Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Saramago e a força que sentia do seu público - "Sou uma pessoa amada"

Muitas vezes me questionei:
Qual seria a sensação que Saramago experimentava, ao receber do seu público, o reconhecimento. Como é que a mensagem era recepcionada e intuída?
Saramago, autor tardio dizem muitos, para mim, escritor que chegou até ao povo quando teria de ter chegado. Da entrevista dada à revista Visão (16/01/2003, com José Carlos de Vasconcelos), extrai-se este sentimento "Sou uma pessoa amada, tenho a certeza absoluta".
A atribuição do prémio Nobel, trouxe muitos leitores, mais internacionalização da obra, mas livros traduzidos em mais línguas, mais solicitações, mais exaustão pessoal, mais respostas às mesmas perguntas.
Lê-se na entrevista as recepções por este mundo fora, com centenas e milhares de pessoas para o ouvirem, verem, pedirem um autógrafo, o tal que seja especial - lembro-me de estar em longas filas nos idos tempos de noventas, na feira do livro de Lisboa, no Parque Eduardo VII... realmente o povo tinha por ele uma enorme gratidão pela obra e pelas palavras.
Hoje, nos fins de 2014, do vários cantos deste planeta chegam relatos e memórias, evocações e lembranças.
Os Saramaguianos e as Saramaguianas, encetaram em si um desígnio muito especial - o homem morreu mas a obra tem descententes.




Entrevista de José Carlos de Vasconcelos para a revista Visão em 16/01/2003
(…)
E andaste aí pelo mundo, quase de uma ponta a outra. Como é que resististe, até fisicamente?
Bom, não foi fácil. E continua. Ainda no ano passado, só nos Estados Unidos estivemos, eu e a Pilar, quase um mês, percorrendo-os de uma costa a outra. Em meados de Dezembro chegámos de uma volta de mais um mês, por Portugal, Espanha, Itália. E os convites não param.

Isso tudo, além de muito cansativo, não é, a partir de certa altura, muito chato? Ou os momentos gratificantes fazem com que valha a pena?
A atitude com que vou para essas coisas é muito parecida com a que te referi quanto às entrevistas. Vou contrariado, mas à terceira palavra já estou onde tenho de estar. E essas coisas dão-me muitas alegrias. A maior, perdoe-se-me a vaidade ou presunção, é saber que para centenas ou milhares de pessoas que estão ali, o que lhes vou dizer tem importância. Podem estar enganadas, ou iludidas, mas tem importância para elas. Quando vou a Bogotá e me encontro com um teatro repleto, com 1700 pessoas lá dentro para ouvir falar de livros, e cerca de mil pessoas cá fora a protestarem por não conseguirem entrar; quando na grande praça de Cidade do México apresento um livro (A Caverna) para dez mil pessoas; quando em La Antigua, na Guatemala, havia mais de mil pessoas; quando vou dar uma conferência e me encontro com uma fila de gente que dava a volta toda a um quarteirão para entrar numa sala que já estava cheia; quando em Buenos Aires, a autografar livros na Livraria Ateneo, havia cá fora, sob chuva intensa, dezenas de pessoas à espera de conseguirem entrar – então, sem nenhuma vaidade, tenho de concluir que sou uma pessoa amada. Não é estimada – é amada. Se há alguma coisa de que tenho a certeza absoluta é deste afecto especial que liga muito dos meus leitores, apetecia-me dizer quase todos, em relação ao escritor, mas sobretudo em relação à pessoa. E isso, que acontece também em Espanha, na Itália, no Brasil, em toda a parte, dá-me a maior alegria.

A que o atribuis, dado haver escritores também muito lidos e famosos com que isso não acontece? Ao próprio tema dos livros e às tais opiniões que neles também dás?
Julgo que sim. Essas pessoas não me conhecem, não vieram aqui a casa ver como eu era. Devem é ter encontrado nos livros uma voz e assuntos que lhes interessavam. E um certo tom, a minha tal presença nos romances que escrevo, a implicação constante em cada página, em cada linha, em cada palavra. Eu há muito digo que todos os livros, e já agora em particular os meus, deviam levar uma cinta com estas palavras: atenção, este livro leva uma pessoa dentro. É isto no fundo: os meus leitores encontram nos meus livros a pessoa que eu sou e gostam. Que queres que eu te faça (risos) e que queres te diga mais? Sou um homem de sorte, até nisso sou um homem de sorte.

Há algum caso, alguma história, que te tenha marcado mais?
É muito difícil. Tenho conversado com Pilar sobre isto: as Obras Completas estão incompletas porque lhes falta o outro lado, ou como agora se diz a recepção dos leitores. Gostaria, depois de já cá não estar, que a Pilar organizasse, para publicar, cartas absolutamente extraordinárias, muitas vezes de pessoas sem qualquer preparação académica, de uma emoção raras, que me chegam de toda a parte. E que juntasse aos 30 e tal volumes que eu deixe escritos um ou dois com essas cartas.

Pintor Rogério Ribeiro referência para Saramago

A entrevista que José Saramago concedeu a Carlos Vez Marques (Junho de 2008, revista Ler), aponta logo no início para a referência a Rogério Ribeiro, pintor e artista plástico, revelando a sua importância referencial no mundo Saramaguiano.

"Mas é uma figura a que tem uma ligação muito forte, como o azulejo na fachada da casa e o quadro que tem nesta sala provam. (nota: referência à figura de Blimunda)
Isto, são duas obras de Rogério Ribeiro. O meu querido Rogério, que já cá não está. Quando ao azulejo, havia um nicho para que o dono da casa pusesse ali o que quisesse e nós decidimos pôr ali uma Blimunda, que ele (Rogério Ribeiro) nos desenhou, pintou e pôs lá."





A propósito do lançamento da obra "Rogério Ribeiro uma monografia", na qual José Saramago elaborou um prefácio muito elogioso, percebemos que o pintor Rogério Ribeiro foi muito importante e um vector referencial. http://www.jn.pt/PaginaInicial/Interior.aspx?content_id=577578

Para homem que se diz "desajeitado" na hora de felicitar, José Saramago até nem se saiu mal "Rogério Ribeiro é o melhor desenhador vivo em Portugal". O elogio foi deixado no Porto, ontem, durante a sessão de lançamento daquela que é a mais completa edição consagrada à obra do pintor Rogério Ribeiro. Trata-se de um livro com cerca de 600 páginas editado pela Cordeiros Galeria, que representa o artista de Estremoz há mais de dez anos.
Dessas quase seis centenas, uma foi escrita por José Saramago. "Uma página só, quando muitas não bastariam", diz o escritor, para quem "a substância da arte de Rogério Ribeiro é o assombro de sermos". Quem sabe se propositadamente lidas só lá para o fim da intervenção, estas palavras fecharam a mensagem que o romancista fez questão de deixar e que se resume desta forma "Na pintura há muito mais do que a obra visualmente consagrada - é condição nossa pensar".
Porque "a pintura pode ser entendida também como uma forma de expressão filosófica", Saramago afirma que "o mais importante é o que é invisível", o que vai para além "da simples cor e do simples desenho". Numa só expressão, "é a vontade de sermos outra coisa, como sermos humanos". "O que este livro necessita é que não nos contentemos com a imagem, por mais bela que ela seja", disse ainda, para acrescentar que as cores na pintura de Rogério Ribeiro, como na de outros artistas, "servem para dizer aquilo que o pintor não saberia dizer de outra forma". E porque considera que as cores, essas sim, é que podem ser belas, diz que "é um insulto chamar 'bonito' a um quadro". Além do prefácio de José Saramago, o livro "Rogério Ribeiro, uma monografia" contém textos de Eduardo Paz Barroso, responsável pela concepção editorial, Mário Cláudio, Ana Isabel Ribeiro e do próprio artista.
No próximo dia 9, chega às livrarias portuguesas o novo livro de José Saramago, intitulado "Pequenas memórias", um projecto que o autor tem vindo a adiar desde há 20 anos.
São relatos de vários momentos da sua vida, memórias "que começam pelos quatro anos e acabam aos 14 ou 15", como o próprio referiu ao JN. "Não fui uma criança feliz, mas também não posso dizer que fui uma criança infeliz", confessou, criticando o facto de os pais, nos dias de hoje, "quererem que as crianças estejam sempre contentes".
Saramago faz a apresentação pública da nova obra a 16 de Novembro, dia em que completa 84 anos.



Via Wikipédia
"Rogério Ribeiro (Estremoz, 31 de Março de 1930 - Lisboa, 10 de Março de 2008) foi um artista plástico português.
Fez a sua formação académica em pintura, na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, actual Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.
Foi sócio-fundador da Gravura – Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses (1956), onde desenvolveu intensa actividade como gravador. Trabalhou em cerâmica e em tapeçaria por encomenda de particulares, empresas e organismos oficiais. Em 1961 iniciou a sua actividade de professor de Pintura e Tecnologia na Escola de Artes Decorativas António Arroio (Lisboa). Primeiros trabalhos no âmbito do Design de Equipamento e Gráfico (1964) e colaboração com vários arquitectos nos estudos de cor e integração de materiais e trabalhos artísticos.
Foi professor da ESBAL desde 1970, instituição onde, em 1974, coordenou o grupo de trabalho de reestruturação do currículo escolar na área do Design. Em 1983 foi co-autor do projecto da Galeria de Desenho do Museu Municipal de Estremoz, com Joaquim Vermelho, Armando Alves e José Aurélio, entre outros.
Membro do Partido Comunista Português desde 1975 e do seu Comité Central entre 1983 e 1992, foi fundador da primeira Galeria Municipal de Arte em Almada e também responsável pelo projecto Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, um dos principais pólos culturais do concelho de Almada."




A antiga revista "Bola Magazine" entrevista José Saramago

A antiga e ao mesmo tempo extinta revista "Bola Magazine", em Novembro de 1998, entrevistou José Saramago. 
O mote de lançamento da entrevista é deveras interessante. Qual a visão sobre o desporto, suas eventuais influências e referências, o desporto colectivo...

A revista digital "Blimunda" da Fundação José Saramago, publica no seu número dois, em Julho de 2012, a entrevista.
O número em causa por ser descarregado aqui: http://www.josesaramago.org/blimunda-2-julho-2012/

Preview da entrevista:
"O segundo número da revista Blimunda coincide com o mês em que terminou mais um Europeu de Futebol. Atenta ao que a rodeia, a Blimunda não poderia deixar de abordar este tema, não de um ponto de vista desportivo mas sim analisando a forma como o futebol, esse fenómeno de massas, afeta a sociedade, condiciona resultados políticos ou é tratado pela literatura. Tudo isto se pôde confirmar este ano nos jogos que opuseram equipas como a Alemanha a outras como Portugal, Espanha ou Grécia, momentos que significaram mais do que simples jogos de futebol, momentos que motivaram inúmeras discussões políticas, económicas e sociais. Ainda no dossier sobre este tema, a Blimunda recupera um texto de Fernando Assis Pacheco e outro do colombiano Jairo Aníbal Niño, aqui em formato de som, numa edição da Boca – palavras que alimentam, mostrando que muitas das nossas mais fortes memórias caminham para a par com a bola, de pano ou de pele, jogada na rua ou no campo de futebol da nossa imaginação. A secção Saramaguiana recupera uma entrevista de José Saramago dada à revista A Bola Magazine no ano de 1998. Vamos falar de futebol é o título do conjunto de respostas em que José Saramago aborda temas que partem do futebol e do desporto em geral e que passam pelo Iberismo ou pela luta dos mais fracos contra os mais fortes."


A Bola Magazine, novembro de 1998
Uma bela manhã Portugal acordou e tinha, finalmente, o Nobel que anos após anos lhe era prometido e depois negado. E, no dia seguinte, o País esqueceu-se de tantas das ingratidões que infligiu a José Saramago e transformou-o no mais recente dos seus heróis. E mesmo quando o ouvimos dizer que “nenhuma vitória é definitiva”, ficamos com a certeza de que esta é.
Geralmente é assim: há uma entrevista, marcada e agendada como é natural que aconteça com todas as entrevistas, mas também uma conversa que lhe fica por cima, às vezes não muito por cima, apenas um pouco, outras definitivamente longe daquilo para que as perguntas e as respostas nos conduzem. Com José Saramago houve,portanto, a entrevista, inevitável e incontornável, mas houve sobretudo, em redor dela, uma conversa muito mais bonita porque existem ainda em Portugal pessoas que vale a pena ouvir falar, escutando-lhes atentamente a sabedoria que foram retirando do movimento rotativo da vida.
Como estas coisas têm regras, era a nós que cabia fazer as perguntas. Mas foi ele que foi levando as respostas por onde quis, com as perguntas a perderem, mais cedo ou mais tarde, o significado na sua peugada. De tal maneira que dava vontade de dizer como o padre Manuel Velho, na citação que abre o Memorial do Convento: “Yo no voy, este me lleba”. 
E então ficou desta forma:

Ser o Prémio Nobel é mais ou menos como ser campeão do Mundo da Literatura?
Não acho que seja. Os campeões do Mundo correm, ou jogam, ou lutam uns contra os outros. Nos Prémios Nobel, sejam eles da literatura ou lá do que foram, não existe contacto físico nem exibição de dotes atléticos.

Mas há competição...
Nega de pronto, como se a sugestão lhe causasse desagrado:
Não, não há competição! Cada um está a fazer o seu trabalho. E ao fazê-lo não está em competição com A ou B e muito menos com todos. É o resultado desse trabalho que é objeto da atenção de uma instituição, no caso a Academia Sueca. E, portanto, não se pode falar em... campeonato. Além disso também não está provado que
nestas coisas de Nobel ganhe o melhor.

Como no desporto, aliás. Mas este ano não podemos dizer que não foi o melhor que ganhou...
Ri e interrompe:
Isso não é a mim que cabe julgar.

Se fizesse parte de um júri encarregado de galardoar o Prémio Nobel do Desporto, em quem votaria?
Transparecem-lhe as dúvidas. Rapidamente desfeitas:
Não conheço bem o desporto mundial, nem sequer o nosso, mas vamos colocar-nos no pequeno mundo português: tal como estão as coisas agora, eu dava o prémio à Manuela Machado.

Porque é que o desporto em geral e o futebol em particular têm sido incompatíveis com a literatura? Quer dizer, o desporto não é propriamente um tema literário, pois não?
Aqui entre nós, não é. Mas na América Latina é, e muito. Tem-se escrito, e muitíssimo bem, sobre o mundo do futebol.

Mas qual o porquê de esse fenómeno ser tão localizado?
Não sei como responder-lhe a essa pergunta. No caso da América Latina poderíamos atribuir isso à terrível paixão com que o jogo é vivido por lá.

Aparentemente, por aqui também há paixão...
E conclui, após uma pausa ligeira:
...mas talvez não haja.

Se calhar há apenas facciosismos...
Olhe, se calhar é isso mesmo.

Que me lembre, dos 94 Prémios Nobel da Literatura que o precederam, apenas um, Camilo José Cela, escreveu assumidamente em redor do desporto no seu Onze Contos de Futebol. Alguma vez lhe passaria pela cabeça escrever contos sobre futebol?
Não... Não. E a razão é simples: trata-se de um mundo que não conheço. Em princípio, quem escreve deve ter muito cuidado e não meter-se por assuntos que não domina. Da mesma maneira que não seria capaz de escrever um romance ou um conto em que o personagem principal fosse um presidente do conselho de administração
de uma empresa multinacional, também não seria capaz de meter-me na pele de um dirigente de um clube de futebol ou de um jogador de futebol.

Mas há outros casos. Gente que não escreve sobre desporto mas que, ao longo dos seus livros, passa por lá. O Hugo Claus, por exemplo, como bom belga, não dispensa umas descrições sobre os sprints entre Vervaecke e Bartali; o próprio Vergílio Ferreira tem aquela história do ponta-esquerda a quem amputam uma perna e, na
cama do hospital, continua a sonhar com o momento de marcar o penalti... Em Saramago nem isso acontece...
Até agora nunca me aconteceu...

O distanciamento entre si e o desporto é assim tão grande?
Bom, eu joguei ténis durante muitos anos, vivia na Parede e tinha acesso fácil aos courts. Nado, como qualquer pessoa nada, pratiquei um desporto menos que amadorístico, as mudanças da minha vida afastaram-me da prática desportiva. Mas distanciamento não posso dizer que haja. Sou dos que assistem aos espetáculos confortavelmente sentados frente à televisão. Gosto de ver umas modalidades bem menos que outras. O salto em comprimento, por exemplo, aborrece-me porque é excessivamente repetitivo. Mas aprecio as corridas. As corridas que não são de longa distância, porque essas são excessivamente táticas, deixando a resolução para as últimas voltas, dando vontade de perguntar para que é que se correram todas as voltas anteriores. O futebol tem o velho problema: ou é bem ou mal jogado.

Tal como os livros. Ou são bem ou mal escritos...
E, da mesma maneira que um livro mal escrito se torna entediante, também me sucede estar a ver um jogo de futebol e deixá-lo a meio. Além disso, o futebol de hoje tem uma coisa que não suporto e que é o jogo violento. Não o jogo violento no sentido... razoável. Não é preciso embrulhar os jogadores em algodão-em-rama. Mas existe uma violência, assente na crueldade, que não aceito. Que me incomoda.

Em Portugal, um mau jogador de futebol, para não dizer um péssimo jogador de futebol, pode ganhar a vida decentemente a fazer o que gosta. Um bom escritor arrisca-se a morrer de fome, se o tentar...
Isso desgosta-o?
A resposta é imediata:
É, evidentemente, uma coisa que me desgosta muito. Como me desgosta outra situação que vem nessa linha: um escritor ganha um prémio, não precisa de ser um Nobel, bastam dois ou três mil contos, e é infalível que lhe saia ao caminho um jornalista a perguntar o que é que ele vai fazer ao dinheiro. Pergunta que nunca colocam a um jogador de futebol que ganha, numa temporada, quatro, cinco, seis vezes mais do que um escritor ganha durante a vida. Eu estava em Frankfurt, dei uma entrevista a uma cadeia de televisão, já não sei qual, e lá veio a pergunta: “E agora o que é que vai fazer a esse dinheiro?” Claro que podia ter respondido: “E o que é que o senhor tem a ver com isso?” Mas não, limitei-me a dizer-lhe: “Já perguntou isso alguma vez ao Ronaldo, ao Bebeto ou ao João Pinto?” O Ronaldo, se calhar, não sabe mesmo o que fazer ao dinheiro... Lá saberá. E, muito naturalmente, compra coisas que eu nunca compraria. 

Para lá da vidraça há um céu claro, sem nuvens e sem pássaros. E uma Lisboa que fervilha, uma quinzena de andares abaixo: “Viajo devagar, o Tempo é este papel em que escrevo”, dizia Saramago nas páginas do seu Manual de Pintura e Caligrafia. Viajamos também devagar a todo o comprimento das estradas da conversa. Que ele conduz sem sobressaltos. Ele que não gosta de conduzir...
Já li, numa entrevista que deu, se não me engano ao Baptista-Bastos, que o futebol deixou de exercer em si qualquer atração. Qual foi o porquê da desilusão? Houve alguma razão especial para isso?
Não. Eu fui sócio do Benfica com os meus oito ou nove anos, Por influência do meu pai, claro está!, ele era um benfiquista ferrenho, no tempo do Estádio das Amoreiras, com aquelas bancadas e aquele
peão de terceiro mundo. Mas depois as mudanças de vida levaram-me por outros caminhos. Não me apetecia estar a sair de casa para ver um jogo. Nunca fui suficientemente entusiasta para andar de bandeira e cachecol e toda essa parafernália que fez com que o espetáculo se tenha deslocado do campo para as bancadas. O que, aliás, está de acordo com os atuais costumes do Mundo. Além do mais desagradei-me...

Interrompe-se. Muda de ideias e decide-se pela inflexão do discurso:
Também não quero estar aqui com a conversa saudosista do “antigamente é que era bom”. Mas a verdade é que, nessa época, o jogador tinha o seu clube, e clube e jogador estavam pegados um ao outro. A camisola era uma coisa respeitável. Quase como uma outra bandeira. E o Benfica viveu o orgulho de só ter jogadores portugueses... Num tempo não muito distante. E agora o que é que acontece? Caiu-se num exagero. Onde estão hoje o Benfica, o Sporting, o F.C.Porto? O futebol não passa de um negócio. Desapareceu uma certa solidariedade de grupo. Isso fez-me desinteressar pelo futebol, mas também é certo que nunca fui um grande aficionado.

No dia em que a Academia tornou público o seu nome como vencedor do Nobel, um dos seus amigos de infância, quando lhe pediram para recordar alguma coisa de si, disse simplesmente: “Foi o primeiro miúdo do nosso tempo a ter uma bola de cauchu...”
Faz um gesto como para impedir-nos de continuar:
Você sabe que a nossa memória é a coisa mais suspeita que se possa imaginar. Ela é capaz de inventar coisas que não existiram e passar a acreditar nelas. Até acontece que eu nunca tive uma bola de cauchu. Lembra-me bem de andar por lá a dar os meus pontapés mas a bola não era minha.

O poeta T. S. Eliot, por acaso também ele Nobel lá pelos idos de 48, dizia que “o futebol é um elemento fundamental da cultura contemporânea”.
Que comentário lhe merece esta frase?
Mexe-se na cadeira e sorri:
O comentário que essa frase me merece é o de que nem sempre os poetas têm razão.

E continua, bem-disposto:
Essas coisas são sempre muito pessoais. E nada pior do que as citações dos escritores. Primeiro, porque correspondem a uma ideia pessoal; depois, porque as formulam como se fossem ideias universais. O futebol converteu-se num espetáculo e já nada tem praticamente de desporto. Apenas isso.

Deixemos então as frases dos outros e passemos para uma frase sua, retirada de uma entrevista concedida ao Jornal de Letras: “O êxito e o fracasso são coisas que têm que ver com o temperamento”. Acha que os campeões, os vencedores, são assim, fabricados por eles próprios, mesmo contra as circunstâncias?
Às vezes as circunstâncias desfazem as pessoas. Mas também é certo que as circunstâncias nos ajudam em momentos fundamentais das nossas vidas. Eu tenho de dizer que fui obrigado a lutar contra umas quantas circunstâncias. E, frequentemente, nem sequer estamos conscientes de que travamos uma batalha. Temos um objetivo e tentamos caminhar em direção a ele. E neste trabalho tão discreto que é de todos os dias acabamos por vencer essas circunstâncias sem que essa vitória se confunda com um grande acontecimento, pelo contrário, seja algo de absolutamente natural. Depois olhamos para trás e ficamos com a noção dos obstáculos que ultrapassámos.

Você é, neste momento, o rosto mais visível de um certo iberismo...
Eu não sou exatamente iberista...

É o autor do conceito do transiberismo, o que para a questão que lhe quero colocar vai dar ao mesmo. Quando se trata de um Campeonato do Mundo ou de uns Jogos Olímpicos, por quem torce: pelos portugueses, pelos ibéricos, pelos lusófonos?
Eu defendo que devemos sair deste pequeno quintal que é o nosso e pensarmos que estamos numa realidade maior que é a Península Ibérica. Mas também não é ficar por aí. Olhar para o outro lado do Atlântico, para a América, para a África. E esta recente cimeira Ibero-Americana fez-nos perceber que podemos esperar do futuro algumas coisas magníficas nesse domínio, logo veremos o quê. Quanto ao que me pergunta, enfim, eu continuo a ter uma forte costela patriótica. Agora se são, por exemplo, espanhóis a defrontar alemães, eu fico do lado dos espanhóis, naturalmente. O que também não significa muito, porque prefiro sempre aqueles que fazem o seu trabalho bem feito. E se uma boa equipa alemã joga com uma boa equipa portuguesa, vejo por vezes a minha preferência cair para aquele que está a jogar melhor, independentemente do patriotismo. Com uma exceção, em todo o caso: quando um pequeno joga com um muito grande, mesmo que jogue mal estou a favor do pequeno.

“Sou tão pessimista que acho que a Humanidade não tem remédio. Vamos de desastre em desastre e não aprendemos com os erros.” 
Quem escreve desta forma viveu obrigatoriamente um sem-número de desilusões. E, no entanto, o seu rosto pacificado, tranquilo, desmente-as. Fala por vezes baixo, devagar, como que para si próprio.
Mas as suas frases nunca perdem a fluência, apesar das pausas que sugerem os pontos parágrafos que não comparecem ao encontro das suas prosas.
Quando fala dos portugueses e da “sua capacidade de esperar que não é mais do que um desejo de adiar” não está , de algum modo, a explicar a razão da escassez dos nossos êxitos?
Talvez sim. Porque um dos nossos males é a dificuldade de metermos as mãos à obra. Quando decidimos que é preciso fazer alguma coisa – vamos pôr de parte acontecimentos excecionais como a Expo-98, que esses concentram os objetivos de toda a gente e, portanto, fazem-se, refiro-me ao trabalho do dia a dia – andamos demasiado. Alimentamos a ideia “se não temos hoje, amanhã haveremos de ter”. E se assim não fosse, talvez tivéssemos muitas coisas hoje. Não quero com isto dizer que devemos cair na obsessão de fazer tudo o possível no imediato. O dolce farniente tem os seus encantos, mas infelizmente tornou-se um mal nacional. E esta espécie de resignação marcou-nos muito. Com o tempo, as coisas mudaram. Nos dias de hoje vivemos um frenesim de nos comportarmos como se comportam os outros, que faz com que tenhamos perdido uma forma muito própria de viver e caído no dilema de não saber o que imitar e quem imitar. Andamos à procura de um modelo...

O que é estranho num povo antigo como o nosso.
Sim. O que é estranho num povo que vai para nove séculos de História. Parece-me que já deveríamos ter encontrado uma forma de sermos suficientemente independentes na descoberta dos nossos caminhos. Sujeitos a influências, claro está!, com uma certa permeabilidade, mas sem esta precipitação num processo de imitações sucessivas que me conduz à dúvida de não saber muito bem quem somos. E esse não é. como compreende, o caminho do sucesso.

Faz uma pausa, junta as pontas dos dedos, e conclui:
Tenho, sobretudo, esta sensação nada agradável de perceber que não temos um projeto nosso. Que povo é que nós temos? Ou já não temos nenhum? Estaremos prontos a diluir-nos em qualquer coisa?
Para muitos de nós, o passado que temos não interessa. E quem não tem passado não tem presente. E muito provavelmente não tem futuro.

Os portugueses não sabem ganhar ou não sabem perder?
Acho que as duas situações são verificáveis. Não sabem ganhar porque cada vez que ganham passam logo a dizer que são os melhores. E não percebem que tudo isso é transitório. Não sabem perder porque vão logo à procura de justificações. Não querem aceitar-se a si mesmos na relatividade dos êxitos e dos fracassos. Acho que há uma regra de vida, que obviamente não imponho a ninguém mas que guardo para mim: as vitórias e as derrotas são idênticas numa coisa: nem uma nem outra são definitivas. Era assim que deveríamos encará-las., tanto na vida como no desporto.

E usa um exemplo para reforçar a sua teoria:
Não faz sentido vivermos ainda hoje do êxito de um terceiro lugar no Mundial de 1996. Como também não faz sentido encararmos os momentos em que as coisas não nos correm bem como momentos de humilhação. Tenho a impressão de que dramatizamos isso por não sermos capazes de nos aperceber do real sentido dramático da existência noutras áreas. Quando lhe disse que atribuiria o Nobel do Desporto à Manuela Machado é porque encontro na sua competição com os outros a luta real que ela tem consigo própria. E isso causa-me a maior das admirações e dos respeitos. Quem luta contra os seus próprios limites é para mim um exemplo. Porque acho que toda a gente sabe mais do que imagina, e este saber de que falo não é o saber que se aprende nas escolas e pode mais do que imagina. Precisa é de exteriorizar aquilo que sabe mesmo que julgue que o que sabe não tem importância.

O José Saramago também foi, à sua maneira, um maratonista.
Talvez.

E de novo um sorriso desenha-se-lhe no rosto:
Porque vivi muito... e eu costumo dizer que se tivesse morrido aos 60 anos não teria ganho os prémios que ganhei. E porque fui trabalhando e fazendo as coisas em que acreditava. Claro que o Nobel não era um objetivo. O objetivo foi sempre o livro seguinte, sem saber onde é que eles me levariam. Tentando fazer continuamente melhor. Estamos no caminho e só quando chegamos ao fim dele é que fazemos uma pausa para pensar no que é que aconteceu. O António Machado dizia e com razão: “No hay camino, se hace camino al andar”. 

O caminho faz-se a andar.
Como as conversas.