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"Em 1986, a extinta revista brasileira Status publicou um texto de José Saramago sobre a relação de Portugal com a literatura brasileira e vice-versa. Naquela altura o escritor mantinha na mencionada publicação uma coluna intitulada Notas do Ultramar. Em 1998, dias após José Saramago ser proclamado Prémio Nobel de Literatura, a também brasileira revista Bravo! recuperou a citada crónica e publicou-a. Agora, 20 anos após essa segunda vida do texto cujo título é «Uma pessoa da família», chegou a vez da Blimunda divulgá-lo."
Revista Blimunda - Capa da edição # 75 - Agosto de 2018
"Dizia-me aquele português em São Paulo, ou, por maior rigor, de São Paulo, pois aí vive e trabalha e daí não pensar retirar-se, dizia-me ele sorrindo com a amizade que guarda e a ironia que ao acaso lhe parecia adequada. “Sabe você como já chama os brasileiro a Fernando Pessoa?”. Levantei um sobrolho perplexo e inquisitivo, esperei o fim da pausa retórica que, pelos vistos, o meu amigo queria prolongar, enfim acedi a entrar no jogo: “Chamam-lhe Fernando Pessoa, suponho”. O tom provocador que eu dera à resposta não lhe apagou o sorriso, e as palavras seguintes vieram tocadas por um certo ar de comiseração que ainda mais afiava a ironia: “Chamam-lhe grande poeta da língua portuguesa, pois então”. Compreendi onde ele queria chegar: “Não dizem grande poeta português?” E ele, empurrando a faquinha: “Cada vez se vai dizendo menos”.
Confesso que não gostei. O meu patriotismo literário ofendia-se com a ligeireza, a sem-cerimónia dos irmão brasis, ou primos, que, não pensando, obviamente, em discutir ou ignorar a grandeza do poeta, decidem escamotear-lhe a nacionalidade, tomando como fundamental, quem sabe, a própria sentença de Pessoa: “A minha pátria é a língua portuguesa”. Disse ao amigo que a atitude configurava forte abuso, que realmente o Brasil sofria de vertigem imperial e que, por esse andar, acabariam por levar-nos o próprio Luís de Camões, ou o Eça de Queiroz, e a Deus, graças por dos mais escritores portugueses conhecerem tão pouco. Exprimi um mau humor nacionalista porventura louvável, mas, logo o percebi, culturalmente pueril.
As coisas são o que são, serem-no é a sua irrefragável força, e a nós cabe-nos tentar compreendê-las, ajeitá-las, se possível, à oportunidade e ao interesse da ocasião, mas respeitando-as sempre, evitando sobretudo cair na tentação da avestruz, o que, na circunstância, seria fingir que as coisas, afinal, são outra coisa. Não estou a brincar com as palavras, pelo menos não mais do que o gosto de ordená-las ao longo de um pensamento para tentar exprimi-lo com a maior clareza possível. Se os brasileiros chamam a Fernando Pessoa de grande poeta da língua portuguesa é porque o admiram e respeitam, porque o desejariam seu. Bom proveito, então, lhes faça tanto mais que Fernando Pessoa é bastante grande para satisfazer dois países e povos, e ainda sobejar Pessoa. também eu desejaria que Manuel Bandeira fosse meu como igualmente desejaria que o fosse Antonio Machado, nascido aqui ao lado, em Espanha, e esse, provavelmente, é o único caso em que uma coisa dividida se tornará tanto maior quanto mais dividida estiver. Tomem pois os brasileiros, para si, a Fernando Pessoa, que não ficaremos mais pobres por isso. Pelo contrário. A cultura a que Fernando Pessoa pertence é a cultura da fala e da escrita portuguesa, aquela pátria única que ele, em palavras brevíssimas e lapidares, como convinha, definiu de uma vez para sempre.
Mas seria mais útil que nos entendêssemos quanto ao resto. Essa cultura de que a língua portuguesa é o veículo e o instrumento não principiou no dia 7 de setembro de 1822, quando a independência do Brasil foi proclamada. Para trás não ficavam o caos, o tempo das trevas, a brutalidade da ignorância. Para trás ficava, sim, um formigueiro cultural com quase 700 anos de trabalho miúdo e algumas grandes empresas. Usando a metáfora mais luminosa, de ar livre e céu aberto, a parte visível da cultura que diremos brasileira emerge e assenta, como parte visível de um iceberg, sobre a massa profunda da história e da cultura portuguesa.
A cultura brasileira tem uma pré-história, e essa, dêem-lhe as voltas que entenderem é, e não pode deixar de ser, a cultura portuguesa. Levem-nos o Fernando Pessoa, mas não julguem que levam tudo com ele. Compete aos brasileiros, claro está, responder se proclamaram o nascimento de sua cultura na mesma data em que proclamaram a independência nacional, ou se reconhecem como também seu aquele remoto ano em que uma palavra se descobriu portuguesa, para, sendo história, começar a ser cultura.
Tranquilizai-vos, porém. Cuido saber dos fatos da vida o suficiente para não ceder à ingenuidade, senão à estupidez, de considerar as culturas brasileira e portuguesa como meramente e mutuamente complementares de um só corpo cultural, o que, por caminho tão vicioso, equivaleria a querer meter num saco de conflitos todas as culturas de língua portuguesa, a pretexto de uma história em parte comum, ainda que sombria e sangrenta, como tantas vezes o foi. Sou pouco de impérios, velhos ou novos. O Brasil e Portugal vão, cada um por seu pé, aonde tiverem de ir, chegarão onde puderem chegar, felizes ou apenas resignados. E não creio que, nas horas más, um possa ajudar o outro: hoje ninguém ajuda ninguém. Mas somos gente de uma imensa família, de uma mesma língua, de uma cultura que é, embora diferentemente, mesma. Se os brasileiros se recusam a aceitar essa evidência, se o dia 6 de setembro de 1822 é, para eles, anterior à criação do mundo, então façam o favor de nos devolver Fernando Pessoas."