Mensagem divulgada pelas redes sociais
(...) "É inevitável, as religiões, como as revoluções, devoram os seus filhos. Há nas religiões um contínuo processo de devoramento em que Deus é como um Moloch que necessitasse do sacrifício humano. Imaginando que Deus existe — e não lhe concedo o beneficio da dúvida —, Deus não pode, por boa lógica, criar seres para os destruir. O cristianismo na sua derivante católica, que é a que conhecemos melhor, é uma história de sofrimentos contínuos. (...)
(...) Mas as religiões tanto servem para sobreviver às perseguições como para fazer perseguições, e os perseguidos vão por, seu turno refugiar-se noutra religião que fará outros perseguidos. É um jogo entre poderes que se debatem em circunstâncias históricas diferentes. Veja-se as cruzadas, uma crença contra outra crença, uma guerra não entre um Deus e outro, Alá, mas entre dois livros, a Bíblia e o Corão. Do ponto de vista do meu bom senso é absurdo. (...)
Extractos da entrevista de Clara Ferreira Alves a José Saramago, originalmente publicada no jornal "Expresso", em 2/11/1991
Com a tag #JeSuisCharlie esta imagem correu mundo,
testemunhando o horror que originou um repúdio consensual
(...) "No seu discurso aquando da cerimónia da entrega do Nobel fez um balanço doso livros que tinha publicado até então e fez questão de na parte de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" reforçar, mais uma vez, publicamente a sua habitual contrariedade em relação ao papel da Igreja. Essa será uma das marcas da vida de José Saramago?
É. É uma das marcas, digamos, da minha vida e da minha personalidade. A questão é que a Igreja Católica, é a essa que nos referimos, confundiu-se muitas vezes — demasiadas vezes — com uma associação de criminosos. Inventou a Inquisição para vigiar o grau de fidelidade às crenças cristãs, sobretudo na sua versão católica, e a partir daí organizar um sistema repressivo implacável e de uma crueldade absolutamente diabólica que nega qual-quer direito que a Igreja suponha ter para interferir na vida de cada um. Que, no fundo, é o que ela quer, a Igreja não está nada preocupada com a minha alma ou com a sua — ela própria tem muitas dúvidas sobre essa questão de haver alma — porque o que quer controlar é o meu corpo e o seu corpo e para purificar-se e assim acumulou um passivo nestes dois mil anos de uma lista de mortos interminável por causas distintas. É uma banalidade dizer que Deus nunca cá esteve em baixo a ver o que é que estava bem e o que é que estava mal, a deixar os seus conselhos ou as suas críticas. Nunca, nunca aconteceu e não acontecerá, Deus simplesmente não existe ou, como eu digo no In Nomine Dei, Deus é apenas o nome que tem, não é mais nada. Mas é o poder, poder de tal forma descarado e insolente que pretende introduzir-se em todos os aspectos da vida humana — no comportamento sexual, no cumprimento de regras que não vieram das estabelecidas por seres humanos —para controlar os seres humanos e isto há que denunciá-lo. Mas, o poder da Igreja Católica está de tal forma enraizado no corpo social e na mente das pessoas que não vejo como é que se possa sair disto. Com o Vaticano II, a Igreja fez uma espécie de esforço, o chamado aggiornamento, para se adaptar à sociedade humana em marcha tal como acontece com os touros quando saltam a barreira. A isso chamam-lhe crença natural... O touro está na praça mas lembra-se de que há um sítio onde tinha estado antes, num lugar um pouco sujo e mal cheiroso mas onde estava melhor. Como não pode regressar ao campo, quer voltar para o curro porque ali está, ou crê que está, em segurança e a Igreja tem que voltar sempre à sua crença natural e a crença natural da Igreja é o autoritarismo e é a intolerância. Uma intolerância que começa por ser em relação a outras religiões, por isso a longuíssima história das guerras de religião, enquanto no interior de si mesma mantém uma vigilância constante sobre os actos e se possível os pensamentos dos fiéis para ver se mijam ou não fora do penico. No fundo é isto, não se pode ter confiança nessa gente, principalmente quando sabemos que foram tantas e quantas vezes cúmplices de um poder político e político-militar implacável que recorreu à tortura sistemática que a Igreja abençoou. Basta ver o exemplo de Franco que quando saía de uma igreja fazia-o debaixo do pálio! O pior de tudo, é que nós vivemos num engano e a questão posta n' "As Intermitências da Morte" é bastante clara porque a única justificação ou a única razão que dá força à Igreja é a morte. Porque foi a sua existência, e continua a ser, que permite à Igreja Católica representar a comédia e dizer às pessoas «portem-se bem porque terão no Além o prémio ou o castigo, se se portarem mal».
Logo no início de "As Intermitências da Morte", o cardeal diz: «Sem morte não há ressurreição e sem ressurreição não há Igreja»...
O único fundamento que a Igreja Católica tem para tentar manter-se de pé e continuar é defender com unhas e dentes, com bons ou maus argumentos, ou de qualquer maneira, a ressurreição. Porque se não há ressurreição não há Igreja. Se os corpos não ressuscitam e se as almas, ou o que quer que seja, não têm uma duração maior que a vida em que situação é que ficaria a Igreja? Para chegar a um suposto julgamento ou a uma decisão que não se sabe quem é que vai tomar sobre o destino que se há-de dar para toda a eternidade — castigo ou prémio — em que é que fica a Igreja? Em nada... Dominam os pensamentos, criam coisas que não existiam antes como, por exemplo, o pecado. Inventar o pecado foi uma manobra absolutamente genial porque se eu faço qualquer coisa, a Igreja aparece a dizer que isso é pecado, não importa que eu pergunte «É pecado porquê?» porque não têm uma explicação. Não podem dizer que receberam um e-mail do céu a dizer «Cuidado que fulano tal e fulana estão aí a cometer vários pecados». Não, simplesmente lideram em função do risco que, para a manutenção da própria Igreja, pode representar uma desobediência, uma heresia e um protesto contra os métodos da própria Igreja. Tudo isso é um mecanismo de repressão e, ao mesmo tempo, uma fábrica que produz uma ideologia que nos mantém atados." (...)
em, "Uma longa viagem com José Saramago
de João Céu e Silva
Porto Editora, páginas 254 a 256
Imagem metafórica com alusão aos atentados de 11/9,
agora com lápis não censurados contra os ódios e fanatismos religiosos
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