Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 29 de maio de 2016

Opinião de Maria Eugénia Leitão (jornal Sol) - “Se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara”

O artigo de opinião de Maria Eugénia Leitão (jornal Sol), pode ser recuperado aqui

"Esta frase de José Saramago surgiu no meu caminho já não me recordo bem onde… É a frase que Saramago fez inscrever na contracapa de Ensaio Sobre a Cegueira, obra que não li, mas que vi magistralmente representada pelo grupo de teatro “O Bando”, num palco inclinadíssimo, no Teatro de São Luís, há alguns anos."

Mural com a epigrafe inscrita

"Esta obra, na sua essência, remete para diversos provérbios bem conhecidos, em que a visão ou a sua falta dela estão bem presentes – “em terra de cegos, quem tem um olho é rei” ou “o pior cego é aquele que não quer ver”… 
Julgo que o sentido de ambos é bastante óbvio. No primeiro caso, quando alguém se destaca por uma característica que mais ninguém possui, tem boas probabilidades de vir a liderar, seja um pequeno grupo ou seja um grande grupo. No segundo caso, todos saberemos, até por experiência própria, que muitas vezes não queremos ou nos recusamos a reconhecer algo que à partida sabemos que nos irá magoar ou frustrar as nossas expectativas. E, efetivamente, as consequências são bem piores quando nos vemos forçados a reconhecer aquilo que teríamos preferido que ficasse permanecesse oculto. Por vezes, somos um pouco como as avestruzes… Só porque não queremos ver.

E, ao fazê-lo, tentamos aquilo a que a sabedoria popular chama “tapar o sol com a peneira” – tentamos ocultar algo grandioso com um pormenor ínfimo. Aquilo que é demasiado grande para ser ocultado é tão fundamental que, por vezes, se torna quase invisível aos nossos olhos, mas, exatamente por isso, não pode ser ocultado, mesmo que o ignoremos não pode ser ocultado.

José Saramago, nesta sua parábola da própria existência humana, dá-nos exatamente o conselho contrário;, aquele que foi inscrito numa parede e, um dia, surgiu no meu caminho. Diz-nos Saramago, através deste artista, que, se pudermos olhar, o melhor é vermos e, já que conseguimos ver, então o melhor mesmo será reparar.
Também Pessoa desejava que pudéssemos “ouvir o olhar”, para de modo a que “um olhar (…) bastasse” para se adivinhar os sentimentos.

Foi o que fiz, neste caso: abri os olhos, ouvi o olhar e reparei.

Maria Eugénia Leitão
(Escrito em parceria com o blogue da “Letrário”)"

"A feira onde Saramago gostava de estar" de Rita Garcia do "Observador"

O artigo completo de autoria de Rita Garcia (Observador) pode ser recuperado aqui

"Sentava-se entre os velhos pavilhões da Caminho, olhava as longas filas que o esperavam e começava a chamar leitores, sem mais delongas. Afável, solícito e rápido, José Saramago recebia cada um deles com uma informalidade inesperada para quem apenas lhe conhecia o rosto fechado e o aspeto austero. Desde a publicação de Levantado do Chão, em 1980, estava habituado a ter centenas de leitores a aguardar um autógrafo seu na Feira do Livro de Lisboa.

Saramago jamais se furtou ao contacto com o público. “Nunca tive um autor tão disponível para colaborar com o editor. Ia dar autógrafos todos os dias, a menos que tivesse um compromisso”, conta ao Observador Zeferino Coelho, um dos mais antigos editores portugueses, responsável pela publicação de todos livros que o Nobel lançou em vida."

Saramago autografando uma das suas obras (Fotografia: Global Imagens)

"O escritor chegava cedo e, em regra, não marcava hora para ir embora. “Num sábado podia começar a assinar livros às 15h30 e terminar às 20h. Era comum aparecerem 200 ou 300 pessoas. Nunca reclamava: era um cavalheiro, muito bem educado, de trato elegante, sem formalismos. Brincava, dizia anedotas”, acrescenta o editor da Caminho.

Só havia uma coisa que o incomodava verdadeiramente: descobrir na fila um rosto conhecido, de cujo nome, por mais que se esforçasse, não conseguia lembrar-se. O simples facto de admitir a falha de memória parecia-lhe uma desconsideração. De tal maneira que combinou um esquema com o pessoal da editora. Sempre que isso acontecia, fazia-lhes sinal e logo entrava em ação um aliado que, simpático e conversador, arranjava forma de descobrir o nome em falta. E assim, quando o amigo se aproximava do Nobel, era recebido como se tivessem estado juntos de véspera e levava para casa um autógrafo personalizado — e com o nome certo, claro.

Naquela tarde de semana, José Saramago fez o de sempre. Assinou livro atrás de livro, até que um homem lhe estendeu um manual de gestão. “Pediu-lhe um autógrafo, dizendo que tinha ido comprar aquilo para o filho e que não tinha mais dinheiro para um livro do próprio Saramago”, conta o escritor e apresentador de televisão Pedro Vieira, que assistiu à cena. O Nobel não levantou problemas: agarrou no manual e autografou-o.

Ainda que só tivesse começado a frequentar a Feira do Livro como autor a partir de 1980, o ano em que o evento se mudou para o Parque Eduardo VII, Saramago era presença habitual no evento desde os anos 60, quando trabalhava como editor. E nem quando se mudou para Espanha deixou de aparecer: “Para alguém da idade dele, a Feira era algo que fazia parte da vida”, explica Zeferino." (...) 
Nota de rodapé: o restante artigo faz uma revisitação à história da Feira do Livro de Lisboa

"Breve Meditação sobre Um Retrato de Che Guevara" para a revista "Casa de las Américas" - (Cadernos de Lanzarote Diário IV - 12/12/1996)

12 de Dezembro (de 1996)
Roberto Fernández Retamar pediu-me, para a revista Casa de las Américas, um artigo sobre Ernesto Che Guevara. Com o título «Breve Meditação sobre Um Retrato de Che Guevara», escrevi isto: 
«Não importa que retrato. Um qualquer: sério, sorrindo, de arma na mão, com Fidel ou sem Fidel, discursando nas Nações Unidas, ou morto, de tronco nu e olhos entreabertos, como se do outro lado da vida ainda quisesse acompanhar o rasto do mundo que teve de deixar, como se não se resignasse a ignorar para sempre os caminhos das infinitas crianças que estavam por nascer. Sobre cada uma destas imagens poder-se-ia discorrer profusamente, de um modo lírico ou de um modo dramático, com a objectividade prosaica do historiador ou simplesmente como quem se dispôs a falar do amigo que percebe ter perdido porque o não chegou a conhecer... 
«Ao Portugal infeliz e amordaçado de Salazar e de Caetano chegou um dia o retrato clandestino de Ernesto Che Guevara, o mais célebre de todos, aquele feito com manchas fortes de negro e de vermelho, que se tornou em imagem universal dos sonhos revolucionários do mundo, promessa de vitórias a tal ponto férteis que nunca haveriam de murchar em rotinas e cepticismos, antes dariam lugar a outros muitos triunfos, o do bem sobre o mal, o do justo sobre o injusto, o da liberdade sobre a necessidade. Emoldurado ou seguro à parede por meios precários, esse retrato assistiu a debates políticos apaixonados na terra portuguesa, exaltou argumentos, minorou desânimos, acalentou esperanças. Foi olhado como um Cristo que tivesse descido da cruz para descrucificar a humanidade, como um ser dotado de poderes absolutos que fosse capaz de extrair de uma pedra a água com que se matariam todas as sedes e transformar essa mesma água no vinho com que se beberia ao esplendor da vida. E tudo isto era certo porque o retrato de Che Guevara foi, aos olhos de milhões de pessoas, o retrato da dignidade suprema do ser humano. 
«Mas foi também usado como adorno incongruente em muitas casas da pequena e da média burguesia intelectual portuguesa, para cujos habitantes as ideologias políticas de afirmação socialista não passavam de um mero capricho conjuntural, forma supostamente arriscada de ocupar ócios mentais, frivolidade mundana que não pôde resistir ao primeiro choque da realidade, quando os factos vieram exigir o cumprimento das palavras. Então, o retrato de Che Guevara, testemunha, primeiro, de tantos inflamados anúncios de compromisso e de acção futura, juiz, agora, do medo encoberto, da renúncia cobarde ou da traição aberta, foi retirado das paredes, escondido, na melhor hipótese, no fundo de um armário, ou radicalmente destruído, como se gostaria de fazer a algo que tivesse sido motivo de vergonha. 
«Uma das lições políticas mais instrutivas, nos tempos de hoje, seria saber o que pensam de si próprios esses milhares e milhares de homens e mulheres que em todo o mundo tiveram algum dia o retrato de Che Guevara à cabeceira da cama, ou em frente da mesa de trabalho, ou na sala onde recebiam os amigos, e que agora sorriem de terem acreditado ou fingido acreditar. Alguns diriam que a vida mudou, que Che Guevara, ao perder a sua guerra, nos fez perder a nossa, e portanto era inútil ficar a chorar, como uma criança, o leite derramado. Outros confessariam que se deixaram envolver por uma moda do tempo, a mesma que fez crescer barbas e alargar as melenas, como se a revolução fosse uma questão de cabeleireiro. Os mais honestos reconheceriam que o coração lhes dói, que sentem nele o movimento perpétuo de um remorso, como se a sua verdadeira vida tivesse suspendido o curso e agora lhes perguntasse, obsessivamente, aonde pensam ir sem ideais nem esperança, sem uma ideia de futuro que dê algum sentido ao presente. 
«Che Guevara, se tal se pode dizer, já existia antes de ter nascido, Che Guevara, se tal se pode afirmar, continuou a existir depois de ter morrido. Porque Che Guevara é só o outro nome do que há de mais justo e digno no espírito humano. O que tantas vezes vive adormecido dentro de nós. O que devemos acordar para conhecer e conhecer-nos, para acrescentar o passo humilde de cada um ao caminho de todos.» 

in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 265 a 267 - 12/12/1996

"O autor como narrador" José Saramago escreve sobre a ideia de autor - Revista Ler #38 (Primavera/Verão de 1997)

Capa da edição #38 - Primavera/Verão de 1997

"Falto de mapas, abandonado de guias, com o temor reverencial de quem pisa terra estranha, uma terra onde os sistemas de comunicação estão habitualmente redigidos em línguas que, não raro, só vagas semelhanças guardam ainda com a linguagem comum, atrever-me-ei a expor-vos umas poucas ideias elementares, as únicas que poderia autorizar-se um simples prático da literatura como eu. 
Por experiência própria, tenho observado que, no seu trato com autores a quem a fortuna, o destino ou a má-sorte não permitiram a graça de um título académico, mas que, não obstante, foram capazes de produzir obra digna de algum estudo, a atitude das universidades costuma ser de benévola e sorridente tolerância, muito parecida com a que costumam usar as pessoas sensíveis na sua relação com as crianças e os velhos, uns porque ainda não sabem, outros porque já esqueceram. É graças a tão generoso procedimento que os professores de Literatura, em geral, e os de Teoria da Literatura, em particular, têm, acolhido com simpática condescendência — mas sem que se deixem abalar nas suas convicções científicas — a minha ousada declaração de que a figura do narrador não existe, e de que só o autor exerce função narrativa real na obra de ficção, qualquer que ela seja, romance, conto ou teatro. E quando, indo procurar auxílio a uma duvidosa ou, pelo menos, problemática correspondência das artes, argumento que entre um quadro e a pessoa que o contempla não há outra mediação que não seja a do respectivo autor, e portanto não é possível identificar ou sequer imaginar, por exemplo, a figura de um narrador na Gioconda ou na Parábola dos Cegos, o que se me responde é que, sendo as artes diferentes, diferentes teriam igualmente de ser as regras que as traduzem e as leis que as governam. Esta peremptória resposta parece querer ignorar o facto, fundamental no meu entender, de que não há, objectivamente, nenhuma diferença essencial entre a mão que guia o pincel ou o vaporizador sobre a tela, e a mão que desenha as letras sobre o papel ou as faz aparecer no ecrã do computador, que ambas são, com adestramento e eficácia similares, prolongamentos de um cérebro, ambas instrumentos mecânicos e sensitivos capazes de composições e ordenações sem mais barreiras ou intermediários que os da fisiologia e da psicologia. 
Nesta contestação, claro está, não vou ao ponto de negar que a figura do que denominamos narrador possa ser demonstrada no texto, ao menos, com o devido respeito, segundo uma lógica bastante similar à das provas definitivas da existência Deus formuladas por Santo Anselmo... Aceito, até, a probabilidade de variantes ou desdobramentos de um narrador central, com o encargo de expressarem uma pluralidade de pontos de vista e de juízos considerada útil à dialéctica dos conflitos. A pergunta que me faço é se a obsessiva atenção dada pelos analistas de texto a tão escorregadias entidades, propiciadora, sem dúvida, de suculentas e gratificantes especulações teóricas, não estará a contribuir para a redução do autor e do seu pensamento a um papel de perigosa secundaridade na compreensão complexiva da obra. 
Quando falo de pensamento, estou a incluir nele os sentimentos e as sensações, as ideias e os sonhos, as vidências do mundo exterior e do mundo interior sem as quais o pensamento se tornaria em puro pensar inoperante. Abandonando qualquer precaução retórica, o que aqui estou assumindo, afinal, são as minhas próprias dúvidas e perplexidades sobre a identidade real da voz narradora que veicula, nos livros que tenho escrito e em todos quantos li até agora, aquilo que derradeiramente creio ser, caso por caso e quaisquer que sejam as técnicas empregadas, o pensamento do autor, seu próprio e exclusivo (até onde é possível sê-lo) ou deliberadamente tomado de empréstimo, de acordo com os interesses da narração. E também me pergunto se a resignação ou indiferença com que os autores de hoje parecem aceitar a «usurpação», pelo narrador, da matéria, da circunstância e do espaço narrativos que antes lhe eram pessoal e inapelavelmente imputados, não será, no fim de contas, a expressão mais ou menos consciente de um certo grau de abdicação, e não apenas literária, das suas responsabilidades próprias." 

"Um livro não está formado somente por personagens, conflitos, situações, lances, peripécias, 
surpresas, efeitos de estilo, exibições ginásticas de técnicas de narração — um livro é, 
acima de tudo, a expressão do seu autor. Pergunto-me até, se o que determina o 
leitor a ler não será a secreta esperança de descobrir no interior do livro a pessoa invisível 
mas omnipresente do seu autor."


"Que fazemos, em geral, nós, os que escrevemos? Contamos histórias. Contam histórias os romancistas, contam histórias os dramaturgos, contam histórias os poetas, contam-nas igualmente aqueles que não são, e não virão a ser nunca, poetas, dramaturgos ou romancistas. Mesmo o simples pensar e o simples falar quotidianos são já uma história. As palavras proferidas, ou apenas pensadas, desde o levantar da cama, pela manhã, até ao regresso a ela, chegada a noite, sem esquecer as do sonho e as que ao sonho tentaram descrever, constituem uma história com uma coerência própria, contínua ou fragmentada, e poderão, como tal, em qualquer momento, ser organizadas e articuladas em história escrita. 
O escritor, esse, tudo quanto escreve, desde a primeira palavra, desde a primeira linha, é escrito em obediência a uma intenção, às vezes clara, às vezes escondida — porém, de certo modo, visível e óbvia, no sentido de que ele está sempre obrigado a facultar ao leitor, passo a passo, dados cognitivos que sejam comuns a ambos, para chegar finalmente a algo que, querendo parecer novo, diferente, original, já era afinal conhecido, porque, sucessivamente, ia sendo reconhecível. O escritor de histórias, manifestas ou disfarçadas, é portanto um mistificador: conta histórias e sabe que elas não são mais do que umas quantas palavras suspensas no que eu chamaria o instável equilíbrio do fingimento, palavras frágeis, assustadas pela atracção de um não-sentido que constantemente as empurra para o caos de códigos cuja chave a cada momento ameaça perder-se. Não esqueça-mos, porém, que assim como as verdades puras não existem, também as puras falsidades não podem existir. Porque se é certo que toda a verdade leva consigo, inevitavelmente, uma parcela de falsidade, quanto mais não seja por insuficiência expressiva das palavras, também certo é que nenhuma falsidade pode ser tão radical que não veicule, mesmo contra a intenção do mentiroso, uma parcela de verdade. A mentira conterá, pois, duas verdades: a própria sua, elementar, isto é, a verdade da sua própria contradição (a verdade está oculta nas palavras que a negam), e a outra verdade de que, sem o querer, se tornou veículo, comporte ou não esta nova verdade, por sua vez, uma parcela de mentira. 
De fingimentos de verdade e de verdade de fingimentos se fazem, pois, as histórias. Contudo, em minha opinião, e a despeito do que, no texto, se nos apresenta como uma evidência material, a história que ao leitor mais deveria interessar não é a que, liminarmente, lhe é proposta pela narrativa. Um livro não está formado somente por personagens, conflitos, situações, lances, peripécias, surpresas, efeitos de estilo, exibições ginásticas de técnicas de narração — um livro é, acima de tudo, a expressão de uma parcela identificada da humanidade: o seu autor. Pergunto-me até, se o que determina o leitor a ler não será uma secreta esperança de descobrir no interior do livro — mais do que a história que lhe será narrada — a pessoa invisível mas omnipresente do seu autor. Tal como o entendo, o romance é uma máscara que esconde e, ao mesmo tempo, revela os traços do romancista. Com isto não pretendo sugerir ao leitor que se entregue durante a leitura a um trabalho de detective ou antropólogo, procurando pistas ou removendo camadas geológicas, ao cabo das quais, como um culpado ou uma vítima, ou como um fóssil, se encontraria escondido o autor..."

"O escritor de histórias, manifestas ou disfarçadas, é portanto um mistificador: 
conta histórias e sabe que elas não são mais do que umas quantas palavras 
suspensas no que eu chamaria o instável equilíbrio do fingimento, palavras frágeis, 
assustadas pela atracção de um não-sentido que constantemente as empurra para o 
caos de códigos cuja chave a cada momento ameaça perder-se. 

"Muito pelo contrário: o autor está no livro todo, o autor é todo o livro, mesmo quando o livro não consiga ser todo o autor. Não foi simplesmente para chocar a sociedade do seu tempo que Gustave Flaubert declarou que Madame Bovary era ele próprio. Parece-me, até, que, ao dizê-lo, não fez mais do que arrombar uma porta desde sempre aberta. Sem faltar ao respeito devido ao autor de Bouvard et Pécuchet, poder-se-ia mesmo dizer que uma tal afirmação não peca por excesso, mas por defeito: faltou a Flaubert acrescentar que ele era também o marido e os amantes de Emma, que era a casa e a rua, que era a cidade e todos quantos, de todas as condições e idades, nela viviam, casa, rua e cidade reais ou imaginadas, tanto faz. Porque a imagem e o espírito, o sangue e a carne de tudo isto, tiveram de passar, inteiros, por uma só pessoa: Gustave Flaubert, isto é, o autor, o homem, a pessoa. Também eu, ainda que sendo tão pouca coisa em comparação, sou a Blimunda e o Baltasar de Memorial do Convento, e em O Evangelho Segundo Jesus Cristo não sou apenas Jesus e Maria Madalena, ou José e Maria, por-que sou também o Deus e Diabo que lá estão..."

"O que o autor vai narrando nos seus livros é, tão-somente, a sua história pessoal, Não o relato da sua vida, não a sua biografia, quantas vezes anódina, quantas vezes desinteressante, mas uma outra, a secreta, a profunda, a labiríntica, aquela que com o seu próprio nome dificilmente ousaria ou saberia contar. Talvez porque o que há de grande em cada ser humano seja demasiado grande para caber nas palavras com que ele a si mesmo se define e nas sucessivas figuras de si mesmo que povoam um passado que não é apenas seu, e por isso lhe escapará sempre que tentar isolá-lo e isolar-se nele. Talvez, também, porque aquilo em que somos mesquinhos e pequenos é a tal ponto comum que nada de novo poderia ensinar a esse outro ser pequeno e grande que é o leitor. Finalmente, talvez seja por alguma destas razões que certos autores, entre os quais julgo dever incluir-me, privilegiem, nas histórias que contam, não a história que vivem ou viveram, mas a história da sua própria memória, com as suas exactidões, os seus desfalecimentos, as suas mentiras que também são verdades, as suas verdades que não podem impedir-se de ser mentiras. Bem vistas da coisas, sou só a memória que tenho, e essa é a história que conto. Omniscientemente. 
Quanto ao narrador, que poderá ele ser senão uma personagem mais de uma história que não é a sua?" 

José Saramago
Revista Ler (edição #38 - Primavera/Verão de 1997)
Páginas 35 a 41