Aqui, o link da entrevista original, no site da autora,
em, http://anabelamotaribeiro.pt/jose-saramago-a-pretexto-de-a-viagem-do-122930
"José Saramago (a pretexto de "A Viagem do Elefante")
José Saramago num sábado à tarde. Sala aquecida, luz fria de um Inverno que ainda não é, chilreio de meninos que passam no bairro. Talvez de alguns pássaros, também. Ele parece ser maior do que a casa; melhor, as pernas parecem não caber no sofá, no espaço disponível. Troca-as, destroca-as, o joelho sempre erguido e pontiagudo. Tem ainda a imponência de um gigante. Mas agora seco, delgado – como o avô Jerónimo – o cabelo ralo, um fio de voz. De muitas palavras – ao contrário do avô Jerónimo. Nessa tarde, Saramago foi assim.
Ganhou peso, tem uma espécie de protuberânciazinha no lugar da barriga. Há um ano julgou que morria. Pensou que não avançaria nas 40 páginas já escritas. Avançou. Ganhou peso. Ou, como Saramago diria, porque é muito ordenado no pensamento, ganhou peso, avançou. Chegou ao seu destino. Escreveu “A Viagem do Elefante”.
Saramago empenhou na escrita do livro a sua palavra e a sua vida – como se pode ler. Por agora, o destino é esse. Depois, não pode ser outro senão a morte. Conversa com um homem lúcido.
O livro relata a viagem de um elefante, presente de casamento do rei Dom João III e Dona Catarina a Maximiliano de Áustria, de Lisboa a Viena. É uma “visita sentimental de um bruto paquiderme”, que passa por Valladolid, o mar, Génova, as montanhas; Viena, por fim. Passa por lobos e desfiladeiros, aldeias curiosas, em ambiente de campanha. Atravessa a Igreja Católica sedenta de um milagre e as lutas internas com o luteranismo. O condutor do elefante não é aquele que conduz a história – esse papel fica para o narrador. Tem um nome indiano que significa branco. E o elefante, quem é? E para onde vai, além de Viena?
Começamos pelo livro: “A ressurreição, afinal, estava sobretudo, dependente da livre vontade de lázaro e não dos poderes milagrosos, por muito sublimes que fossem, do nazareno. Se lázaro ressuscitou foi porque lhe falaram com bons modos, tão simples quanto isso”. Na sua doença, foi você que quis viver ou foi Pilar que lhe falou com bons modos?
Eu não lhe podia falar com maus modos. Nem tinha forças. E ela muito menos. Comunicávamos com as frases que eu conseguia arrumar na minha cabeça, entre o cá e o lá em que me encontrei numa fase – demasiado longa, para meu gosto. Salvar-me, transformou-se no objectivo e desejo de todos os meus amigos, e, no caso de Pilar, numa obsessão. Enfim, escapei. Dizer que lhe devo a vida… Devo-lhe a vida a ela, aos médicos, a toda a gente que me manteve à tona, e também devo a vida a mim mesmo.
Antes disso, estava entre a consciência e a inconsciência?
Tenho a memória de que qualquer coisa na minha cabeça entrava em deriva, e eu deixava-me ir. Não era ir atrás dos pensamentos, porque, em rigor, não posso dizer que estava pensando. No quarto, já com largos períodos de consciência total, ficava por vezes numa espécie de limbo. E eu via isso. Era como se fosse um ecrã. A comparação maior é o céu negro com quatro estrelas. Mas no meu caso não eram estrelas. Eram simplesmente quatro pontos brancos, dispostos em quadrilátero, não regular. Era para mim claríssimo, e defenderia essa ideia contra quem fosse, que eu era aquele quadrilátero.
Como se se visse de fora?
Sim. Esta complicadíssima experiência teve outro efeito: usamos uma linguagem que não é sempre a mesma, que vai variando consoante os tempos que vivemos. Somos um armazém de sedimentos, ou extractos linguísticos. São os que usámos e retivemos nos diferentes períodos da nossa vida. Claro que quando estava na aldeia, na minha adolescência, tinha uma linguagem, não só da época como do lugar. E ficou cá. Quando a minha vida mudou, em Lisboa, e aos 24 anos publico um livro, já era outra pessoa, outra linguagem, outro modo de entender as coisas.
No livro, dois personagens mudam de nome. O condutor do elefante passa de Subhro a Fritz e o elefante de Salomão a Solimão. Como se uma palavra diferente dissesse respeito a uma outra identidade.
Exacto. O que é que aconteceu durante a minha doença? É que a ordem destes sedimentos alterou-se. Encontro-me diante de uma evidência, que demonstraria com o próprio livro. Este livro está escrito de uma maneira que é simultaneamente moderna e quase arcaica. Algumas coisas que estavam lá no fundo, nessa revolução interior de extractos linguísticos, passaram à superfície. Na hora de escrever o livro apresentaram-se-me construções frásicas, certas utilizações de verbos, palavras que não recordava ter usado nos últimos 40 anos.
É pela palavra que nos fazemos, que nos criamos, que nos salvamos.
Não temos outra coisa. É que não temos outra coisa. Somos as palavras que usamos. A nossa vida é isso. Se eu digo: estou pensando, e me perguntar: “em quê?”, a minha resposta só pode ser com palavras. Não posso tirar o pensamento da cabeça e pô-lo em cima da mesa: aqui está o que eu estava pensando.
O livro anterior a este é um livro de memórias, em que se volta, sobretudo, para a infância – um sedimento muito antigo, onde as palavras eram outras. O inconsciente tê-lo-á guinado para aquele lado? Como é que passa de um livro ao outro?
O livro d’ “As Pequenas Memórias” é escrito com linguagem que uso hoje. No caso d’ “A Viagem do Elefante” é como se houvesse outra mão que me guiasse. Para que eu aceitasse, recebesse e utilizasse palavras e expressões. O que mais caracteriza este livro é o tom narrativo, o modo de narrar. O narrador é um personagem numa história que não é sua. Sempre defendi a ideia de que o narrador não existe. Neste livro resolvo a questão – pelo menos resolvo-a para mim, que é a única coisa que importa. Passando a considerar-me autor sim, mas autor-narrador, não dissociado. Assumo tudo.
É o narrador-autor, aquele que conduz a viagem. Mas está também nas outras personagens? No cornaca (aquele que guia o elefante), no comandante (que se pode imaginar ser um alter-ego seu), no elefante.
Provavelmente estou em todas as personagens. Os dados históricos comprovados que se referem à viagem deste elefante cabem numa página, e ainda sobra. Portanto, este livro é um livro de invenção. As personagens históricas, o arquiduque, a arquiduquesa, D. João III, a Rainha Catarina, vejo-os mais como comparsas – embora estes últimos tenham um papel, o que têm para dizer tem importância no contexto do livro. O resto, o capitão de cavalaria, os austríacos, toda a gente que se vai encontrando pelo caminho, são produto da imaginação. Eu não seria o arquiduque, embora certas manifestações poderia aceitar como minhas. A arquiduquesa é uma sombra que passa, destinada a parir 16 vezes. E temos o elefante.
É fácil olhar para ele como metáfora da própria vida.
É. Não há nada que o elefante faça que possa ser interpretado como consequência de um pensamento seu.
Diz, aliás, ao longo do livro, que não se pode saber o que o elefante pensa.
Ele não tem palavras, não usa palavras. Se os elefantes pensam, eu não sei como é que pensam. Se nem sei muito bem como é que pensa o meu cérebro… O Torga, nos “Bichos”, que são uns contos magníficos, antropomorfizou tudo – aqueles bichos pensam. Eu não queria isso. Queria que o meu elefante fosse levado de Lisboa a Viena como um animal que não sabe onde o levam, que não tem nenhuma ideia de qual possa ser o seu destino e que vai andando, porque outros o levam, e também vão andando. Realmente, é um pouco como a vida. O que dá sentido a este livro é o final – o final da vida deste animal, Salomão. Como tinha que acontecer, esfolam-no. A pele é oferecida pelo arquiduque a um conde qualquer.
E há aquele detalhe medonho: de usarem as patas para pôr bengalas e bastões. As mesmas patas que poderiam ter produzido um milagre, no miolo do livro.
Sem isso, provavelmente o livro não existiria. A viagem do elefante, a autêntica viagem, é o que o leva a isso. As suas pernas andaram milhares de quilómetros, estiveram na Índia antes de o trazerem para Lisboa, serviram-no. E essas mesmas pernas são cortadas e transformadas irrisoriamente num recipiente para pôr as bengalas, os guarda-chuvas, as sombrinhas. Esse é o destino do elefante que faz essa viagem, com episódios épicos, e que acabou ali. A epígrafe do livro acompanha isto: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”. Claro que em termos latos, aquilo que nos espera é sempre a mesma coisa: a morte. Neste caso, não é só a morte, é o destino final. Caricato. Disseram-me que até há pouco tempo, essas patas ainda estavam no lugar onde tinham sido postas.
Escreve na primeira parte do livro: “É a lei da vida: triunfo e olvido”. Perguntam o que vai acontecer ao elefante, e a resposta é: vão dar-lhe umas palmadas – que nós diríamos nas costas - vai haver muita gente nas ruas, e depois esquecem-se dele. Consigo, também vai ser assim?
Inevitavelmente. Não vale a pena que tenhamos ilusões. Pode não acontecer em 50 anos, e talvez em 100 anos ainda haja quem me leia. Depois passo a ser um nome. Um nome que algum excêntrico vai ler e conhecerá. Quem é que, no momento em que estamos aqui a conversar, está a ler o Camões? – para além dos que tenham de lê-lo por obrigação. Quem é que está a ler o Gil Vicente, Dom Francisco Manuel de Melo, ou Padre António Vieira? Quem é que tem paciência para ler sermões, mesmo que eles sejam um esplendor?
Desde quando tem a noção de que a sua vida será também triunfo e olvido?
Desde sempre. Este pendor relativizante começou por mim mesmo. Depois do “Ensaio sobre a Cegueira”, disse que se pudesse ser recordado por alguma coisa no futuro, que me recordassem como o criador do Cão das Lágrimas. Já vê que é pedir bastante pouco… Ninguém escreve para o futuro, ao contrário do que se julga. Somos pessoas do presente que escrevemos para o presente. Também pode acontecer que os livros deixem de ser livros e que o nome do autor continue como uma referência.
Abrimos uma chaveta para dizer: José Saramago, aquele que inventou o Cão das Lágrimas, escritor, comunista. Pensamos nas palavras cardeais do seu universo: ironia, compaixão, imaginação.
Acabamos por converter-nos em conceitos. Já não temos existência, mas continuamos a existir – naquilo que deixamos, nas ideias que as pessoas desse tempo, do futuro, têm sobre aquilo que deixamos, e que podem não coincidir com as nossas. Mas sobre isso não podemos nada, já não estamos cá. De qualquer forma, o olvido está garantido, mesmo que não seja total. Uma das coisas que me dá uma satisfação íntima… O meu avô morreu em 1948, a minha avó viveu ainda uns bons anos mais. Aí, o processo de esquecimento começava exactamente no momento em que cada um deles morreu. Dá-me uma satisfação que talvez nem saiba exprimir o facto de ter-lhes dado uma vida.
Ao recordá-los, ao nomeá-los.
Eu não deixei que morressem. O nome deles nunca mais seria citado, nunca mais se falaria nisso. A família está reduzida a quase nada: estou eu, a minha filha, um vago primo que talvez ainda os recorde. Estavam condenados a desaparecer já. Escrevi sobre eles. E em qualquer parte do mundo, alguém que se interesse por aquilo que faço, já sabe que tem que aguentar com os meus avós.
Citou o seu avô no discurso que fez na Academia Sueca e apontou-o como o homem mais sábio que conheceu.
Foi o princípio da minha conferência. E aí deixo o nome deles: Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha. Falar deles nestes termos pode levar a uma certa idealização. E sim, servindo-me deles como personagens literários, idealizei-os. Mas não imaginem que eram extraordinários: eram pessoas comuns.
Eram analfabetos. Porque é que ele era para si o homem mais sábio que conheceu?
Porque eu era garoto. Era um homem alto, seco, delgado, de poucas palavras. Olhava para ele, não como se fosse o super-homem, ou um anjo caído do céu, porque era um homem, um camponês, não conhecia uma letra; contudo, como não tinha outros mestres, além dos da escola primária, aquele, sem que alguma vez lhe tivesse chamado isso, foi um mestre de vida. O próprio não sabia que era mestre, eu próprio não sabia que era seu discípulo; simplesmente vivíamos juntos na mesma casa. É possível que haja aqui muita elaboração mental. Mesmo que assim seja, no centro da questão está…
O amor.
Também. Eles não eram muito carinhosos. Não tinham tempo nem tinham sido educados para a expressão do afecto. Já muito tinham em que pensar – tendo comido ao almoço, se tinham comida ao jantar. Chamemos-lhe o momento mágico da infância para resolver esta questão – que não fica nada resolvida, claro.
Um pouco como o narrador-Saramago que resolve no livro uma coisa por elipse, com um plof!
Imagine se eu tivesse que resolver o processo… assim não: plof, e já está!
Falei de imaginação, lucidez, ironia, compaixão, que comummente se dizem ser os pilares da sua narrativa. Quando recuperou da doença, temeu ter perdido alguma destas faculdades?
Não. No que tem que ver com ironia e humor, nos diálogos que mantinha com os médicos usava uma ironia por vezes agressiva. A Pilar olhava para mim com os olhos esbugalhados; não era a dizer como é que eu me atrevia – estávamos a falar de igual para igual; mas afinal de contas estava muito vivo na minha cabeça. O corpo, estava um desastre, os pulmões encharcados, a perder peso a cada hora que passava, até aos 51 quilos com que saí do hospital. A prova de que não devo ter perdido nada do que era meu antes está no próprio livro.
Mas isso só percebeu na escrita do livro? Quando partiu para ele, tinha uma insegurança de algum tipo?
O livro foi escrito em duas fases. A primeira desde Fevereiro do ano passado até ao Verão, em que escrevi umas 40 páginas. Depois o meu estado agravou-se e o estado em que me encontrava tirou-me o apetite de escrever. E nisto passaram-se meses. No fim de Outubro, fui quatro dias a Buenos Aires – um autêntico disparate. Praticamente não comi. A certa altura meteu-se-me na cabeça que queria maçãs assadas. Mas é impossível encontrar na Argentina maçãs para assar e alguém que as saiba assar. Vim de lá muito mal e fui para uma clínica em Madrid, onde me fizeram uns quantos exames. Não acertaram com o diagnóstico. Fomos para Lanzarote. Aí entro na rampa e começo a deslizar para o fundo. Não tive uma dor, não posso dizer que sofri, dá mesmo a impressão que não estava lá. O meu estado era de tal ordem que no hospital tiveram dúvidas em aceitar-me. Porque não queriam que morresse no hospital deles! [riso] Se eu queria morrer, que fosse morrer noutro sítio! Aí a Pilar armou-se em Joana D’Arc e convenceu-os de que não podiam fazer isso, e revelaram-se pessoas e médicos extraordinários.
Esteve três meses no hospital. Quando voltou a casa, de quanto tempo precisou até voltar a escrever?
Eu era uma sombra. As minhas pernas eram incapazes de suster-me, agora imagine andar… Vinte e quatro horas depois já estava sentado à mesa a trabalhar.
Porque é que escrever foi indispensável?
Aquele trabalho tinha sido interrompido. Durante o tempo em que estive doente cheguei a dizer à Pilar: “Não sei se vou conseguir acabar o livro”. A Pilar, falando com os médicos, chegou a dizer-lhes: “Garantam-lhe a vida por mais três meses para que ele possa terminar o livro”. Há que dizer que três meses não bastariam.
A Pilar sabe pedir… Sabe falar com bons modos…
Sabe, sabe. A Pilar, se quer alguma coisa, é irresistível! [riso] Essa dedicatória que pus, “a Pilar que me agarrou pela gola do casaco e não me deixou cair ao poço” [na verdade, o que está escrito no livro é: “A Pilar, que não deixou que eu morresse”], figuradamente é isso.
Curiosamente, a palavra pilar aparece no livro uma única vez, para dizer “pilar da fé”. Um pilar é algo que nos sustém. É o pilar da sua vida?
Foi, tem sido, e espero que continue a ser o meu pilar. Além de ser intimamente a minha Pilar, é também o meu pilar.
Voltemos à necessidade de 24 horas depois estar a trabalhar. Era uma forma de manter-se vivo?
Vivo estava eu. Não era o corpo que queria escrever, era a cabeça. Essa ideia – não sei se vou conseguir acabar o livro – continuava cá dentro. A primeira coisa que fiz foi rever tudo o que estava escrito. E corrigir. Se me pergunta: tinha cabeça para correcções? Tinha cabeça para o que fosse. Quando cheguei ao fim dessas correcções, engatei a história, e terminei o livro no dia 12 de Agosto.
É um livro muito luminoso. É surpreendente, sabendo de onde vem…
Embora a mim não me surpreenda. Tenho uma capacidade de distanciamento muito, muito grande. E neste caso, um distanciamento em relação ao doente que tinha sido, ao convalescente que continuava a ser. Não reflecti: posso ou não posso escrever. Já se veria se podia. Abri o computador, procurei o que estava há meses parado, numa certa palavra, e recomecei sem dramatismos. Detesto dramatismos. Detesto aquilo que os escritores cultivam muito: a relação dramática com a escrita.
Porque é que detesta esse dramatismo?
Porque acho que é falso.
Fala como se o que faz fosse simplesmente um ofício.
Escrever é um trabalho. Da mesma maneira que um médico, o que faz, é um trabalho. Essas histórias em volta da página branca, o horror da página branca…
No seu passado de editor ou jornalista estava em contacto directo com as palavras; mas era para si um ofício diferente.
Não é a mesma coisa estar no Diário de Lisboa, e escrever o editorial, ou no Diário de Notícias, e escrever os meus apontamentos; mas não difere muito. Num caso e noutro estou a usar as palavras, e as palavras de um romance são as mesmas, vêm do mesmo depósito de palavras. Quando eu era um escritor que ninguém conhecia já pensava: isto é um trabalho. Eu poderia ter as melhores ideias para livros, as inspirações mais fulgurantes, mas tenho que as pôr no papel. Pode acontecer, e acontece, que aquilo que eu julgava fulgurante afinal não o é tanto.
Isso é trabalhar a forma.
Quem trabalha a forma trabalha o conteúdo, quem trabalha o conteúdo trabalha a forma. Comparo o trabalho ao computador com o trabalho do oleiro. O oleiro agarra num bocado de barro, põe-no no torno, o torno gira e ele começa a trabalhar o barro até chegar à forma que quer. Há qualquer coisa de artesanal com o trabalho no computador.
Não teve dificuldade em retomar o fio, em engatar, como disse?
Nenhuma. Não tem virtude nenhuma. É simplesmente uma maneira de ser. Você está a ver a excelente ocasião que perdi para fazer do reatamento do meu trabalho um drama, uma angústia, uma ânsia, e agora como é que vai ser?, vou ser capaz?
Nunca foi um angustiado, pois não?
Nunca, nunca, nunca, nunca. E ainda bem. Tive os meus momentos de abatimento, mas entrar em depressão, nunca entrei.
O que é que o segurou? O que é que fez com que nunca caísse em depressão?
Já não o pensava há muitíssimos anos, e é simplesmente uma frase, mas é como se houvesse dentro de mim uma parte intocada. Ali não entra nada. E que se traduz numa certa serenidade, que se acentuou com a doença. Se alguma coisa pude aproveitar dela foi este sentimento de extrema serenidade. Passei pelos momentos maus e bons que todas as vidas têm, mas nunca perdi esta…, não quero chamar-lhe segurança de mim mesmo... É um pouco como o olho do furacão: em redor é morte e destruição, mas ali o vento não sopra.
Essa noção, de ter essa parte intocada, tem-na desde quando?
Desde que é possível ter consciência de uma coisa como esta. Pode ter sido aos 30 anos – ponhamos assim. Mas quando tive consciência, percebi que já antes era assim.
Que auto-estima tinha esse homem que está para trás? O homem que foi na primeira parte da sua vida. Isso que descreve, parece ser uma coisa por sua conta, autónoma.
De certo modo. Eu tinha 18 ou 19 anos e tinha um grupo de amigos – como éramos cinco, chamávamo-nos Pentágono! E um dia conversando sobre umas quantas coisas sérias – o que é que era a vida? – disse esta frase que recordo tal qual e que me ficou para toda a vida: “Aquilo que tiver que ser meu às mãos me há-de vir ter”. Na boca de um rapaz, nos anos 40, uma frase como esta parece reflectir um fatalismo radical. Fala-me de auto-estima: creio que sempre a tive e que esta frase pode ser interpretada nesse sentido. Como nunca fiz projecto de carreira, como nunca fui uma pessoa ambiciosa, como na minha vida não houve cálculo, realmente não fiz nada para que as coisas acontecessem. A não ser o trabalho que tinha de fazer a cada momento.
Fez todos os trabalhos com o mesmo empenho?
Fazia o melhor que sabia e podia, quer fosse na oficina de serralharia onde comecei, quer nas actividades que vieram depois. Vou contar-lhe uma coisa: o Nataniel Costa era o director editorial da Estúdios Cor. Encontrávamo-nos no Café Chiado. Eu não tinha quaisquer credenciais. Tinha os meus amigos, os tais do Pentágono – portanto, ficava numa mesa à parte. E ouvia os outros, os Abelairas, essa gente, ali reunida. Passado tempo, o Nataniel entra na carreira diplomática e falou comigo. Seguimos juntos pelo passeio, em direcção à Brasileira. “Queria perguntar-lhe se está disposto a ocupar o meu lugar na editora enquanto eu estiver ausente, e depois logo se verá”. Porque me dizia aquilo a mim? “Não faltam pessoas a quem poderia ter falado; mas não tenho a certeza de que não aproveitassem essa circunstância para me apunhalarem pelas costas”. Isto é dos momentos mais importantes da minha vida. Alguém que não tinha sido pago para isso nem tinha razões afectivas para o fazer, disse o que disse.
Além de confiarem na sua lealdade, foi o início de um período, em que foi editor.
É como se pudesse dizer-me: tenho razão em ter feito a minha vida como a fiz até hoje. Durante anos escrevíamo-nos, trocávamos ideias e sempre nos entendemos sem o mínimo atrito, nunca houve roçadura de pele.
A imaginação, a ironia, a compaixão estão para o autor como a moral, a coerência, o comunismo estão para o homem? Contaminam-se, e são do mesmo?
São, são. Comunismo é um estado de espírito. Um dia participei no programa do Bernard Pivot que veio com essa: “Como é que você ainda se considera comunista?” Disse espontaneamente: “Acontece que sou uma espécie de comunista hormonal. Da mesma maneira que a barba me cresce, há uma hormona que fez de mim isto, e não posso deixar de o ser. Pode dizer-me: depois disto que aconteceu, e isto e isto; de acordo, tudo isso aconteceu, e parece-me mal que tenha acontecido, e condeno quem o fez. Mas isso não me tira o direito, e o dever, de ser aquilo que sou”. Ele riu-se muito. É isso. Mais recentemente converti isto na declaração: o comunismo é um estado de espírito. Dois camaradas atacaram isto, em nome do materialismo dialéctico. Não entenderam.
Voltando ao livro, há momentos de provação. Como quando a caravana enfrenta o desfiladeiro ou os lobos. O que há numa situação e noutra é o medo. Não sei da sua relação com o medo.
Nunca me encontrei em situações em que o medo se desencadeasse fora do meu domínio. Pondo esta salvaguarda, não me considero uma pessoa medrosa. Também não sou um exemplo de valentia – nunca fui posto à prova. Vamos à experiência mais recente, a doença. O medo da morte, que é um medo tão comum, nunca tive. A probabilidade de morrer era alta. Talvez não tenha tido medo por causa da costela fatalista que tenho – o que tiver de ser, será.
É evidente que o elefante não pode sucumbir aos lobos, ou cair no desfiladeiro – ou seja, nas partes menos boas.
Se transportar isso para a vida, é uma forma de optimismo. E que liga com aquela frase dos 19 anos.
Escreve para ser amado? Escrever é uma forma de ser amado?
Pode ser entendido assim. O Gabriel García Márquez dizia que escrevia para que gostassem dele. É possível. É mais exacto dizer que a gente escreve porque não quer morrer. Ser amado pelo outro não está na nossa mão; podemos escrever para que isso aconteça, e depois acontecerá ou não. Já que temos que morrer, que alguma coisa fique. Não é imortalidade – isso seria um disparate; é um reconhecimento por algum tempo mais.
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA
Gosta do filme?
Gosto muito. Tinha gostado da primeira vez que o vi, mas de uma forma mitigada. Porque as condições de projecção do cinema S. Jorge eram más. Não vi o filme em Cannes; não estava em condições de fazer uma viagem dessas e andar por lá. Na antestreia, vi uma nova versão, com uma nova montagem. O Fernando [Meirelles] e eu tínhamos conversado, tinha-lhe dado a minha opinião. Na montagem que fez restituiu ao filme algo que lhe tinha retirado – violência. O filme é acusado de ser violento. A minha resposta é que não é mais violento do que as séries que nos entram diariamente em casa para consumo das famílias.
O livro é mais violento do que o filme.
Muito mais violento. A Julianne Moore é um portento, como todos os outros. Fiquei surpreendido pela escolha do Gael para chefe da camarata dos malvados; está um pouco histérico, mas faz um bom papel. A montagem é perfeita. A imagem é eloquente. Uma coerência dramática perfeitamente conseguida.
Tem uma cena preferida?
Há uma cena que me impressiona muitíssimo: quando as mulheres vão para a camarata dos outros cegos. Passam em fila indiana, uma atrás das outras, cabisbaixas, em direcção ao martírio. Pareceu-me que, no fundo, a história da mulher, no mundo, na História, estava ali.
Lembra-se quando começou a sua relação com o cinema?
Devia ter seis anos. Morávamos na Mouraria. Perto havia o Salão Lisboa, a que chamávamos O Piolho. Foi aí que comecei a ir ao cinema, com um rapaz mais velho do que eu que vivia na mesma casa, o Félix. (Era no tempo em que se alugavam partes de casa). Vi as coisas mais disparatadas, filmes de terror, um filme em que aparecia um leproso com um capuz… O outro cinema onde ia, mais tarde, era o Animatógrafo. Giríssimo, pequeno, com uma espécie de grade que separava uma plateia da outra. Foi aí que vi uma parelha de cómicos suecos, que eram conhecidos à francesa por Pat & Patachon. Garanto-lhe que se tenho conhecimento que aparecem aí os filmes do Pat & Patachon, vou a correr!"
Publicado originalmente no Público em 2008