago apresenta a sua obra mais cáustica no que respeita às relações sociais, à de-pendência quase feudal de quem trabalha, a uma espécie de inquisição por via da polícia, ao questionamento do papel da mulher e da família, entre outros temas. Todavia, José Saramago não só chega à verdadeira literatura de resistência a seguir ao 25 de Abril de 1974, como continua a escrevê-la durante a vida que lhe resta. Mesmo que, aí, a resistência se transfira do campo nacional para fora das fronteiras, pondo ainda o dedo no poder de se alterar o rela-to histórico nacional, ao colocar um revisor que escolhe retirar um 'não' do texto que está ao seu cuidado e alterando assim o que é a História do Cerco de Lisboa. 

Do mesmo autor deste artigo, foi publicado um livro de entrevistas e estudo sobre a obra de José Saramago, num discurso directo com José Saramago e muitas outras individualidades.
"Uma longa viagem com José Saramago" da Porto Editora (03/1999)

Já antes havia realizado o melhor exemplo do que é esse combate na literatura ao separar a Península Ibérica da Europa, a que irá um dia retirar a independência nacional, segundo a sua previ-são em textos escritos, como é o romance Jangada de Pedra; ou ao duvidar do modo como a História é ensinada através de um professor da disciplina em O Homem Duplicado. Será, porém, num romance citadino e sem localização geográfica — pode ser em qualquer parte do mundo quase — que o escritor demonstrará que a literatura pode ser um guia de resistência. É o caso de Ensaio sobre a Cegueira, um dos livros mais poderosos neste tópico e que leitores de todo o mundo devoraram como antes o haviam feito com obras clássicas de autores que nos tinham avisado sobre o presente e o futuro, tendo sempre presente essa ideia de luta. 
Todavia, é Levantado do Chão o manual de literatura de resistência por excelência de José Saramago. Leia-se uma frase ao acaso: "Rapazes, tomem atenção daqui para o futuro, por esta vez vão em liberdade, mas ficam prevenidos, se voltarem a andar metidos em terrorismos pagam a dobrar, e não se deixem iludir com falsas doutrinas, não sejam parvos (...)". Quem faz este alerta é o Tenente Contente, após uma prisão que serviria de lição a quem contesta a ordem, uma personagem a quem José Sara-mago dá um dos muitos nomes com um duplo sentido, situação constante deste romance. Um livro que pretende explicar a oposição à exploração económica do homem pelo homem, como se fez no Alentejo durante séculos. José Saramago poderia escolher um outro cenário, deslocalizado até do que se conhece, mas não. Num tempo em que a literatura nacional estava a desbravar novos caminhos pós-Revolução, o escritor embrenha-se no cenário mais improvável para o que se está a fazer nas letras nesse tempo. Justifica-o numa entrevista, dizendo assim: "Um escritor é um homem como os outros: sonha. E o meu sonho foi o de poder dizer deste livro quando terminasse: Isto é o Alentejo." E noutra entrevista di-lo deste modo: "A opressão é, por definição, esmagadora, tende a baixar, a calcar. O movimento que reage a isto é o movimento de levantar. Portanto, o livro chama-se Levantado do Chão porque levantam-se os homens do chão, levantam-se as searas, é no chão que semeamos, é no chão que nascem as árvores e até do chão se pode levantar um livro." 
O que terá levado José Saramago a escrever o livro Levantado do Chão? Esta é a parte que constitui a marca do escritor e que sucede no homem, como se iniciava o texto, porque desde muito jovem o homem quisera ser escritor e o escritor coincidia com esse homem. Pode ver-se esse passado em As Pequenas Memórias, com descrições de uma opressão que estava, desta vez, do lado de lá do rio Tejo; ou até em A Viagem do Elefante, o crítico delírio humorístico contra o poder da realeza e da Igreja, neste caso tendo em conta a vida de um elefante, que o escritor fez questão de deixar como aviso alegórico aos que não se levantavam do chão. 
José Saramago leva alguns anos a pensar e a escrever aquele que é considerado pela crítica um exemplo da literatura de resistência, Levantado do Chão. Em 1975, está na direção do jornal Diário de Notícias e é peão do jogo de xadrez que se pratica no país, ao nível dos movimentos sociais. Antes do ano terminar é saneado do cargo, por ocasião do golpe do 25 de Novembro e fica no desemprego. Decerto que na sua mente avançam e recuam as peças da política, da sociedade, do jogo em que esteve e a sua decisão é a de migrar durante uns meses para o Alentejo, 
mais propriamente para a povoação do Lavre. Este é o local onde a Reforma Agrária em curso o inspira para a história do romance, que se vai formando. Quem percorrer, ainda hoje, as localidades que estão no livro será capaz de refazer as paisagens e as personagens, nem que seja por conversas em cafés. Em que o som das palavras e a com-posição dos relatos que se escutam vão dar à narrativa que José Saramago começou a escrever, um par de anos depois disso. Com uma agravante, o que vai chocar hoje o viajante sobre a realidade daquela região era mais agravada à época, e a história corria solta — e fazia-se — entre as oliveiras daqueles campos. 
Face ao que o homem via, o escritor impôs-se e começou a escrever o Levantado do Chão como uma missão de resistência. Escrita que ainda não tinha chegado a duas dezenas de páginas e já se transformara num linguajar que, até então, nunca existira na literatura portuguesa. Em grande parte, era o resultado do que ouvira dizer, das gravações que fizera num pequeno aparelho que o acompanhava, nas conversas com os trabalhadores rurais, com as mulheres, ou da companhia que um cão lhe fez. E toda a literatura de resistência que andara a escrever, até aí, é sobreposta pelo retrato das gerações da família Mau-Tempo. Era este o quadro humano e social oposto àquele que, pouco tempo antes, pusera no Manual de Caligrafia um pintor a retratar. Ambos são livros de resistência, mas o segundo é mais literário que o primeiro. 
Se Levantado do Chão ficou completo, por acabar fica um romance a que Saramago chamou Alabardas. Qual a história deste romance incompleto? A recusa de um operário português em fazer bombas que matassem vizinhos espanhóis durante a Guerra Civil, tornando impotente a espoleta quando fossem largadas dos aviões de Franco. Ou seja, até ao fim, José Saramago teimou nesta tarefa da Literatura como resistência. Nas crónicas que reúne em A Bagagem do Viajante há uma que tem por título um ver-so de um poema de Carlos Drummond de Andrade: "E agora, José". José Saramago não pegou nele por acaso, servia a uma crónica sobre um outro José, da Beira, que era objeto de chacota e de violência por parte da população onde vivia, e retratou a sua história em três folhas de livro como se fosse uma das personagens de Levantado do Chão. Não lhe custou nada, afinal era um escritor apostado na ideia de literatura como resistência." 

in, Revista "Café com Letras", páginas 48 a 50 
n.º 1 (Abril de 2016)