Capa da edição #38 - Primavera/Verão de 1997
"Falto de mapas, abandonado de guias, com o temor reverencial de quem pisa terra estranha, uma terra onde os sistemas de comunicação estão habitualmente redigidos em línguas que, não raro, só vagas semelhanças guardam ainda com a linguagem comum, atrever-me-ei a expor-vos umas poucas ideias elementares, as únicas que poderia autorizar-se um simples prático da literatura como eu.
Por experiência própria, tenho observado que, no seu trato com autores a quem a fortuna, o destino ou a má-sorte não permitiram a graça de um título académico, mas que, não obstante, foram capazes de produzir obra digna de algum estudo, a atitude das universidades costuma ser de benévola e sorridente tolerância, muito parecida com a que costumam usar as pessoas sensíveis na sua relação com as crianças e os velhos, uns porque ainda não sabem, outros porque já esqueceram. É graças a tão generoso procedimento que os professores de Literatura, em geral, e os de Teoria da Literatura, em particular, têm, acolhido com simpática condescendência — mas sem que se deixem abalar nas suas convicções científicas — a minha ousada declaração de que a figura do narrador não existe, e de que só o autor exerce função narrativa real na obra de ficção, qualquer que ela seja, romance, conto ou teatro. E quando, indo procurar auxílio a uma duvidosa ou, pelo menos, problemática correspondência das artes, argumento que entre um quadro e a pessoa que o contempla não há outra mediação que não seja a do respectivo autor, e portanto não é possível identificar ou sequer imaginar, por exemplo, a figura de um narrador na Gioconda ou na Parábola dos Cegos, o que se me responde é que, sendo as artes diferentes, diferentes teriam igualmente de ser as regras que as traduzem e as leis que as governam. Esta peremptória resposta parece querer ignorar o facto, fundamental no meu entender, de que não há, objectivamente, nenhuma diferença essencial entre a mão que guia o pincel ou o vaporizador sobre a tela, e a mão que desenha as letras sobre o papel ou as faz aparecer no ecrã do computador, que ambas são, com adestramento e eficácia similares, prolongamentos de um cérebro, ambas instrumentos mecânicos e sensitivos capazes de composições e ordenações sem mais barreiras ou intermediários que os da fisiologia e da psicologia.
Nesta contestação, claro está, não vou ao ponto de negar que a figura do que denominamos narrador possa ser demonstrada no texto, ao menos, com o devido respeito, segundo uma lógica bastante similar à das provas definitivas da existência Deus formuladas por Santo Anselmo... Aceito, até, a probabilidade de variantes ou desdobramentos de um narrador central, com o encargo de expressarem uma pluralidade de pontos de vista e de juízos considerada útil à dialéctica dos conflitos. A pergunta que me faço é se a obsessiva atenção dada pelos analistas de texto a tão escorregadias entidades, propiciadora, sem dúvida, de suculentas e gratificantes especulações teóricas, não estará a contribuir para a redução do autor e do seu pensamento a um papel de perigosa secundaridade na compreensão complexiva da obra.
Quando falo de pensamento, estou a incluir nele os sentimentos e as sensações, as ideias e os sonhos, as vidências do mundo exterior e do mundo interior sem as quais o pensamento se tornaria em puro pensar inoperante. Abandonando qualquer precaução retórica, o que aqui estou assumindo, afinal, são as minhas próprias dúvidas e perplexidades sobre a identidade real da voz narradora que veicula, nos livros que tenho escrito e em todos quantos li até agora, aquilo que derradeiramente creio ser, caso por caso e quaisquer que sejam as técnicas empregadas, o pensamento do autor, seu próprio e exclusivo (até onde é possível sê-lo) ou deliberadamente tomado de empréstimo, de acordo com os interesses da narração. E também me pergunto se a resignação ou indiferença com que os autores de hoje parecem aceitar a «usurpação», pelo narrador, da matéria, da circunstância e do espaço narrativos que antes lhe eram pessoal e inapelavelmente imputados, não será, no fim de contas, a expressão mais ou menos consciente de um certo grau de abdicação, e não apenas literária, das suas responsabilidades próprias."
"Um livro não está formado somente por personagens, conflitos, situações, lances, peripécias,
surpresas, efeitos de estilo, exibições ginásticas de técnicas de narração — um livro é,
acima de tudo, a expressão do seu autor. Pergunto-me até, se o que determina o
leitor a ler não será a secreta esperança de descobrir no interior do livro a pessoa invisível
mas omnipresente do seu autor."
"Que fazemos, em geral, nós, os que escrevemos? Contamos histórias. Contam histórias os romancistas, contam histórias os dramaturgos, contam histórias os poetas, contam-nas igualmente aqueles que não são, e não virão a ser nunca, poetas, dramaturgos ou romancistas. Mesmo o simples pensar e o simples falar quotidianos são já uma história. As palavras proferidas, ou apenas pensadas, desde o levantar da cama, pela manhã, até ao regresso a ela, chegada a noite, sem esquecer as do sonho e as que ao sonho tentaram descrever, constituem uma história com uma coerência própria, contínua ou fragmentada, e poderão, como tal, em qualquer momento, ser organizadas e articuladas em história escrita.
O escritor, esse, tudo quanto escreve, desde a primeira palavra, desde a primeira linha, é escrito em obediência a uma intenção, às vezes clara, às vezes escondida — porém, de certo modo, visível e óbvia, no sentido de que ele está sempre obrigado a facultar ao leitor, passo a passo, dados cognitivos que sejam comuns a ambos, para chegar finalmente a algo que, querendo parecer novo, diferente, original, já era afinal conhecido, porque, sucessivamente, ia sendo reconhecível. O escritor de histórias, manifestas ou disfarçadas, é portanto um mistificador: conta histórias e sabe que elas não são mais do que umas quantas palavras suspensas no que eu chamaria o instável equilíbrio do fingimento, palavras frágeis, assustadas pela atracção de um não-sentido que constantemente as empurra para o caos de códigos cuja chave a cada momento ameaça perder-se. Não esqueça-mos, porém, que assim como as verdades puras não existem, também as puras falsidades não podem existir. Porque se é certo que toda a verdade leva consigo, inevitavelmente, uma parcela de falsidade, quanto mais não seja por insuficiência expressiva das palavras, também certo é que nenhuma falsidade pode ser tão radical que não veicule, mesmo contra a intenção do mentiroso, uma parcela de verdade. A mentira conterá, pois, duas verdades: a própria sua, elementar, isto é, a verdade da sua própria contradição (a verdade está oculta nas palavras que a negam), e a outra verdade de que, sem o querer, se tornou veículo, comporte ou não esta nova verdade, por sua vez, uma parcela de mentira.
De fingimentos de verdade e de verdade de fingimentos se fazem, pois, as histórias. Contudo, em minha opinião, e a despeito do que, no texto, se nos apresenta como uma evidência material, a história que ao leitor mais deveria interessar não é a que, liminarmente, lhe é proposta pela narrativa. Um livro não está formado somente por personagens, conflitos, situações, lances, peripécias, surpresas, efeitos de estilo, exibições ginásticas de técnicas de narração — um livro é, acima de tudo, a expressão de uma parcela identificada da humanidade: o seu autor. Pergunto-me até, se o que determina o leitor a ler não será uma secreta esperança de descobrir no interior do livro — mais do que a história que lhe será narrada — a pessoa invisível mas omnipresente do seu autor. Tal como o entendo, o romance é uma máscara que esconde e, ao mesmo tempo, revela os traços do romancista. Com isto não pretendo sugerir ao leitor que se entregue durante a leitura a um trabalho de detective ou antropólogo, procurando pistas ou removendo camadas geológicas, ao cabo das quais, como um culpado ou uma vítima, ou como um fóssil, se encontraria escondido o autor..."
"O escritor de histórias, manifestas ou disfarçadas, é portanto um mistificador:
conta histórias e sabe que elas não são mais do que umas quantas palavras
suspensas no que eu chamaria o instável equilíbrio do fingimento, palavras frágeis,
assustadas pela atracção de um não-sentido que constantemente as empurra para o
caos de códigos cuja chave a cada momento ameaça perder-se.
"Muito pelo contrário: o autor está no livro todo, o autor é todo o livro, mesmo quando o livro não consiga ser todo o autor. Não foi simplesmente para chocar a sociedade do seu tempo que Gustave Flaubert declarou que Madame Bovary era ele próprio. Parece-me, até, que, ao dizê-lo, não fez mais do que arrombar uma porta desde sempre aberta. Sem faltar ao respeito devido ao autor de Bouvard et Pécuchet, poder-se-ia mesmo dizer que uma tal afirmação não peca por excesso, mas por defeito: faltou a Flaubert acrescentar que ele era também o marido e os amantes de Emma, que era a casa e a rua, que era a cidade e todos quantos, de todas as condições e idades, nela viviam, casa, rua e cidade reais ou imaginadas, tanto faz. Porque a imagem e o espírito, o sangue e a carne de tudo isto, tiveram de passar, inteiros, por uma só pessoa: Gustave Flaubert, isto é, o autor, o homem, a pessoa. Também eu, ainda que sendo tão pouca coisa em comparação, sou a Blimunda e o Baltasar de Memorial do Convento, e em O Evangelho Segundo Jesus Cristo não sou apenas Jesus e Maria Madalena, ou José e Maria, por-que sou também o Deus e Diabo que lá estão..."
"O que o autor vai narrando nos seus livros é, tão-somente, a sua história pessoal, Não o relato da sua vida, não a sua biografia, quantas vezes anódina, quantas vezes desinteressante, mas uma outra, a secreta, a profunda, a labiríntica, aquela que com o seu próprio nome dificilmente ousaria ou saberia contar. Talvez porque o que há de grande em cada ser humano seja demasiado grande para caber nas palavras com que ele a si mesmo se define e nas sucessivas figuras de si mesmo que povoam um passado que não é apenas seu, e por isso lhe escapará sempre que tentar isolá-lo e isolar-se nele. Talvez, também, porque aquilo em que somos mesquinhos e pequenos é a tal ponto comum que nada de novo poderia ensinar a esse outro ser pequeno e grande que é o leitor. Finalmente, talvez seja por alguma destas razões que certos autores, entre os quais julgo dever incluir-me, privilegiem, nas histórias que contam, não a história que vivem ou viveram, mas a história da sua própria memória, com as suas exactidões, os seus desfalecimentos, as suas mentiras que também são verdades, as suas verdades que não podem impedir-se de ser mentiras. Bem vistas da coisas, sou só a memória que tenho, e essa é a história que conto. Omniscientemente.
Quanto ao narrador, que poderá ele ser senão uma personagem mais de uma história que não é a sua?"
Revista Ler (edição #38 - Primavera/Verão de 1997)
Páginas 35 a 41