19 de Março (de 1995)
"Mexendo em antigos papéis, veio-me às mãos a apresentação que, vai em doze anos, escrevi para o catálogo duma exposição de João Hogan. Reli-a, sorri de algumas ingenuidades, mas achei que não era justo fazê-la regressar à obscuridade do gavetão donde tinha saí-do, sem lhe dar a oportunidade de submeter-se a outros juízos que não tivessem sido os meus, evidentemente suspeitos de parcialidade, ou os de Hogan, que nunca me disse o que pensou do palavreado. Por isso, aqui fica:
"Hogan: retrospectiva" Beja, 1983 - (Dimensões 61 x 43 cm)
Promoção da Câmara Municipal de Beja; Associação de Municípios de Distrito de Beja
«Sobre o cavalete, o pintor colocou uma tela branca. Olha-a como a um espelho. A tela é aquele único espelho que não pode reflectir a imagem do que está diante de si, daquilo que com ele se confronta. A tela só mostrará a imagem do que apenas noutro lugar é encontrável. É isso a pintura. A pintura não está no espelho branco e opaco que é a tela. A pintura não está, sequer, no mundo que, por todos os lados, rodeia tela, cavalete e pintor. A pintura está, inteira, na cabeça do pintor. Ao pintar, o pintor não vê o mundo, vê a representação dele na memória que dele tem. A pintura é, em suma, a representação duma memória.
«João Hogan, pintor, está na sua oficina. São quatro paredes apertadas, um casulo minúsculo de silêncio, fechado por sua vez num claustro antigo. Os quadros encostam-se uns aos outros, esteiam-se como placas geológicas, descem do tecto como severos jardins suspensos, formam um labirinto de três dimensões, porventura inextricável. Não faltariam, ao correr da comparação, outras analogias: é o bruxo na sua caverna, é o criador criando universos novos para emendar os antigos, é Fausto convocando os espíritos. Afinal, é só, e basta, João Hogan, pintor. Move-se devagar, tranquilo, no reduzido espaço desafogado que ainda lhe resta, todos o seus passos e atitudes são rigorosos, precisos, nenhuma exuberância, a palavra breve, se tem de a dizer, o sorriso sossegadamente irónico, de mansa ironia, porque a si mesmo primeiramente se terá julgado, e, tendo-o feito, compreendeu que não precisava doutro tribunal nenn doutro réu. A isto se chama, às vezes, sabedoria.
«Fala-se facilmente da sabedoria do filósofo, do sábio, do escritor, não se fala da sabedoria do pintor. E, contudo, um artista como este, que parece estar trabalhando desde o princípio do mundo, transporta, no gesto que mesmo antes de chegar à tela ou ao papel é já traço e cor, um acúmulo de experiências, um saber que transcende a simples técnica que tem de haver no desenhar e no pintar, para se localizar nas camadas pro-fundas onde o inconsciente pessoal e colectivo a todo o momento está procurando as formas e as vozes da sua expressão possível. A pintura, como Leonardo da Vinci disse um dia, é realmente coisa mental.
João Hogan, Paisagem, 1964, óleo sobre tela, 81 x 100 cm
Via http://quadrogiz.blogspot.pt/2013_10_01_archive.html
«Mas, em João Hogan, a expressão dessas vozes e dessas formas percorre caminhos que o levam, simultaneamente, a procurar reproduzir o sentido máximo das coisas (ou a máxima concentração do sentido que têm) e o despojamento de todo o sentido (ou o instante primitivo, se não o primitivo olhar, em que as coisas não têm mais sentido que serem-no). São dois extremos que se tocam, é uma contradição aparente. Tentarei ser mais claro.
«De toda a obra de João Hogan escolho uma das suas paisagens de subúrbio ou um amontoado de pedras, aí onde não se divisa um vulto humano, um mero rasto de passagem, excepto, talvez, por aqui e além, o afloramento impreciso de uma cor, de um volume, acaso já obra das mãos, acaso ainda acidente natural. Em rigor, tal paisagem não existe na realidade. O pintor, como foi dito já, representa no quadro a memória, agora reelaborada pela consciência, duma memória de paisagem. Vemos colinas redondas, cobertas de verde não de verdura, vemos penhascais cortados de planos não de pedreiras. Entendamo-nos: não é de paisagem que estamos tratando aqui, mas de pintura, não ' o pareci-do que devemos procurar, mas o profundo. João Hogan não se oferece para guiar o contemplador o quadro a um certo arrabalde de Lisboa, o que João Hogan propõe é um lugar de pintura. Qualquer coincidência entre isto e aquilo será sempre fortuita e irrelevante.
João Hogan, Sem título, 1972, óleo sobre tela, 130 x 180 cm
«Ora, esta paisagem, que justamente é confluência de memórias, espaço de reunião cumulativa, foco de sugestões e apelos - esta paisagem vem a definir-se em síntese essencial por via de um processo selectivo que precisamente faz da verdura a cor verde e da pedreira corte e plano. Então, e é aqui que reside a resolvida contradição entre os pontos de partida e o ponto de chegada, é quando o quadro aparentemente menos diz que mais exprime, e a paisagem surge diante dos nossos olhos como se ninguém a tivesse visto antes, como se fosse nosso o primeiro olhar que a encontra e nesse mesmo acto a mostra. A arte de João Hogan é, como por uma espécie de prodígio inesperado, a arte do primeiro olhar.
«Pelo seu próprio, natural caminho, Hogan atinge, duplamente, a raiz da pintura e a raiz do ser. O mundo em que nos introduz está, quase sempre, desabitado. Mas é um mundo em expectativa, um mundo que espera os seus homens, ou porque eles ainda não nasceram, ou porque dele foram retirados. Porém, não esqueçamos que diante desta paisagem solitária esteve o homem que a criou. Foi dele o primeiro olhar. Cabe-nos a nós olhar agora, para podermos ver o que ele viu já: os homens que habitarão, por direito, este lugar. De pintura, como foi dito. De vida, como se acrescenta. Que tudo é o mesmo.»
No conjunto, não está mal. E a propósito: como pintaria João Hogan. se ainda fosse vivo, esta ilha de Lanzarote?"
in, "Cadernos de Lanzarote Diário III"
Caminho, páginas 70 a 73
Breve biografia, via WikiPédia, aqui
"De ascendência irlandesa, era neto do aguarelista Ricardo Hogan e sobrinho do pintor Álvaro Navarro Hogan.
Entre 1930 e 1939 trabalha numa oficina de marcenaria; entretanto inscreve-se na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, que abandona ao fim de apenas um ano letivo, para continuar, em 1937, os estudos com Frederico Ayres e Mário Augusto na SNBA. Apresentará a sua obra publicamente pela primeira vez em 1942, na Exposição de Arte Moderna do SPN, Lisboa.
Está representado em diversas coleções e museus, nomeadamente no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, no Museu do Chiado e no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
Foi sócio fundador da Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses, em Lisboa, onde dirigiu diversos cursos de gravura, tendo um papel importante na formação das gerações mais novas (muitos dos actuais gravadores de Portugal foram seus alunos).