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"O planeta dos macacos"
"Alguns leitores talvez ainda se lembrem de um romance francês, de Pierre Boulle, salvo erro, que no tempo da sua publicação foi recebido com grande favor do público e aplauso da critica, penso eu que mais pelo carácter insólito do tema do que por indiscutíveis méritos literários. Chamava-se a festejada obra O Planeta dos Macacos, e da curiosa mas afinal pouco surpreendente história, o que se pode dizer, simplificando, é que já estava, toda ela, contida no título: um planeta povoado por macacos organizados segundo modelos políticos, culturais e sociais nossos conhecidos, porquanto eram, por assim dizer, mera repetição dos sistemas que a Humanidade tem criado ao longo dos séculos.
Na sociedade daqueles macacos podia-se encontrar tudo o que, para bem e para mal, vem definindo a sociedade dos homens: havia chefes, facções, intrigas, crimes, polícias. Havia macacos maus e macacos bons, macacos apaixonados e macacos ciumentos, macacos feios e macacos bonitos. Exactamente como cada um de nós e as pessoas que vivem na nossa rua.
Devo confessar que nunca li o livro. O que dele imagino saber, hoje, é tão-somente o que viria a ser-me explicado, anos depois, no filme que dele foi extraído, produto ingénuo entre os que mais o sejam, às vezes ridículo pela preocupação moralista de acentuar a evidência de que tudo ali se passava como se, em vez de macacos, os heróis e figurantes da história fossem representantes da nossa espécie. A intenção acabava por tornar-se pleonástica ao serem introduzidos no conflito alguns seres humanos, dos autênticos, astronautas desembarcados no planeta em consequência duma avaria da nave em que viajavam: tornava-se então medianamente claro que tudo aquilo era a mesma gente, os macacos comportando-se como homens, os homens comportando-se como macacos. E, para que não restasse a mínima dúvida sobre o derradeiro significado da mensagem, descobriríamos, nas derradeiras sequências do filme, que os astronautas, sem saberem, tinham regressado ao entretanto destruído planeta Terra, que havia sido palco duma guerra atómica e onde os macacos tinham ocupado o lugar dos homens.
Ora, é tempo de recordar, as relações de identidade entre homens e macacos começaram há muitos e muitos séculos, quando o inglês estava ainda por inventar e portanto nem podia saber-se onde estariam e quem viriam a ser os tataravós de Darwin. O que quase toda a gente ignora é que o segredo de tais relações, íntimas, no exacto sentido do termo, está inscrito e revelado, de modo maravilhoso mas edificante, nuns antiquíssimos textos sobre a criação de Adão, segundo os quais (transcrevo de Os Mitos Hebreus, de Robert Graves e Raphael Patai) «Deus tinha dado a Adão um tamanho tão grande que quando estava deitado se estendia de um extremo ao outro da Terra, e quando se levantava a sua cabeça ficava ao nível do Trono Divino. Alem disso, tinha uma beleza tão indescritível que embora posteriormente as mulheres mais belas parecessem macacas em comparação com Sara, a esposa de Abrão, e Sara tivesse parecido macaca em comparação com Eva, a própria Eva parecia uma macaca em comparação com Adão, cujos calcanhares – sem falar do rosto – brilhavam mais que o sol. No entanto ainda que Adão tenha sido à imagem de Deus, também ele parecia um macaco em comparação com Deus». A conclusão que daqui se extrai não se limita a ser lógica, é imperativa e fulminante: desde que o mundo nasceu, desde o primeiro sopro da Criação, digamos mesmo a partir do pensamento primordial concebido pelo Criador na sua transcendental cabeça, logo aí ficou providenciado, para todos os tempos vindouros, que para o homem, macaco desde Adão, sempre haveria outros homens a quem teria o direito e o poder de tratar como macacos, em conformidade com as normas e as nomenclaturas estabelecidas, de raça, cor, religião, classe, riqueza, ideologia, costume, etc.
Os exemplos, mais do que abundarem, sobejam. Bastará recordar aquele macaco que foi Giordano Bruno, queimado pela Igreja Católica,e, já que não é possível referir aqui, página por página, a História Universal, tanto a remota como a recente, lembremos apenas que para a Alemanha de Hitler os judeus eram macacos, que hoje, para os judeus, são macacos os palestinos, e que, par os muçulmanos em geral, Salman Rushdie, será macaco até ao fim da vida. Sábio, lúcido e céptico era Castelão, esse admirável galego que os Portugueses deveriam conhecer melhor, quando nos falava daquele homem que um dia resolveu comprar um cão para poder ter em quem mandar. O pobre diabo, colocado por um negro destino nos últimos lugares da escala social, fez de cão macaco para poder sentir-se homem. E eu, também macaco de macacos, começo a pensar que a Humanidade, afinal das contas, não passa de um macaco neurótico que morde sem parar a sua própria cauda.
(Páginas 101 a 108)