"Das personagens de José Saramago, magistral inventor de ficções que ecoam no quotidiano palpável das nossas vidas, bem podemos dizer que são mestres do escritor e nossos mestres, sempre que nas suas ações, nos seus rostos e nas suas palavras reencontramos a sabedoria de homens e de mulheres legitimados pela autonomia e pela incondicional possibilidade que a ficção lhes confere; homens e mulheres chamados Baltasar e Blimunda, Ricardo Reis e Bartolomeu Lourenço, Raimundo Silva e José, Maria Sara e Oriana, Lídia e Maria de Magdala, Joana Carda e Cipriano Algor, o elefante Salomão e o seu cornaca, Tertuliano Máximo Afonso e António Claro, sua cópia exata e duplicada – ou vice-versa. E mesmo quando o nome não está lá – como em Ensaio sobre a Cegueira e em Ensaio sobre a Lucidez – é a sua omissão, como falso anonimato, que alegoricamente projeta os homens e as mulheres da ficção sobre o mundo real em que revemos dramas e conflitos ficcionais identificados como nossos e porventura com os nossos nomes. Citando um título conhecido: identificados com Todos os Nomes que no nosso mundo se encontram; ou ainda, lembrando palavras do escritor, no discurso de Estocolmo: “Não escritos, todos os nossos nomes estão lá.”
José Santa-Bárbara, "Os fazedores do capricho"
São estas figuras e outras mais (sem esquecer um cão chamado Constante), com nome inscrito ou sem ele, que nos provocam (provocare: chamar para fora), ao mesmo tempo que nos propõem sentidos que os transcendem e que nos transcendem, sob o signo do poder subversivo da linguagem. É esse poder que José Saramago invoca, quando um minúsculo e redondo vocábulo – um simples não – suscita a reconstrução histórica de um universo afinal fragilizado por esse poder subversivo; e é ainda em clave de subversão que o romancista enuncia a alegoria da fratura e da deriva, engenhosa indagação ficcional do destino ibérico; ou a metáfora do regresso e do reencontro com a pátria, sentidos camonianos mas também, à sua maneira, pessoanos; ou a imagem do coletivo e do seu poder redentor, no termo de um processo histórico que conduz à libertação dos levantados do chão; ou a imagem da construção e a sugestão ascensional que a confirma, quando se ergue o convento que a vontade real idealizara, ao mesmo tempo que a passarola voa; ou a representação da cegueira coletiva em que se surpreende uma condição humana degradada na repulsiva violência do seu egoísmo. Isso tudo e também o árduo trajeto da existência humana, a dissolução da identidade, a contestação da ortodoxia religiosa, a celebração da rebeldia, a revisão da palavra bíblica, a questionação da culpa ou a denúncia da arbitrariedade divina."
(Extrato do elogio fúnebre; Lisboa, 20 de junho de 2010)
O
Post do Facebook, 18/06/2016