Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

"Saramago e os computadores" de Teresa Firmino para o jornal "Público" (03/06/1995)



O presente texto pode ser consultado e lido, aqui 
em http://static.publico.pt/docs/cmf/autores/joseSaramago/saramagoComputador.htm
Publicado no jornal "Público", suplemento "Computadores" de 3 de Junho de 1995
Teresa Firmino

"Saramago e os computadores"

"Uma metáfora, a do campo de batalha, serve a José Saramago para expor as diferenças entre o acto da escrita no computador e o na máquina de escrever. "Numa máquina de escrever, temos de elaborar o pensamento antes de passá-lo ao papel: é muito trabalhoso e obriga a que se atire muito papel fora. O ecrã é um papel que está sempre limpo e tem uma vantagem enorme: se há uma ideia, ainda que esteja mal alinhada, escreve-se e depois trabalha-se. Comparo o ecrã do computador a um campo de batalha, de onde os mortos e feridos vão sendo sempre retirados" - que são "as palavras que não interessam, as ideias imprecisas que deixaram de ter sentido". 
Saramago não desenvolve previamente uma escrita à mão para, em seguida, a transcrever à máquina ou ao computador. A única excepção são as notas que aponta num caderno de capa preta, por motivos de superstição ou talvez por hábito. "O trabalho de escrita é feito directamente no computador. Escrevo no computador, corrijo no computador. A minha folha é o computador." A verdade é que Saramago alterna a sua "máquina de escrever" electrónica Videowriter - talvez por ter um ecrã e uma unidade de disquetes - com o computador. "Quando falo do computador, já é a contar com a Videowriter". 
O computador propriamente dito só apareceu há duas ou três semanas na vida do escritor, que se diz ainda em fase de adaptação. A Videowriter, essa sim, mais velha, comprou-a em 1989 para substituir uma máquina Hermes, que possuía há mais de 30 anos: "Quando chegou ao fim do livro 'História do Cerco de Lisboa', renunciou ir mais além. Quando se avariava, as pessoas tinham de fabricar a peça. Em conversa com António Alçada Baptista, disse-me que tinha comprado uma máquina estupenda, que era uma Videowriter. Tinha a vantagem de ter a impressora incorporada, mas era um instrumento grande, pesado, difícil de transportar e acabei por comprar um computador Philips em segunda mão. Teve uma grande quantidade de problemas, acabou por não me servir e continuei com a Videowriter." 
Tinha, porém, um sonho: "Sempre sonhei que, um dia, havia de aparecer um computador portátil com impressora. Há um ano, tive conhecimento que a Canon tinha produzido um computador com impressora. Acho que pode resolver-me o problema das viagens e a necessidade, que continuo a ter, de ver a coisa escrita no papel. Enquanto não vir as letras (o preto no branco), duvido sempre. Sou um homem doutro tempo e deste tempo. Vou usando o que aparece, mas sempre numa atitude de desconfiança. Isso é que me leva sempre a imprimir." Desprende o teclado da base do portátil e mostra que ali debaixo são introduzidas as folhas, até dez de cada vez, saindo impressas do lado de trás. O tinteiro aloja-se no canto direito, logo acima do teclado. "É uma espécie de ovo de Colombo. Sendo isto tão óbvio, como é que os outros fabricantes ainda não se lançaram sobre isto?"
Pouco escreveu no novo portátil. Continuou o romance "Ensaio sobre a cegueira", mas talvez não o termine ali por uma questão de fidelidade. "Tenho dúvidas se concluo o romance na Videowriter ou no computador. O mais provável é que o conclua na Videowriter. É uma traição que faço à Videowriter abandoná-la no meio de um livro." Mas assegura: "O próximo livro já vai ser em computador." O que também facilitará a vida ao seu editor; que até agora se via obrigado a utilizar o original em papel, porque as disquetes da Videowriter não são compatíveis com o seu equipamento de fotocomposição. 
Que usos dará ao portátil? Exige-lhe pouco. "Uso o computador como uma simples máquina de escrever. É o processamento de texto, no meu caso muito simplificado. O romance é uma coisa que se vai fazendo palavra por palavra. Não há necessidade de passar blocos de texto de um sítio para o outro. É como escrever um manuscrito ou na máquina, em que cada palavra faz nascer a palavra seguinte. O uso de que faço do computador é muito limitado." 
É prático, limpo, rápido e tem a magnífica vantagem da impressora incorporada - "mas não considero que seja indispensável". A preferência de muitos escritores pela caneta de tinta permanente, a esferográfica ou a velha máquina prova-o.

EQUIPAMENTOS
Um portátil Canon BN22, com uma impressora Micro-BJ incorporada, comprado há duas ou três semanas no Corte Inglés, em Madrid. Custou-lhe 399 mil pesetas. 
O teclado respeita as regras da língua espanhola e, por isso, não tem o til. 
Em compensação, sobre a letra "n" há um til, os pontos de interrogação e de exclamação estão de cabeça para baixo e o menu está escrito em espanhol. 
O Canon substituiu uma "máquina de escrever" Videowriter, da Philips. Conserva um portátil Philips, comprado talvez em 1993, mas nunca o utiliza.

PROGRAMAS 
Windows 3.1: "interface" gráfica sobre o sistema operativo MS-DOS. Write: processamento de texto, em castelhano.

FICHEIROS
Cadernos: notas para os "Cadernos de Lanzarote". 
Cegueira: parte do romance que se encontra a escrever, que em princípio terá o título "Ensaio sobre a cegueira" e cuja publicação prevê para Novembro. 
"É um romance, embora se chame ensaio".  

"Na ilha por vezes habitada" - José Saramago

Pode ser visualizado, via YouTube, aqui
(Voz de Soares Teixeira)

"Na ilha por vezes habitada" - José Saramago"

"Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer.

Então sabemos tudo do que foi e será.

O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as palavras que a significam.

Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos.

Com doçura.

Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites.

Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos ossos dela.

Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.

Cada um de nós é por enquanto a vida.

Isso nos baste."

in, "Provavelmente Alegria"
Caminho, 3.ª edição, página 52