Reflexão sobre a violência e consequente banalização das imagens que nos entram em casa através da comunicação social (29/06/1993)
in "Cadernos de Lanzarote - Diário I"
Caminho, páginas 69 e 70
"29 de Junho (1993)"
"A Lisboa, para gravar uma entrevista com Carlos Cruz. A hospedeira de bordo passa com os jornais, peço-lhe dois ou três para me ir entretendo durante a viagem (não gosto de ler livros nos aviões) e vou correndo os olhos pelas notícias, que, sendo de ontem, já me parecem tão velhas como o mundo. De repente, fico parado diante de uma fotografia que enche a página quase toda. Só alguns minutos depois, quando saí da espécie de estupor em que caíra, reparei que se tratava de um anúncio da Amnistia Internacional. A fotografia mostrava dois rapazes chineses (adivinha-se a presença de um terceiro, que não se vê) ajoelhados, com as mãos atadas atrás das costas. De pé, por trás deles, flectindo o joelho, três soldados que devem ter mais ou menos a mesma idade, cravam-lhes literalmente as bocas das espingardas à altura do coração. Não se trata de encenação, a fotografia tem uma realidade aterradora. Em poucos segundos os rapazes estarão mortos, esfacelados de lado a lado, com o coração desfeito. O texto diz que há na China milhares de presos políticos, que devemos fazer alguma coisa para os salvar. Deixo de olhar, penso que isto é banal, que todos os dias nos põem diante dos olhos imagens que em nada ficam a dever a esta (para não falar nas torturas e mortes fingidas que as televisões servem a domicílio), e chego a uma conclusão: que todos esses horrores, repetidos, cansativamente vistos e revistos em variações máximas e mínimas, se anulam uns aos outros, como um disco de cores, rodopiando, se vai aproximando, pouco a pouco, do branco. Como evitar que fiquemos, nós, também, imersos numa outra espécie de brancura, que é a ausência do sentir, a incapacidade de reagir, a indiferença, o alheamento? Talvez escolhendo deliberadamente uma destas imagens, uma só, e depois não permitir que nada nos distraia dela, tê-la ali sempre, diante dos olhos, impedindo-a de se esconder por trás de outros quaisquer horrores, que teria sido a maneira melhor de perder a memória de todos. Para mim, fico com esta fotografia dos três chineses que vão morrer (que já estão mortos) rebentados por três chineses a quem, simplesmente, alguém que não aparece na imagem, disse: «Matem-nos.»