Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 12 de março de 2016

"Aproximação a uma textura do pintor" - Sobre José Santa-Bárbara

"Aproximação a uma textura do pintor" 

A unidade e o plural
Algumas das obras de José Saramago apresentam a curiosidade de as suas personagens serem identificadas e incorporadas na acção desprovidas de nome próprio. É o caso do "Manual de Pintura e Caligrafia" com a simples e residual identificação através de letras maiúsculas, ou os dois "Ensaios", o da Cegueira e Lucidez, e também em "As Intermitências da Morte". Nestas obras existem características da personagem que se sobrepõem ao seu nome, entre outros são o caso por exemplo do violoncelista, da mulher do médico, do presidente da câmara. As personagens foram assim identificadas ao mesmo tempo que o autor criou espaço e estrutura para uma aproximação à causa (ou acção) em detrimento da sua nomeação. A causa ou a acção é plural e não reduzida pelo individuo, lá caberão todos os nomes. 
Ao invés, outras obras como o "Levantado do Chão" ou o "Memorial do Convento", revestem-se de um carácter plural, onde a nomeação dos seus interpretes são acima de tudo sinónimo de unificação de classes da sociedade que se encontram menos representadas ou em posição de subalternidade e dependência para com os poderes instituídos. Será transversal e constante em toda a sua obra, as vozes e palavras dos considerados mais fracos e desprotegidos. As "vozes" e a coloquialidade que se manifestam em diversos momentos; por exemplo, nas lutas dos camponeses das terras alentejanas ("Levantado do Chão") ou dos operários na construção do Convento de Mafra ("Memorial do Convento"), ultrapassam a dimensão física que cada nome pode personalizar enquanto unidade ou individuo, para se revestir de uma dimensão absolutamente colectiva.
Em suma, a atribuição de um nome à personagem ou a recusa da sua nomeação, produzirão o mesmo efeito - a transmissão da voz e da mensagem de todos através de um, seja ele o "cão das lágrimas" ou a "Blimunda".

José Santa-Bárbara    
A obra do artista plástico e pintor José Santa-Bárbara (que aqui recupero duas pinturas emblemáticas), no que se refere à sua abordagem da temática Saramaguina, é no meu entendimento sem querer de alguma forma ser redutor, a soma das vontades e desassossegos que José Saramago gerou em cada personagem. 
Algo que me fascina profundamente nesta complementaridade entre "Josés", Saramago e Santa-Bárbara, e que me permite perceber a existência de uma atmosfera de cumplicidade, absoluto conhecimento mútuo das obras e quase transferência de conteúdos (pintor e escritor), é a forma como o pintor consegue absorver o espírito, tanto ao nível da cena do livro e personagem, como da obra em termos gerais, para dar corpo e textura visual a algo que em geral não é identificável ou identificado por palavras do escritor e transportar assim para a tela o corpo de um sentimento ou sensação de personagem.

Aqui presto a minha homenagem ao artista José Santa-Bárbara, criador destas sensações que aqui quis deixar testemunho.

Rui Santos (12/03/2016)   

Aqui deixo o enquadramento das pinturas com alusão a fonte do texto
"O cão das Lágrimas" Pintura a óleo de José Santa-Bárbara

(...) "A mulher do médico vai lendo os letreiros das ruas, lembra-se de uns, de outros não, e chega um momento em que compreende que se desorientou e perdeu. Não há dúvida, está perdida. Deu uma volta, deu outra, já não reconhece nem as ruas nem os nomes delas, então, desesperada, deixou-se cair no chão sujíssimo, empapado de lama negra, e, vazia de forças, de todas as forças, desatou a chorar. Os cães rodearam-na, farejam os sacos, mas sem convicção, como se já lhes tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara, talvez desde pequeno tenha sido habituado a enxugar prantos. A mulher toca-lhe na cabeça, passa-lhe a mão pelo lombo encharcado, e o resto das lágrimas chora-as abraçada a ele. Quando enfim levantou os olhos, mil vezes louvado seja o deus das encruzilhadas, viu tinha diante de si um grande mapa (...) 

(...) Os cães foram ficando para trás, alguma coisa os distraiu pelo caminho, ou estão muito habituados ao bairro e não querem deixá-lo, só o cão que tinha bebido as lágrimas acompanhou quem as chorara, provavelmente este encontro da mulher e do mapa, tão bem preparado pelo destino, incluía também um cão. O certo é que entraram juntos na loja, o cão das lágrimas não estranhou ver pessoas estendidas no chão, tão imóveis que pareciam mortas, estava habituado, às vezes deixavam-no dormir no meio delas, e quando era hora de se levantarem, quase sempre estavam vivas. (...)

(...) Acordem, se estão a dormir (...) 

(...) Tem, porém, a palavra comida poderes mágicos, mormente quando o apetite aperta, até o cão das lágrimas, que não conhece linguagem, se pôs a abanar o rabo, o instintivo movimento fê-lo recordar-se que ainda não tinha feito aquilo a que estão obrigados os cães molhados, sacudirem-se com violência, respingando quanto estiver ao redor (...)

in, "Ensaio sobre a Cegueira"
Caminho, páginas 226 e 227 (1995)


Blimunda "Nunca te olharei por dentro" - Óleo sobre Tela (60*73cm)
de José Santa-Bárbara (Informação livro/catálogo "Vontades")

(...) "Se começa a chover, não teremos onde recolher-nos, depois levanta os olhos para as nuvens, é uma única placa sombria, cor de ardósia, Se as vontades são nuvens fechadas, quem sabe se não ficarão presas nestas, tão escuras e grossas que nem o próprio sol se vê por, trás delas, e Blimunda respondeu, Pudesses tu ver a nuvem fechada que dentro de ti está, Ou de ti, Ou de mim, pudesses tu vê-la, e saberias que é bem pouco uma nuvem do céu comparada com a nuvem que está dentro do homem, Mas tu nunca viste a minha nuvem, nem a tua, Ninguém pode ver a sua própria vontade, e de ti jurei que nunca te veria por dentro, mas tu, Baltasar Sete-Sóis, minha mãe não se enganou, quando me dás a mão, quando te encostas a mim, quando me apertas, não preciso ver-te por dentro, Se eu morrer antes de ti, peço-te que me vejas, Morrendo tu, vai-se-te a vontade do corpo, Quem sabe. (...)

in, "Memorial do Convento"
Caminho, página 139 (1982, 20.ª edição de 1990)

Citador #46 - “José Saramago, la importancia del no” em entrevista a Christian Kupchik

"Embora soe algo paradoxal, diria que entre história e ficção a diferença não é grande demais. Ao escrever uma história - porque disso se trata -, o historiador faz um pouco o que faz o romancista: escolhe os fatos e os concatena, vale dizer, encontra relações entre eles em função de conseguir um discurso coerente. O mesmo se exige de um romance. Pode ser mágico, fantástico ou qualquer coisa, mas até a fantasia e a imaginação mais disparatadas precisam de uma coerência. Um livro de História apresenta algo predeterminado. Os fatos estão ali, e um fato traz como consequência outro, e outro, e outro. Há uma espécie de fatalidade histórica que faz que as coisas sejam como são e não de outra maneira. Então, ao dirigir os fatos, ao organizá-los, eu diria que o historiador se comporta como um romancista e o romancista como um historiador."
“José Saramago, la importancia del no”
Christian Kupchik entrevista José Saramago para o "El País" (Montevidéu, 09/1995)
Publicado posteriormente em "La Época" (Santiago do Chile, 15/10/1995) 


"Qual é a verdadeira História do cerco de Lisboa?" em entrevista de Clara Ferreira Alves - Expresso (22/04/1989)



"Os problemas do erro e da verdade, ou da verdade e da mentira, são uma constante de todos os meus livros. E lembro que num diálogo entre o Scarlatti e o Bartolomeu de Gusmão (em Memorial do convento), um deles - não me lembro agora qual - diz que acredita nas virtudes do erro. O terreno vago entre o sim e o não é tão largo que nele podemos andar à vontade. E neste livro (História do cerco de Lisboa) chega-se ao fim sem saber que história escreveu o revisor sobre o cerco de Lisboa.
Uma é a história do livro, esse objeto, outra a do historiador, outra a do narrador e outra a literalmente ignorada e sobre a qual o narrador supostamente terá trabalhando, a do revisor. Qual é a verdadeira História do cerco de Lisboa? Nenhuma. A do historiador tem erros, a do revisor está inquinada de um vício fundamental, um não que contradiz os fatos históricos, e a do narrador é subjetiva. Tão pouco é a História do cerco de Lisboa a que vai aparecer nas livrarias, porque essa em si mesma não é coisa nenhuma."
“O cerco a José Saramago”
Clara Ferreira Alves entrevista José Saramago 
Expresso - 22 de Abril de 1989