Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

"Uma conversa com José Saramago" - Folhas de Cibrão - Pedro Casteleiro e Antom Malde entrevistaram José Saramago (1990)

"Em 1990, Pedro Casteleiro e Antom Malde entrevistaram José Saramago para Folhas de Cibrão. Revista Universitária de Investigação Científica, com motivo duma estadia do escritor na Galiza. A entrevista saíu publicada no número II, Maio 1990, pp. 9-26."

(Estatueta agora presente na sede da Fundação José Saramago)


Link para consulta da entrevista e demais informação,
em http://www.udc.gal/dep/lx/cac/sopirrait/sr067.htm

"Uma conversa com José Saramago"

FOLHAS DE CIBRÃO: Onde nasceu você, não só para a vida como pessoa, mas também para a vida literária?

JOSÉ SARAMAGO: Bom, onde nasci como pessoa é o mais fácil de dizer, e se diz que nasci em Novembro de 1922, dia 16, embora a certidão de nascimento diga que nasci no 18, mas não é verdade, nasci no 16, numa aldeia do distrito de Santarém, numa aldeia chamada Azinhaga. Eu vivi ali pouco tempo, os meus pais viajaram para Lisboa.

Portanto eu saí da minha aldeia aos dez anos. Desde então eu vivo em Lisboa, embora até aos meus dezasseis-dezassete anos tivesse alternado entre uma vida em Lisboa e a vida lá na aldeia, porque todas as férias ia passá-las lá, durante a Páscoa, Natal, etc... De forma que continuei muito ligado às coisas do campo e dos trabalhos agrícolas até muito tarde.

Desde então é que realmente a vida mudou. Quanto à altura que se pode dizer que nasci para escritor... O que se pode dizer é que meus pais não eram ricos; ao contrário, eram bastante pobres e claro, meu pai sabia ler, sabia escrever, sabia contar, e minha mãe era analfabeta e ficou analfabeta até ao fim. Isto significava que a vida cultural na minha casa era nula, não havia livros. Eu lembro que o primeiro livro que tive, aos doze anos, deu-mo minha mãe porque eu lho pedira e depois, mais tarde, lembro também de ter estado lendo uma vez, e como na casa não havia livros, e eu gostava de ler, a minha mãe andava por casa das vizinhas a pedir livros.

E bom, pela altura dos meus dezasseis-dezassete anos, à conta disso, comecei a frequentar muito as bibliotecas públicas de leitura nocturna e foi aí que eu fiz a minha, por assim dizer, a minha aprendizagem literária no sentido de leitor, daquele que quer ler, o que quer saber o que é que se escreveu. Desordenadamente, claro, porque não tinha quem me orientasse, por isso fiz leituras que não devia ter feito; e quando digo que não as devia ter feito era porque não as entendia, estavam fora das minhas possibilidades de compreensão. E claro, depois chega a adolescência e como todos os adolescentes, começa-se a escrever os versos naquela altura eram sonetos. Enfim, disso claro que não resta nada porque essas coisas ou se racham ou se perdem. Mas eu creio que teria os meus dezoito anos e lembro-me que estando um dias com os amigos que tinha da minha idade, aquele jogo que se faz: Então, que é o que tu gostarias de ser um dia? E eu, sem saber muito bem porquê, disse: AAh, eu gostaria de ser escritor!

A verdade é que aos vinte e poucos anos comecei a escrever um romance que veio ser publicado depois em Março do quarenta e sete tinha eu vinte e cinco anos. Foi publicado até!

E depois passei vinte anos, não sem escrever, mas sem publicar. Ia escrevendo algumas coisas, uns contos, coisas assim...

Portanto, a minha vida literária propriamente dita com consistência e continuidade começa em 1966 quando já tinha quarenta e quatro anos, na altura em que já não se fazem as coisas, ou se tinham que ser feitas, já são feitas. O problema muitas vezes é dizer que nunca é tarde para fazer qualquer coisa. Desde o quarenta e quatro até agora Bem vinte e dois anos, estão escritos dezoito ou dezanove livros. Enfim, que enquanto se está vivo...

Eu lembro que havia um filósofo não lembro quem que dizia que se aos quarenta anos não se tinha elaborado um sistema filosófico, já não se elaboraria nunca.

Bom, eu não sei se isso é verdade quanto à filosofia; quanto à literatura, pode não se ter elaborado nada e pode-se a partir dos quarenta e quatro anos fazer aquilo que podia ser feito ao longo de uma vida inteira. Repito, eu de filosofia não sei nada...

Talvez os argumentos de muitos romances posteriores tinha-os pensado antes?

Não, não, ninguém tem argumentos aos dezoito anos para os realizar aos cinquenta. Cada coisa vem ao seu tempo.

Bom, existir, existem; eu penso que a gente aos vinte anos tem argumentos para realizar, ainda que nunca os realizam.

Sim, ou então dá-se que depois compreende que esses argumentos eram apenas ilusórios, e quando chegam à altura de fazer-se já são outra coisa, e quando olhamos para aquilo que temos pensado atrás, da ideia aquela que eu tinha e o que realmente foi realizado há muito tempo...

Qual é a obra sua que considera você que tem maior valor literário e qual considera que tem um maior valor sentimental?

Bom, sobre o valor literário os autores nunca são bons para dar uma resposta. Normalmente fugimos à questão dizendo que a melhor é a última, que é para dar a ideia aos outros que se escreve cada vez melhor o que não é verdade, claro. E a última agora nem sequer é a última publicada, porque vai ser publicado um outro romance. Aquilo que eu posso dizer... É muito difícil, porque a fim de contas são livros diferentes. Cada livro abre e fecha qualquer coisa, eu não escrevo sempre o mesmo livro, no sentido de ter um tema só, que se vai repetindo, que se vai muitas vezes aprofundando, como acontece com alguns autores que têm um tema determinado e que eles vão explorando e explorando e explorando...

Mas não é assim que as coisas passam comigo. Há um livro, fecha esse livro, e é como uma porta; abro uma porta, fechou a porta, e agora abro outra porta, e entro noutra sala. Então, é difícil comparar livros que são diferentes uns dos outros para perceber qual é realmente o melhor. Mas como de qualquer jeito tenho que dar uma resposta, o livro ao que sentimentalmente me sinto mais ligado talvez seja o Levantado do chão, porque é o livro que começa esta fase da minha vida de escritor, esta última fase. E é o livro que tenha sentido talvez mais dentro de mim pelas circunstâncias. Não só pelo próprio tema, porque de uma certa maneira, embora noutra região, recuperei o mundo da minha infância, da adolescência, dos camponeses e tudo isto, como também pela proximidade que estava, à altura que eu estive no Alentejo para recolher materiais, no 25 de Abril, no 25 de Novembro e tudo isso. Portanto a questão do latifúndio no Alentejo, a luta dos trabalhadores... Fiquei muito, no plano sentimental, muito ligado a esse livro.

Depois, o livro que eu talvez estime num certo plano de mais substância, e até aquilo que me deu mais trabalho, será O ano da morte de Ricardo Reis. Claro, isto não significa que coincida com as opiniões gerais, porque há pessoas que dizem : O Memorial do convento é que é; outras dizem: Não, não, é a Jangada de pedra... Enfim, como vocês fizeram a pergunta, eu tinha que dar uma resposta.

Por exemplo, a obra que você gostaria de escrever, uma obra que seria como vértice de toda a sua produção, tem-na pensado?

Não sei, isso, isso é difícil. Claro que neste momento tenho dois ou três..., em rigor tenho dois projectos, dois livros, que um deles quero começar espero dentro de poucas semanas, poucas semanas ou poucos meses, que será aquele que pudera ser, mas que de qualquer jeito não creio que se apresente como o vértice. De todos jeitos, nunca sabemos o que é o vértice de uma obra, não é necessariamente a última. Basta lembrar, enfim, o caso de Tolstoi, cuja obra cume é Guerra e paz, e depois de Guerra e paz escreveu tanta coisa. Apenas sei que tenho dois ou três temas, uns mais claros que os outros... E o livro que eu vou começar a escrever é também um romance claro que é, e que é neste momento o meu campo de trabalho. Já tem título, porque normalmente os meus livros têm sempre título; ainda não está escrita uma linha e já tem título.

E não muda nunca?

Não, não... Normalmente a primeira regra que eu tenho para um livro já traz o título. É um livro que se chamará O Evangelho segundo Jesus Cristo. Como sabem, Jesus Cristo não escreveu a sua vida, que se saiba. Então há um Evangelho segundo S. Marcos, S. Mateus, S. Lucas, S. João, mas testemunhos autobiográficos não existem. De maneira que é o projecto que eu tenho há tempo para intentar.

Poderia falar-nos da sua obra escrita e ainda sem publicar?

Não, não, disso não falo nada... Não, disso não direi nada. E por uma razão simples; esse livro chama-se História do cerco de Lisboa. Se tivesse havido apenas um cerco em Lisboa, já se sabia evidentemente qual era... Simplesmente, é que houve dois. E eu não quero dizer qual, porque a partir do momento em que se saiba, as pessoas começam a falar...

E claro, não vem com o vosso caso, porque... Quando é que sai a revista?

A revista sai em Maio.

Em Maio... Ora bem, como o livro será publicado em Lisboa em Abril, em 20 de Abril... Se vocês me prometem que reservam a informação...

Sim, sim, prometido.

Bom, não é que tenha muita importância, não tem muita importância, só que o autor tem os seus caprichos...

Bom, nós asseguramos-lhe que esperamos a que se publique a obra...

Bom, isso está perfeitamente claro. O livro é lançado em Lisboa no dia 20 de Abril... Já tem data marcada e tudo. Então, houve realmente dois cercos, até houve três, mas um deles, enfim, que não teve nenhuma importância. Houve um cerco em 1147, quando o primeiro rei português conquistou Lisboa aos mouros com o auxílio de uns corsários que passavam por Lisboa, e tudo o demais... Enfim, um cerco que durou quatro ou cinco meses... E depois houve um outro cerco em 1383, quando os castelhanos Bessa sombra negra da nossa história, da nossa vida, enfim invadiram Portugal, cercaram Lisboa e depois acabaram por ter que se ir embora sem conquistar Lisboa. Portanto, a história do cerco de Lisboa, qual delas é? Então, eu direi que é a de 1147.

Normalmente os meus amigos próximos é que o sabem. Outras pessoas com quem tenho relação de amizade, mas não costumo fazer confidências, apostam que é o de 1383...

Conhece você um relato breve de Eça de Queiroz que está incluído em O Conde de Abranhos chamado A Catástrofe, no que emprega justamente esse termo que você acaba de empregar quando a sentinela passa uma e outra vez: a sombra negra...?

Ah, olha, é natural que sim porque, aliás, lembro que li esse texto... Mas havia uns anos. Sombra negra, é realmente uma sombra negra e foi-o durante séculos.

Você sabe que há um poema de Rosália de Castro que nuns versos diz:

Fum a Castela por pão
e saramagos me derom,
derom-me fel por bebida,
peninhas por alimento.

Sim, o saramago é uma planta que nos tempos da minha infância e antes, as pessoas da minha aldeia, em épocas de crises, digamos, comiam saramagos.

E o saramago é um alcume de família. Eu fui o primeiro Saramago da família, porque o empregado do registo civil, quando meu pai foi dizer: Nasceu um rapaz! Como é que o rapaz se chama? E ele diz: O seu nome é José de Sousa, pois Sousa era o nome da minha família paterna, e foi ele o que acrescentou, pela sua conta e risco, Saramago.

E ninguém se apercebeu disso até à altura em que eu fui para a escola, e então foi preciso tirar documentos e meu pai ficou a saber que tinha um filho que tinha um nome que não era o dele. E tem graça, porque meu pai, julgo eu isto é o que penso hoje, como ele tinha deixado a aldeia e tinha ido para a cidade, então de uma certa maneira ele não gostava da alcunha de Saramago. E lembro e eu tenho recordação disso a pesares de tantos anos terem passado que meu pai reagiu, não ficou satisfeito com a ideia de que o seu filho... Mas foi obrigado a fazer um registo adicional, porque então não se compreendia como é que de um Sousa tinha saído um Saramago. Então ele teve de fazer um registo adicional para ficar com o nome que o filho tinha.

Como conjuga você, ou como pensa você que se pode conjugar forma, conteúdo e compromisso social?

Essas são velhas questões que acho que no fundo não têm... Vamos lá ver, se começamos com a forma e o conteúdo, eu não separo a forma e o conteúdo. Acho que quaisquer tentativas para separar a forma do conteúdo são tentativas artificiais, são inúteis, perde-se o tempo e às vezes as pessoas zangam-se umas com as outras nessas questões entre a forma e o conteúdo. Porque se é verdade que não há uma forma em si, a forma é forma porque é forma do conteúdo, e assim como não há um conteúdo em si, porque o conteúdo necessita de uma forma. O que é um conteúdo sem uma forma, o que é uma forma sem um conteúdo? Há uma contradição completa quando se opõem estes dois termos, está-se a apor o que isoladamente não existe: não há forma e não há conteúdo. Para que existam têm que estar juntas. E se se altera a forma o conteúdo altera-se também.

Porque vamos ver, se eu tivesse uma informação a dar, seja qual for, por exemplo: Está Sol, tem um conteúdo que é o de informação, tem uma forma que são as palavras que eu uso para dar essa informação, e agora aqui, como é que se vai separar uma coisa da outra? Ora, se eu dizer doutra maneira, alterando a forma de o dizer, eu torno também diferente o próprio conteúdo, que já não é apenas o estar Sol, mas é todo um desenvolvimento afectivo, sentimento plástico, lírico se se quiser, tudo o que quiserem à volta desta ideia de estar o dia, como é um dia de sol, altera-se com o modo de nós dizermos, altera-se até com o próprio tom das palavras. Se eu dizer a alguém: Gosto de ti!, este gosto de ti pode ser dito de mil e uma maneiras, desde perceber a pessoa que a fim de contas eu não gosto nada dela, ou perceber até que de facto eu gosto muito dessa pessoa.

Quanto ao compromisso social, para mim está claro: se o escritor como pessoa tem um compromisso social, se o tem, passa à obra mais ou menos acentuadamente, apresenta-se de uma maneira mais directa ou não. Se esse autor tem compromisso social isso também se nota na obra, porque nós percebemos ao ler se esse senhor não quer saber nada.

Mas deve provocar-se a propósito na obra o compromisso social, quer dizer, eu vou fazer tal coisa, mas quero que nessa obra se note de que lado estou, ou se note que estou denunciando. Quer dizer, pode provocar-se, é lícito?

Eu acho que se pode provocar. O que me parece é que talvez não valha muito a pena. Eu penso que é preferível que essa expressão saia naturalmente e que não resulte de uma predeterminação...

O processo de chegar ao leitor é um processo de insinuação, quer dizer, temos que chegar insinuando. Não vale a pena entrar pelo leitor dentro e partir as portas e entrar por aí. Não, é um processo de insinuação, de captação.

Muitas vezes tem-se recorrido ao mito de chegar ao povo. Na Galiza, por exemplo, também com a língua. A língua na sua correcta ortografia, por assim dizê-lo, não chega ao povo, porque o povo está alfabetizado em castelhano. Dum ponto de vista literário pensa você que se pode chegar ao povo partindo dele, ou culturizando-o?

O problema é que chegar ao povo... O que é chegar ao povo? O que é o povo, e o modo como poderíamos chegar a ele, e a que povo iríamos chegando cada vez? Porque se eu escrevesse um livro menos complexo do que naturalmente faço, ainda que não faço livros difíceis por uma questão de querer fazer propositadamente um livro difícil, podem dizer: Não, você faz os livros muito complicados, o povo não entende! Bom, eu vou então, imaginemos, escrever um livro menos complexo. Inevitavelmente virão dizer: Bom, algumas pessoas já entenderam, mas você sabe que há ainda uma quantidade de pessoas que não entenderam. E eu torno a escrever outro livro, e vou conquistando... E logo se põe a questão de se essas pessoas compraram de facto o livro, e se tinham dinheiro para fazê-lo; e se tendo dinheiro para comprá-lo, entenderam efectivamente.

O problema não é ir ao povo, o problema é que a educação, a instrução, a cultura que o autor possa adquirir para si e com os quais escreve depois os seus livros, tem que estar ao alcance desse mesmo povo, para que eventualmente pessoas vindas desse mesmo povo também venham a escrever livros, e se não os escrevessem, que possam entendê-los. O problema não está em levar os livros ao povo; está em que cada um de nós tem de fazer da melhor maneira possível aquilo que sabe. O crime, o erro, é fazê-lo pior podendo-o fazer melhor.

E como isto se aplica a toda a gente? Verticalmente e horizontalmente, então, cada um de nós tem que ter as condições para poder fazer melhor aquilo que num certo momento, por falta de condições, ainda não pôde fazer. Não é o eu escrever uma história que pudesse ser entendida pela pessoa, que certamente mais abaixo está, que é um analfabeto, e que não valia apenas entregar livros, porque não podia lê-los, e ao que eu teria que contar oralmente a história que queria contar.

Mas este não é o caminho, o caminho é a alfabetização geral, a cultura ao alcance de todos, a cultura feita por todos como contribuição de cada um na sua área própria. E como há livros meus aos que há pessoas que não podem chegar, eu tenho que declarar, muito humildemente, que há livros que também não entendo, que também não estão ao meu alcance. Eu não posso dizer aos autores desses livros que escrevam os livros para que eu os entenda; o mal, o defeito, a carência, está em mim, não está neles. E se eu quiser realmente entendê-los, tenho que me esforçar, tenho que chegar lá.

Tem você algum contacto com a literatura feita na Galiza?

Não, quer dizer, a literatura feita na Galiza é para nós uma grande desconhecida. Se tiramos os nomes conhecidíssimos mas mesmo assim com altas e baixas a respeito da divulgação deles, se tiramos um Castelão, uma Rosália, um Cunqueiro, um Blanco-Amor e alguns poetas como Manuel-Maria... A regra é o grande desconhecimento. E é um desconhecimento que não sei como é que se pode resolver.

É muito fácil dizer: Temos que correr, ir por um lado, ir pelo outro... Isso é muito fácil dizer, mas como é que isso se faz é muito mais difícil, porque isso passa por uma coisa que se chama distribuição do livro, venda do livro, colocação do livro nas livrarias, interesse do público de um lado e doutro e isso já sabemos que está muito mal.

Claro que o problema é que em Portugal quando se fala da literatura dos nossos dias, o que nós vemos é a literatura espanhola. E não pensamos se é de Catalunha ou da Galiza ou de Andaluzia. É literatura que vem da Espanha. Há uma atitude involuntária reducionista que apaga as nacionalidades, que apaga as expressões literárias nacionais e que as reduz a uma linha única que é a Espanha. Pode acontecer que um autor galego, se for traduzido em Portugal, provavelmente dirão que é um autor galego; dirão que é um autor espanhol. E tudo isto acaba por confundir. Claro que, nalguns casos, quando são literaturas com expressão mais forte, relativamente mais forte em termos de divulgação, como é o caso da catalã...

Mas da Galiza é realmente difícil termos uma ideia clara do que aqui se passa. Certos jornais em Portugal dão alguns excertos, mas são tão poucos que melhor é dizer que é um ou dois. Dão, de facto, alguma atenção, mesmo assim bastante reduzida acerca do que é que se passa aqui. Mas eu acho que a culpa talvez seja vossa... Se vocês querem sair desta penumbra em que a Galiza vive porque a Galiza tem vivido em penumbra até do ponto de vista do resto da Espanha... Como é que não há-de viver em penumbra do ponto de vista de Portugal?

Mas isso é estranho teoricamente, porque nós não falamos a mesma língua que os espanhóis, mas sim a mesma língua que você?

É evidente, mas falta fazer não sei quê se me perguntarem, o que é que é preciso fazer para que tenhamos todos a consciência de que praticamente falamos a mesma língua, porque falamos a mesma língua, e por que é que então não...

É claro que do ponto de vista do poder central espanhol, qualquer aproximação entre a Galiza e Portugal, mesmo no plano linguístico, no plano cultural e tudo isto, eu acho que é vista com maus olhos. Madrid não gostaria que por cima do rio Minho se lancem todas as pontes possíveis e imagináveis, e que a Galiza seja uma espécie de prolongamento natural de Portugal... Mas também não vejo que tal e como as coisas estão, que Madrid... Eu não me apercebo de que haja acções do governo de Madrid no sentido de serem contrárias a isto, também não as há no sentido de favorecer...

Sim, têm talvez que jogar ao iberismo, têm que jogar ao europeísmo, têm que jogar com isso.

Não, olha, eu acho que a situação se pode modificar radicalmente...

Talvez no 92, que é a abertura das fronteiras na Europa...

Não, não, a Europa não. A Europa iria acabar com a Galiza, com as Astúrias... Não espero nada de bom da Europa. Aquilo que eu acho é que a situação pode modificar-se muito a partir do momento em que ache uma Espanha federativa, em que a Espanha não seria mais já esta coisa híbrida que não se sabe se é um país só, se é um conjunto de nacionalidades, e em que as autonomias se vão conquistando muito lentamente, e pouco a pouco. A solução para a Espanha é chegar à figura de uma federação. Então as relações entre Portugal e a Espanha deixariam de ser, como são, predominantemente relações bilaterais, entre Estado e Estado, para se tornarem relações multilaterais, relação entre Portugal e Catalunha, entre Portugal e Andaluzia, entre Portugal e a Galiza. Neste processo, sobretudo do ponto de vista cultural, neste processo circular em tudo comunica com tudo, então penso que a situação aí se modificará.

Agora também, com tudo isto, além de passar pelo marketing, passa também por uma vontade política. A questão que se põe é esta, é saber que é o que a autonomia galega pensa... (bom, quando digo a autonomia galega, digo os seus representantes políticos superiores), o que é que pensam de uma aproximação com Portugal. Embora por outro lado, eu acho que se devia reflectir sobre coisas tão significativas como esta:

Há alguns anos eu estava em Madrid, entrei numa livraria e havia um livro de Castelão. Comprei o livro de Castelão, cheguei ao hotel, abri o livro, olhei-no e comecei a ler... E disse: que é o que estou lendo...? Estava lendo uma tradução espanhola, uma tradução castelhana do galego, da língua galega que o Castelão tinha usado. E então interroguei-me... Como é que é possível isto? Então é que a Espanha precisa certa Espanha, a Espanha castelhana, precisa de traduzir um livro de Castelão para que...

Ora bem, entre Portugal e a Galiza isso não é necessário; um livro de Castelão pode ser lido, embora não seja lido por qualquer pessoa, mas mesmo assim há a dificuldade de entrar numa língua, que sendo a mesma, não a escrevem igual...

Bom, para nós..., quer dizer, se eu tomo um livro de Castelão há muitas coisas que não entendo, porque são dialectalismos...

Pois são questões de dialectalismos, são questões de regionalismos muito estreitos, e isto está bem. Isso também acontece comigo, por exemplo, se leio um livro de Aquilino Ribeiro, algumas vezes tenho que ir a um dicionário muito bom, muito rico, para encontrar lá termos que ele usou.

Mas de facto acontece isto que é extraordinário: chegar aqui um escritor de Portugal para fazer um colóquio, tem trezentas pessoas que o recebem e o ouvem... Mas à inversa não se daria. Se fosse um escritor galego a Lisboa, isso não aconteceria. Iriam não sei quantas, mas muito poucas pessoas. Quer dizer, nós não vos vemos a vocês. A Espanha, a ideia da Espanha está antes. Antes de que nós consigamos ver à Galiza temos que ver antes à Espanha, que se levanta ocultando a Galiza. E isto, esta relação é que é preciso inverter. Não é esquecer ou apartar a Espanha, é tornar a Galiza mais visível.

Havia uma frase de Castelão quando na Segunda República Espanhola se falara tanto do iberismo e da futura confederação, e que não entenderam bem os castelhanos: Bom, falam vocês muito de iberismo e demais, mas esquecem que única chave para abrir Portugal é a Galiza.

Ora bem, nessa altura seria, mas agora não há chaves, há gazuas...., que se chamam a invasão económica dos espanhóis, a compra de empresas pelos espanhóis, e tudo isso. Mas isto não é nada que não tivesse acontecido já antes. Porque toda a gente se surpreende agora com a invasão dos espanhóis, mas ninguém se surpreendeu até agora com a invasão dos norte-americanos, que têm as empresas, que vendem Coca-Cola, que vendem camisetas com Universidade de Boston, e que são vestidas por pessoas que nunca irão à Universidade de Boston, e que nem sequer sabem onde é que fica Boston. Esse é sim um domínio, e a única coisa que temos que pedir nós próprios é capacidade para invadirmos nós a Espanha.

Há talvez um certo complexo de inferioridade em Portugal a respeito da Europa, e a respeito do mundo? Um complexo que para os galegos nos parece muito estranho, porque o argumento que nós temos sempre é Portugal.

Eu não diria exactamente um complexo de inferioridade. Cada um tem de ter consciência daquilo que vale, e nós temos consciência que somos um pequeno país; não vale a pena de entrar em delírios de megalomania. Nos séculos XV e XVI de facto Espanha e Portugal possuíam uma tecnologia que nenhum país da Europa tinha. E foi essa tecnologia a que nos permitiu termos uns barcos e irmos por aí fora. Eu não falo já de espírito de aventura, não tem que ver com isso; a tecnologia ninguém tinha, e nós a tínhamos e fomos. E agora não temos.

O que acontece é isto; enquanto a Espanha sempre teve, mais ou menos, uma ideias imperiais que ficaram do Império, a verdade é que para nós essa história do Império nunca teve um grande significado, nunca no povo português, e também não nas classes sociais mais altas se criou a ideia, nem nos intelectuais nem em nada disso, que nós tínhamos o Império. Então nós vivemos sempre na própria dimensão, conscientes da nossa debilidade, da nossa perspectiva, evidentemente, sabendo que militarmente não somos nada, sabendo que economicamente somos muito pouco, e não o chamaria complexo de inferioridade, mas consciência do que de facto somos.

Em relação à Espanha, enfim, são velhas histórias, são velhas histórias que assentam em preconceitos, evidentemente, mas também é verdade que até isto tem que ser entendido. Porque quando nós olhamos para o mapa da Espanha e está ali um, eu penso que os espanhóis não gostam de ver a Península Ibérica, não gostam de olhar para o mapa da Península Ibérica, porque de duas uma: ou a reproduzem inteira nos seus mapas, e então aquele bocado que está ali não é Espanha; ou então, como às vezes fazem, retiram Portugal de ali, e então a Espanha fica toda desarrumada... Há uma falta ali acima...

Temos que entender que a presença de Portugal aqui criou nos espanhóis ao longo do tempo uma certa instabilidade, que superou ou substituiu por um sentimento de indiferença: o que está ali não existe!

Portanto, para além dos conflitos que houver, os conflitos militares, os problemas dinásticos que evidentemente se resolvem, agora estamos em vias de não pensar mais nessas histórias de Aljubarrota, e Filipes e tudo isso. O que é necessário é que pelo nosso lado se perca esse sentimento de desconfiança em relação à Espanha, onde até nós temos um refrão que diz: De Espanha nem bom vento, nem bom casamento. Eu tento de desmentir isso, porque é que estou casado com uma espanhola e, portanto, nós temos que perder esse sentimento de temor, esse sentimento histórico de temor... E a Espanha tem que perceber que dez milhões de pessoas aqui ao lado, com uma cultura e uma história, e uma identidade e uma personalidade próprias, têm que ser reconhecidas e respeitadas, e que se perca essa ideia de que o português é...

Você que tem como matéria prima de trabalho a Língua Portuguesa, que pensa do estado actual desta em toda a Lusofonia, e em concreto na Galiza e Portugal?

Bom, eu conheço mal a questão; sei que o problema aqui, a questão não é pacífica, isso já o sei. Que há lusistas muito determinados, há outros grupos que tendem, pelo contrário, para a continuação da castelhanização do galego...

Julgo que, ao contrário do que é acostumo dizer, nestes casos eu estou de acordo com o radicalismo. Porque uma atitude de meias tintas, de meias águas, acabará com certeza por prejudicar a própria identidade do galego, não já no que se refere apenas à língua, mas também à sua própria identidade cultural. E penso que essa tentativa de aproximação da norma portuguesa, que muitos defendem com muita força, pode não ser alcançável, quer dizer, pode até eventualmente não ser útil, completamente útil. Mas penso que os que defendem essa aproximação tão radical, aquilo que no fundo estão a fazer é a querer defender-se do castelhano. E a verdade é que o galego não tem outra maneira de defender-se do castelhano, senão aproximando-se do português.

Então, essa atitude tão radical que em si mesma pode, e acredito que sim, criar tensões aqui na Galiza, polémicas entre gente que não se fala uns com os outros, que se começou uma guerra. Isso eu julgo que é legítimo, que é natural, e que é mesmo desejável. Porque é justamente, na medida que essa tensão em cada um esteja muito consciente, daquilo que defende e daquilo que quer, só daí é que poderá resultar um encontro para uma solução, que defenda o galego do castelhano.

Agora em toda a Lusofonia, não só na Galiza, está a haver uma luta com os acordos ortográficas, que vão para adiante, que não vão...

Tivemos aí há dois anos uma espécie de guerra santa em que se levantaram os puristas todos dizendo: Vamos perder o português! O português, nós é que falamos a língua, os outros não! Nós é que somos os proprietários da língua!... É um completo absurdo, ninguém é proprietário da língua, ou são proprietários de uma língua todos aqueles que a falam. E agora vai, de aqui a pouco tempo, vai ser apresentada outra proposta de acordo, que neste momento é muito mais consensuada, e julgo que não vai levantar nenhuns problemas mais, e vamos ter aquilo que é de facto necessário, e indispensável, uma norma única, embora sobre essa norma se articulem todas as pronúncias que são próprias de cada país. Cada país falará com o sotaque com o que fala, mas a norma escrita será igual para todos, com a grande vantagem de poder ser informatizado e poderem entrar no circuito internacional das línguas, e sabemos que os organismos internacionais... Uma coisa é uma língua que é falada por dez milhões de pessoas, ou escrita com uma certa norma por dez milhões de pessoa, que embora falando diferentemente usam uma norma escrita igual; a situação muda completamente.

Se você fizesse hoje uma outra viagem por Portugal, seria a mesma que a que você contemplou numas páginas anos atrás?

Não, e não seria a mesma porque provavelmente eu iria escolher um outro itinerário, não iria repetir. Eu cheguei, numa certa altura em debates sobre a história, e sobre a característica do romance histórico ou não, e eu apresentei como exemplo o caso desse livro. No fundo, viajar no espaço pode parecer-se muito com o viajar no tempo. Porque se eu viajasse no espaço, por exemplo, em Portugal, e depois fizesse outra viagem nesse mesmo espaço, tendo cuidado de não passar por nenhum dos lugares pelos que tinha passado antes, e escrevesse outro livro, e escrevesse um terceiro, e um quarto, e um quinto, e um sexto..., e um décimo livro, sempre com a mesma preocupação de não passar pelos lugares pelos que já tinha passado antes, no décimo livro estarei ainda a falar de Portugal, embora Portugal seja já irreconhecível naquele livro, e contudo ainda estou a falar de Portugal. E na viagem no tempo ou na história, pode passar-se exactamente da mesma maneira. Evitando os nomes dos reis e das batalhas e os tratados, e fazendo sucessivas viagens na história até ficar limitado ao essencial da vida quotidiana, já não se fala de batalhas e está-se a falar ainda da história e das gentes de Portugal."

«A morte de Julião», conto de José Saramago

«A morte de Julião», conto de José Saramago

"Julião tinha medo, um medo mortal.
Estava sozinho no seu quarto, sentado perto da janela por onde entrava a luz antipática do crepúsculo da cidade. Pousava as mãos sobre os joelhos e ali as abandonara. As paredes do quarto eram brancas à luz do dia, brancas como um véu de noivado, brancas como uma pilha de sal ou, mais exactamente, brancas como umas paredes brancas. (Será forçoso que, em literatura, qualquer coisa seja como outra
coisa?). Mas as paredes, agora, estavam sujas da luz do crepúsculo. Já não eram brancas, mas azuis-cinzentas, neste momento mais azuis-cinzentas do que há pouco.
Numa delas, dois retratos: um de homem, outro de mulher – os pais de Julião. Haviam morrido velhos, mas, ali, estavam novos, tal como se tivessem ainda que vivem muitos anos.
Quando Julião se estendia na cama, ficavam-lhe por cima, e ele nunca passava sem perguntar a si próprio por que motivo não envelheciam os retratos. E sorria da sua inteligência ao encontrar a resposta, sempre a mesma: os retratos eram coisas, não eram seres. É certo que as coisas e os seres envelhecem igualmente, mas as primeiras continuam sendo coisas e os seres deixam de ser o que eram. Há até quem diga que passam a ser coisas.
Na rua rolava um turbilhão de seres e de coisas. E, ou fosse por bilidade [sic] de prestidigitação, os seres moviam-se como coisas e as coisas como seres. Os pensamentos no cérebro de Julião confundiam-se. Da janela via um canto da rua onde afluíam e se aglomeravam automóveis e «eléctricos» e gente. Ou a aglomeração seria de gente, «eléctricos» e automóveis? Estas acrobacias mentais fazia-as Julião para espantar o medo. Ah, mas o medo não é uma coisa que se espante assim! E muito menos quando esse medo é o da morte. Não ficou dito atrás, de facto, mas o certo é que Julião tinha medo da morte. E é por isto que o medo era mortal.
A luz ia fugindo pouco a pouco e outro medo se apossou de Julião: o de morrer quando ela desaparecesse por completo. Não, morrer às escuras, não! E nem a morte deve significar trevas, a morte deve ser um esplendor vivíssimo, deslumbrante, talvez com alguma figura ao fundo, como nas grandes aparições celestiais em que são férteis as vidas dos santos. Mas Julião não era santo. Como quer que fosse, às escuras, nunca. Tentou erguer-se para rodar o interruptor da corrente eléctrica, mas recaiu na cadeira. Concentrou-se: teria bebido demasiado? Não se lembrava. E, de resto, se a morte era um resplendor, iluminaria o quarto quando chegasse e não seria precisa a electricidade.
Um pormenor apenas preocupava Julião: depois de morto veria o resplendor, o facho, a aurora? Ou exactamente a intensidade da luz o cegaria, deixando-o imerso nas trevas, não por estar morto, mas por estar cego? Esfregou os olhos. Na parede, a mãe continuava ao lado do pai. Não estava, portanto, nem morto nem cego: estava sentado e vivo. O quarto já não era azul-cinza, mas azul negro; a cama de ferro, um poço onde seria bom dormir.
Mas Julião não tinha sono. Tinha medo. Chegara havia duas horas de um enterro. O morto já o estava há quinze dias e o seu aspecto era abominável. Até esse dia, a morte fora para Julião uma circunstância penosa mas decente. Os cadáveres que vira iam para debaixo da terra ainda com a aparência de vivos. E na memória de Julião ficavam para sempre com a serenidade das suas faces compostas. Mas aquele, não. 
Aquele aterrava. Aquele estabelecia um estado intermédio entre as recordações de Julião e os ossos limpos dos esqueletos de estudo. Por isso, Julião tinha medo, mas de morrer. Talvez até nem mesmo de morrer, mas de estar morto quinze dias.  Filosofou em voz baixa: «Para quê lutas, amores, ódios, despeitos, guerras?
Tudo acaba em estar morto quinze dias e o pior castigo seria ressuscitar ao fim desse tempo.» Calou-se abruptamente com a nítida consciência de que dizia tolices. Não se está morto quinze dias; está-se morto a eternidade. Não é verdade, pai? Não é verdade, mãe? Olhou para os retratos. Já não os via. A escuridão preenchia por completo o vazio do quarto.
Julião sentia-se como uma pedra dentro de um bloco de gelo. Moveu os ombros e ouviu a escuridão a estalar à sua volta. Ou seria a cadeira? Moveu-se outra vez. Era a cadeira, sem dúvida. E, que diabo, a escuridão não estala. «Memento homo...», teriam sido estas as palavras que o padre pronunciara no cemitério? Talvez outras. Latim, em todo o caso. E, a propósito, por que se falará em latim, uma língua que nem os vivos nem os mortos entendem? Ah, sim, é a língua que Deus compreende. Mas, então, Deus não será poliglota?
Foi neste momento que a escuridão estalou. Houve mesmo um crepitar. Pela janela entrou um foco imenso, o quarto ficou branco como se dia fosse. Era luz, muita luz, grande luz. «É a morte», pensou Julião. E ficou radiante porque acertara: no centro do foco aparecia uma figura de mulher. Ou seria uma criança? Ah, Julião preferia uma criança. Sim, a morte era uma criança que sempre pedia mais. Pedia-o agora a ele. Abriu a janela. O resplendor era, neste momento, maior, mais alto, mais largo, mais todas as dimensões!... Num pulo, Julião galgou o parapeito.
O filho do vizinho do prédio fronteiro queimava fogo de artifício..."

Publicada em, Ver e crer, n.º 39, Julho de 1948


Saramago "Lo que pasó con Salman Rushdie fue una señal" - Entrevista ao El País (9/02/2006)

Juan Cruz entrevistou José Saramago, em 9 de Fevereiro de 2006 para o jornal El País. 
Na Dinamarca, por esta altura, acontecia um episódio de ameaças perpetradas por radicais islâmicos, contra um cartoonista e a revista que publicou uma caricatura de Maomé, onde se vislumbra um turbante preto satirizado em forma de bomba prestes a explodir.
O massacre de ontem contra o jornal satírico Charlie Hebdo, de onde resultou a execução de 12 pessoas e muitas mais feridas, torna esta entrevista de leitura obrigatória. 

Link original da entrevista,
em http://elpais.com/diario/2006/02/09/internacional/1139439607_850215.html

Link de um grupo no facebook - "Amigos de José Saramago", onde foi colocada a entrevista em destaque. Aqui, em https://www.facebook.com/amigosdejosesaramago

"Lo que pasó con Salman Rushdie fue una señal"
De Juan Cruz, em 9 de Fevereiro de 2006

Fotografia de Gorka Lejarcegi

"Los premios Nobel José Saramago y Günter Grass, portugués y alemán, expresan sus opiniones acerca del debate generado tras la publicación en Dinamarca de las caricaturas de Mahoma que han desatado una ola de violencia y otras reacciones en el mundo islámico. Saramago fue atacado en su país y en otros países católicos cuando publicó, en 1991, El Evangelio según Jesucristo, acusado de ser blasfemo con los dogmas católicos. Grass es visitante asiduo de Dinamarca, donde además vivió una época crucial de su vida."


¿Le sorprendió que la aparición de los dibujos desatara esta polémica?
Los dibujos se publicaron en septiembre, y estamos en febrero. Ahora surgen de súbito, como si hubieran aparecido ayer. El conflicto lleva mucho tiempo calentándose. Lo que me sorprendió es que algo tan viejo estallara como una bomba ahora por algo que apareció en septiembre. Por otra parte, la reacción tampoco es novedosa. Lo hemos vivido en los siglos XV o XVI, fuimos igual de intolerantes, quemamos a los que pensaban distinto, no hemos sido tan diferentes.

¿Y le sorprendieron las reacciones violentas?
En algunos momentos he temido lo peor. Vivimos en Estados laicos, en los que el margen de libertad es amplísimo, y a veces pensamos que todo el mundo se alimenta de lo mismo, y no es así. Pero conociendo lo que es el islam, y sobre todo la situación internacional, las reacciones no me han sorprendido. Que algunas manifestaciones hayan sido organizadas no tiene por qué maravillarnos, porque ya se sabe lo fácil que es. Y tampoco me ha sorprendido la violencia con que se han producido. Lo que sí me pilló desprevenido es la irresponsabilidad del autor o de los autores de esos dibujos. Algunos opinan que la libertad de expresión es un derecho absoluto, el único derecho absoluto que existe, mientras que todos los demás son relativos. La cruda realidad impone límites. Imaginemos que el dibujante danés, en lugar de hacer una viñeta ridiculizando a Mahoma, dibuja una diciendo que el director del periódico es un imbécil. Sería muy valiente, pero al día siguiente probablemente estaría en la calle.

¿Qué hacer? ¿Autocensurarse?
No se trataría de autocensurarse, sino de usar el sentido común. En una situación como la que vivimos, y conociendo la susceptibilidad que hay en torno a estos temas, el sentido común nos dictaría qué hacer. Alguien verdaderamente responsable que tuviera constancia de que una viñeta puede ser como echar gasolina al fuego la guardaría para mejor ocasión.

¿Es esta una expresión del choque de civilizaciones?
El choque está ahí, y siempre ocurre cuando la Verdad se encuentra condensada en un libro. Ocurrió con la Biblia, que ha sido usada como un arma, pasó no hace mucho con el Libro Rojo de Mao, pasó con Mein Kampf de Hitler, pasa con el Corán..., y los uso como ejemplo de lo que ocurre cuando se limitan las verdades plurales, cuando se expresa que hay un Dios y que todo lo contrario niega la existencia de ese Dios... Matar en nombre de Dios es hacer de Dios un asesino... ¿Habrá conciliación? Presupone una enseñanza que eduque en el respeto de las creencias del otro; y aunque esto se hiciera sería obra de una generación, y no tenemos mucho tiempo. Si no se inventa un modo de llegar a un pacto de no agresión entre las religiones, tampoco se podrá llegar a esa alianza de civilizaciones de la que se habla. ¿Quién firmará el pacto? No veo al Papa y a otros representantes de otras confesiones cristianas teniendo delante de la mesa a representantes del islam.

¿El futuro será igual de explosivo?
Ambas civilizaciones han vivido pocos momentos de paz; no veo cómo se remediará ahora la lucha que está latente; acaso cuando la tolerancia se instale como algo casi natural. Ahora sabemos que en Irak los profesores más abiertos han sido expulsados de la Universidad o están en la cárcel... Es urgente educar para la tolerancia. Tenemos un problema ahora.

¿Ha vivido alguna experiencia de intolerancia?
En mi caso, mi choque con la intolerancia [el rechazo católico a El Evangelio según Jesucristo] no puso nunca mi vida en riesgo. Fue una decisión estúpida del ministro de Cultura de mi país. Luego ocurrió algo mucho más serio, que fue lo que pasó con Rushdie. Con la distancia que nos da el tiempo podemos decir que aquella fue una señal.




Obras Completas de José Saramago no Brasil (Companhia das Letras / Brasil) - Via Fundação José Saramago

Capa Volume 1
Memorial do Convento - Levantado do Chão - Manual de Pintura e Caligrafia
O Ano de 1993 - As Pequenas Memórias

Notícia via Fundação José Saramago, 
"A Companhia das Letras acaba de dar à estampa os primeiros dois volumes das Obras Completas de José Saramago. Acompanha, em cada um destes volumes, uma “Carta do Editor” onde Luiz Schwarcz termina com:
«Assim, um escritor em busca profunda pela justiça social acaba por nos propor a liberdade como melhor mecanismo para alcançá-la. Não há mensagem literária mais genuína do que esta. Chegado a subverter parábolas bíblicas, José Saramago bem que poderia ter escrito: “e no começo fez-se a liberdade”. Lendo a sua obra ficamos com vontade de fazer da liberdade também o nosso fim.
Felizes são os homens e mulheres que editam e leem José Saramago. (Que sorte a vida me deu.)»
No primeiro volume encontram-se as obras “Memorial do Convento”, “Levantado do Chão”, “Manual de Pintura e Caligrafia”, “O Ano de 1993″, “As Pequenas Memórias”, e no segundo “Ensaio sobre a Cegueira”, “Ensaio sobre a Lucidez”, “Que farei com Este Livro?”, “In Nomine Dei”, “Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido”.
O projeto gráfico destas edições é da autoria de Alceu Chiesorin Nunes, também autor da capa, e de Bruno Romão.
As Obras Completas encontram-se actualmente à venda exclusivamente na Livraria Cultura, Brasil"

Capa do Volume 2
Ensaio sobre a Cegueira - Ensaio sobre a Lucidez - Que farei com Este Livro? 
In Nomine Dei - Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido 





Depois do ataque a o jornal satírico "Charlie Hebdo" - Algumas ideias sobre as intolerâncias religiosas

Mensagem divulgada pelas redes sociais

(...) "É inevitável, as religiões, como as revoluções, devoram os seus filhos. Há nas religiões um contínuo processo de devoramento em que Deus é como um Moloch que necessitasse do sacrifício humano. Imaginando que Deus existe — e não lhe concedo o beneficio da dúvida —, Deus não pode, por boa lógica, criar seres para os destruir. O cristianismo na sua derivante católica, que é a que conhecemos melhor, é uma história de sofrimentos contínuos. (...)

(...) Mas as religiões tanto servem para sobreviver às perseguições como para fazer perseguições, e os perseguidos vão por, seu turno refugiar-se noutra religião que fará outros perseguidos. É um jogo entre poderes que se debatem em circunstâncias históricas diferentes. Veja-se as cruzadas, uma crença contra outra crença, uma guerra não entre um Deus e outro, Alá, mas entre dois livros, a Bíblia e o Corão. Do ponto de vista do meu bom senso é absurdo. (...)

Extractos da entrevista de Clara Ferreira Alves a José Saramago, originalmente publicada no jornal "Expresso", em 2/11/1991

Com a tag #JeSuisCharlie esta imagem correu mundo,
testemunhando o horror que originou um repúdio consensual 


(...) "No seu discurso aquando da cerimónia da entrega do Nobel fez um balanço doso livros que tinha publicado até então e fez questão de na parte de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" reforçar, mais uma vez, publicamente a sua habitual contrariedade em relação ao papel da Igreja. Essa será uma das marcas da vida de José Saramago? 

É. É uma das marcas, digamos, da minha vida e da minha personalidade. A questão é que a Igreja Católica, é a essa que nos referimos, confundiu-se muitas vezes — demasiadas vezes — com uma associação de criminosos. Inventou a Inquisição para vigiar o grau de fidelidade às crenças cristãs, sobretudo na sua versão católica, e a partir daí organizar um sistema repressivo implacável e de uma crueldade absolutamente diabólica que nega qual-quer direito que a Igreja suponha ter para interferir na vida de cada um. Que, no fundo, é o que ela quer, a Igreja não está nada preocupada com a minha alma ou com a sua — ela própria tem muitas dúvidas sobre essa questão de haver alma — porque o que quer controlar é o meu corpo e o seu corpo e para purificar-se e assim acumulou um passivo nestes dois mil anos de uma lista de mortos interminável por causas distintas. É uma banalidade dizer que Deus nunca cá esteve em baixo a ver o que é que estava bem e o que é que estava mal, a deixar os seus conselhos ou as suas críticas. Nunca, nunca aconteceu e não acontecerá, Deus simplesmente não existe ou, como eu digo no In Nomine Dei, Deus é apenas o nome que tem, não é mais nada. Mas é o poder, poder de tal forma descarado e insolente que pretende introduzir-se em todos os aspectos da vida humana — no comportamento sexual, no cumprimento de regras que não vieram das estabelecidas por seres humanos —para controlar os seres humanos e isto há que denunciá-lo. Mas, o poder da Igreja Católica está de tal forma enraizado no corpo social e na mente das pessoas que não vejo como é que se possa sair disto. Com o Vaticano II, a Igreja fez uma espécie de esforço, o chamado aggiornamento, para se adaptar à sociedade humana em marcha tal como acontece com os touros quando saltam a barreira. A isso chamam-lhe crença natural... O touro está na praça mas lembra-se de que há um sítio onde tinha estado antes, num lugar um pouco sujo e mal cheiroso mas onde estava melhor. Como não pode regressar ao campo, quer voltar para o curro porque ali está, ou crê que está, em segurança e a Igreja tem que voltar sempre à sua crença natural e a crença natural da Igreja é o autoritarismo e é a intolerância. Uma intolerância que começa por ser em relação a outras religiões, por isso a longuíssima história das guerras de religião, enquanto no interior de si mesma mantém uma vigilância constante sobre os actos e se possível os pensamentos dos fiéis para ver se mijam ou não fora do penico. No fundo é isto, não se pode ter confiança nessa gente, principalmente quando sabemos que foram tantas e quantas vezes cúmplices de um poder político e político-militar implacável que recorreu à tortura sistemática que a Igreja abençoou. Basta ver o exemplo de Franco que quando saía de uma igreja fazia-o debaixo do pálio! O pior de tudo, é que nós vivemos num engano e a questão posta n' "As Intermitências da Morte" é bastante clara porque a única justificação ou a única razão que dá força à Igreja é a morte. Porque foi a sua existência, e continua a ser, que permite à Igreja Católica representar a comédia e dizer às pessoas «portem-se bem porque terão no Além o prémio ou o castigo, se se portarem mal».



Logo no início de "As Intermitências da Morte", o cardeal diz: «Sem morte não há ressurreição e sem ressurreição não há Igreja»... 
O único fundamento que a Igreja Católica tem para tentar manter-se de pé e continuar é defender com unhas e dentes, com bons ou maus argumentos, ou de qualquer maneira, a ressurreição. Porque se não há ressurreição não há Igreja. Se os corpos não ressuscitam e se as almas, ou o que quer que seja, não têm uma duração maior que a vida em que situação é que ficaria a Igreja? Para chegar a um suposto julgamento ou a uma decisão que não se sabe quem é que vai tomar sobre o destino que se há-de dar para toda a eternidade — castigo ou prémio — em que é que fica a Igreja? Em nada... Dominam os pensamentos, criam coisas que não existiam antes como, por exemplo, o pecado. Inventar o pecado foi uma manobra absolutamente genial porque se eu faço qualquer coisa, a Igreja aparece a dizer que isso é pecado, não importa que eu pergunte «É pecado porquê?» porque não têm uma explicação. Não podem dizer que receberam um e-mail do céu a dizer «Cuidado que fulano tal e fulana estão aí a cometer vários pecados». Não, simplesmente lideram em função do risco que, para a manutenção da própria Igreja, pode representar uma desobediência, uma heresia e um protesto contra os métodos da própria Igreja. Tudo isso é um mecanismo de repressão e, ao mesmo tempo, uma fábrica que produz uma ideologia que nos mantém atados." (...)

em, "Uma longa viagem com José Saramago
de João Céu e Silva
Porto Editora, páginas 254 a 256

Imagem metafórica com alusão aos atentados de 11/9, 
agora com lápis não censurados contra os ódios e fanatismos religiosos


Luís Cília canta o poema de José Saramago "Dia não" (Os Poemas Possíveis)


No Palau de Sant Jordi, Barcelona, 1993
Luís Cília canta em homenagem a Raimon, a sua canção de 1964, 
"Dia Não" com poema de José Saramago. 



"Dia Não" em "Os Poemas possíveis"

"De paisagens mentirosas
de luar e alvoradas
de perfumes e de rosas
de vertigens disfarçadas.

Que o poema se desnude
de tais roupas emprestadas
seja seco, seja rude
como pedras calcinadas

Que não fale em coração
nem de coisas delicadas
que diga não quando não
que não finja mascaradas

De vergonha se recolha
se as faces tiver molhadas
para seus gritos escolha
as orelhas mais tapadas

E quando falar de mim
em palavras amargadas
que o poema seja assim
portas e ruas fechadas

Ah! que saudades do sim
nestas quadras desoladas."