(...) "A pedra depois de talhada é uma expressão. Entro na catedral. Silêncio e um cheirinho a floresta apodrecida. As lajes estão gastas de um lado pelos passos dos vivos, do outro pelo contacto dos mortos. Tudo aqui gira em torno da mesma ideia. A pedra esboroa-se, mas eu contemplo-a viva, com um povo de estátuas em cima, com um povo de mortos em baixo. Nos alicerces uma geração, outra geração, todos apodrecendo juntos na mesma terra misturada e revolvida. A parte exterior é maravilhosa, a parte subterrânea e mais maravilhosa ainda. É a única raiz que a conserva intacta." (...)
em "Húmus" de Raul Brandão, publicado em 1917
Existe aqui um paralelo, na interpretação e busca da lucidez. A "pedra", como elemento exterior, material e matéria, mas também, o que protege o "interior".
(...) "Com este livro terminou a estátua. A partir de "O Evangelho segundo Jesus Cristo", e isto sei-o agora que o tempo passou, começou outro período da minha vida de escritor, no qual desenvolvi novos trabalhos com novos horizontes literários, dispondo portanto de elementos de juízo suficientes para afirmar com plena convicção que houve uma mudança importante no meu ofício de escrever. Não falo da qualidade, falo de perspectiva. É como se desde o "Manual de Pintura e Caligrafia" até a "O Evangelho segundo Jesus Cristo", durante catorze anos, me tivesse dedicado a descrever uma estátua. O que é a estátua? A estátua é a superfície da pedra, o resultado de tirar pedra da pedra. Descrever a estátua, o rosto, o gesto, as roupagens, a figura, é descrever o exterior da pedra, e essa descrição, metaforicamente, é o que encontramos nos romances a que me referi até agora. Quando terminei "O Evangelho" ainda não sabia que até então tinha andado a descrever estátuas. Tive de entender o novo mundo que se me apresentava ao abandonar a superfície da pedra e passar para o seu interior, e isso aconteceu com "Ensaio sobre a Cegueira". Percebi, então, que alguma coisa tinha terminado na minha vida de escritor e que algo diferente estava a começar." (...)
em "A estátua e a pedra" de José Saramago
Fundação José Saramago, 2013
Páginas 33 e 34