"Há uma semana, mais ou menos, Vicente Verdú pediu-me um artigo para El País, a publicar por ocasião do aniversário. Estive inclinado a responder-lhe que não tinha nada para dizer, ou que nestes momentos não me apetecia, ou que perdi a fé na eficácia dos milhares (ou serão milhões?) de artigos que se escrevem diariamente no mundo, sem falar das crónicas da rádio e da televisão, que não serão menos. Depois, a recordação, ajudada por Pilar, de umas quantas velhas questões que me preocupam, fez-me deitar as mãos ao trabalho, e o que saiu foi isto:
«Como serão as coisas quando não estamos a olhar para elas? Esta pergunta, que ainda hoje não me parece absurda, fi-la eu muitas vezes em criança, mas só a mim próprio me atrevia a fazê-la, não a pais e professores, porque adivinhava que eles sorririam da minha ingenuidade (ou da minha estupidez, segundo uma opinião mais radical) e me dariam a única resposta que não poderia convencer-me: "As coisas, quando não olhamos para elas, são iguais ao que parecem quando estamos a olhar." Sempre achei que as coisas, quando estavam sozinhas, eram outras coisas. Mais tarde, quando já havia entrado naquele período da adolescência que se caracteriza pela desdenhosa presunção com que ajuíza a infância donde proveio, acreditei ter a resposta definitiva à inquietação metafísica que atormentara os meus verdes anos: pensei que, se regulasse uma máquina fotográfica de modo a que ela disparasse automaticamente numa habitação onde não houvesse presenças humanas, conseguiria apanhar as coisas desprevenidas, e desta maneira conhecer o aspecto real que têm. Esqueci-me de que as coisas são mais espertas do que parecem e não se deixam enganar com essa facilidade: elas sabem muito bem que há um olho humano escondido dentro de cada máquina fotográfica... Além disso, ainda que o aparelho, por astúcia, tivesse podido captar a imagem frontal de uma coisa, sempre o outro lado dela ficaria fora do alcance do sistema óptico, mecânico e químico do registo fotográfico. Aquele lado oculto para onde, no derradeiro instante, ironicamente, a coisa fotografada à traição teria feito passar a sua face secreta...
«Alguns anos mais tarde, adolescente ainda, mas já menos intolerante, o acaso da vida mostrou-me que as minhas inquietantes dúvidas eram algo mais que a consequência obsessiva de uma mente em excesso imaginativa e fantasiosa. Depois do que então sucedeu, adquiri mesmo a convicção profunda de que, pelo menos uma vez enquanto por cá andamos, a vida, por misteriosas razões que não ouso perscrutar, decide-se a aparecer nua e sincera aos nossos olhos, sem disfarce. Ou então fomos nós que naquele momento tivemos olhos para a ver tal qual é. As estradas que conduzem a Damasco não são todas iguais, e não é preciso ir montado num cavalo para cair na realidade algum dia.
«Naquele tempo eu ia à ópera sem pagar. Um porteiro simpático do Teatro Nacional de São Carlos, bom amigo de meu pai, fazia-me sinal para entrar quando faltavam apenas dois ou três minutos para começar a função e os espectadores pagantes já tinham ocupado os seus lugares. Excitado, nervoso, subia rapidamente as íngremes escadas que levavam ao último andar, aonde chegava com o coração a saltar-me da boca. (A porta que o benévolo guardião fiscalizava não dava acesso à plateia nem aos camarotes, era só para espectadores pouco abonados, os que tinham de contentar-se com as torrinhas, que assim se chama aos camarotes de última ordem, e com o galinheiro, cujo nome já está a dizer tudo.) Como eu era um dos que não deixavam sequer um centavo na bilheteira, o meu lugar tinha de ser o galinheiro, se é que, chegando no último segundo, ainda lá encontrava um sítio para me sentar... Por diabólico castigo, exceptuando os pouquíssimos espectadores que se apertavam na primeira fila, ninguém conseguia ver dali o palco por inteiro. A culpa tinha-a o enorme camarote real (presidencial depois da República) que, começando à altura dos camarotes de primeira ordem, trepava pelo teatro acima, quase alcançando o tecto, onde, praticamente, pairávamos. Quando os cantores, cumprindo as marcações de cena, se deslocavam para o lado escondido, era como se tivessem passado para a outra face da lua. Ouvíamos-lhes as vozes (os entendidos afirmavam que a melhor acústica do São Carlos era a do galinheiro...), mas tínhamos de esperar pacientemente que a continuação do enredo trouxesse outra vez os artistas à nesga de palco visível de onde estávamos. Encimando o camarote presidencial e dificultando ainda mais a visão, havia (e lá continua) uma grande e sumptuosa coroa real, de talha dourada, símbolo que sobrou das monarquias passadas, agora reduzida a mero adorno figurativo. Com propriedade e com rigor, porém, o que víamos não era a coroa na sua plenitude aparente, a que oferecia a sua magnificência e o seu esplendor aos espectadores privilegiados dos camarotes e da plateia. Nós, os do galinheiro, tínhamos de contentar-nos com o reverso dela, a parte de trás, o outro lado, numa palavra, a ausência. Sim, a ausência. Ou porque tinham querido poupar algum dinheiro em madeira e em folha de ouro, ou porque acharam que as pessoas que viriam a sentar-se ali não eram merecedoras de mais consideração, a coroa do Teatro Nacional de São Carlos não é uma coroa completa, é três quartos de coroa, ou ainda menos. Lá dentro, amparando a real estrutura, viam-se naquele tempo uns sarrafos mal aplainados, fixados com pregos torcidos, muito pó, teias de aranha, alguma vingativa e republicana ponta de cigarro. Como se alguém, nesses distantes e ingénuos dias, tivesse acendido a luz que haveria de iluminar-me a existência, compreendi que o ponto de vista do galinheiro é indispensável se realmente quisermos conhecer a coroa.
«Uma tão exemplar lição, creio eu, ter-me-ia bastado para governar com decência o entendimento. Contudo, o destino (nome literário da vida), como se tivesse em pouca conta a minha capacidade de aprender, ainda quis dar-me, não uma, não duas, mas três lições, qual delas mais sólida, que, somando quatro com a da coroa inacabada, se constituíram, por assim dizer, em quatro pontos cardeais, portanto em bússola completa. A primeira dessas três lições complementares encontrei-a num jornal. (Não é caso para surpreender-nos, num jornal encontra-se tudo.) Tinha lido as notícias, tinha relido algumas delas, não fosse escapar-me o mais importante, e, passando de página em página, de distracção em enfado, de enfado em distracção, fui parar aos problemas de xadrez e de damas, que sempre os havia na imprensa daquele tempo. Eu não era totalmente ignorante destas conhecidas ginásticas cerebrais, porém, naquele momento revelador, não foram os diagramas, em si mesmos, que me atraíram a atenção, mas sim uma frase que se repetia por baixo dos tabuleiros de damas, de todos eles: Jogam as brancas e ganham. Quedei-me a olhar, como hipnotizado, a sentir aquela comichão mental que costuma prenunciar os grandes descobrimentos: vagamente, parecia-me que havia ali uma nova coroa para ver por detrás. De repente, como outra luz que se acendesse, vi. E que vi eu? Isso mesmo, que as brancas jogam e ganham. E por que ganhavam as brancas, por que é que o facto de serem elas a jogar fazia que sempre ganhassem? Pensei que deveria tratar-se de uma convenção adoptada internacionalmente, uma comodidade decidida pelas associações de jogadores de damas, mas, sendo assim, por que é que a convenção era essa e não outra, por que é que não se dizia, por exemplo, jogam as pretas e ganham ou jogam as brancas e perdem? Sábio da minha experiência na ópera de Lisboa, instruído na mágica arte de olhar o que as coisas escondem, compreendi que o desconhecido autor da fórmula (decerto, um branco), ainda que sem conscientemente o ter desejado, não fizera mais do que afirmar, mesmo em tão pacífico campo, a superioridade da sua cor: fora incapaz de evitar que transbordasse para o domínio da linguagem a denúncia involuntária, pelo subconsciente, das relações de dominador / dominado entre branco e preto. Sob a pele da linguagem, estruturada em convenções de toda a ordem, mas sempre guardando uma aparência imparcial e isenta, a matéria turva dos comportamentos só estava à espera de quem simplesmente a removesse e dividisse nas suas partes constitutivas.
«Como outra vez viria ainda a suceder, e essa foi a lição terceira, quando um dia a memória vagabunda me fez recordar um livro visto (visto, não lido) muito tempo antes, um romance que se chamava O Preto Que Tinha a Alma Branca, de Guido da Verona. Andava eu já então a remoer comigo mesmo fortes e honestas dúvidas sobre a efectiva existência da alma, por isso não se estranhará que a lembrança repentina do "ecuménico" título me tivesse conduzido por uma cadeia de raciocínios muito simples, mais ou menos nesta sequência: a alma, sendo imaterial, não poderia, logicamente, ter cor, qualquer que fosse; porém, o autor do livro declara ter conhecido um preto que tinha a alma branca; conclui-se que se trataria de uma excepção, uma espécie de acontecimento teratológico espiritual, pois caso contrário não teria valido a pena escrever o romance; se era uma excepção, então é porque todos os outros pretos tinham a alma preta; se os pretos que não eram excepção tinham a alma preta, então os brancos que não fossem excepcionais tinham de ter, obviamente, a alma branca; logo, a alma tem a cor que a pele tiver; logo, a excepção, no preto, será ter a alma branca; logo, a excepção, no branco, será ter a alma preta. E por aí fora, raciocinando sempre, até doer a cabeça, até chegar a uma "impossibilidade ideológica", um título que, para lisonjear o branco, dissesse que ele tinha a alma preta...
«Finalmente, o quarto ponto cardeal, a quarta lição, a quarta linha de rumo. Clássica, para nada ficar a faltar ao quadro. Muitos e muitos anos antes de eu ir ao teatro descobrir a face oculta de uma coroa dourada, já o Diabo Coxo de Vélez de Guevara tinha andado por aí a levantar os telhados das casas e a pôr à vista os comportamentos privados dos habitantes. Bastante inocentes, aliás, se os compararmos com os comportamentos públicos neste fim de século... Talvez, porém, e assim terminarei, o pior mal não esteja nos comportamentos que se exibem, talvez esteja, sim, nas palavras, nas palavras que falseiam, nas que mentem, nas que enganam. Essas palavras que nos impedem de ver o outro lado das coisas, e também o outro lado das palavras.»
in, "Cadernos de Lanzarote - Diário IV"
Caminho, páginas 96 a 101 (30/06/96)