Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Depois do ataque a o jornal satírico "Charlie Hebdo" - Algumas ideias sobre as intolerâncias religiosas

Mensagem divulgada pelas redes sociais

(...) "É inevitável, as religiões, como as revoluções, devoram os seus filhos. Há nas religiões um contínuo processo de devoramento em que Deus é como um Moloch que necessitasse do sacrifício humano. Imaginando que Deus existe — e não lhe concedo o beneficio da dúvida —, Deus não pode, por boa lógica, criar seres para os destruir. O cristianismo na sua derivante católica, que é a que conhecemos melhor, é uma história de sofrimentos contínuos. (...)

(...) Mas as religiões tanto servem para sobreviver às perseguições como para fazer perseguições, e os perseguidos vão por, seu turno refugiar-se noutra religião que fará outros perseguidos. É um jogo entre poderes que se debatem em circunstâncias históricas diferentes. Veja-se as cruzadas, uma crença contra outra crença, uma guerra não entre um Deus e outro, Alá, mas entre dois livros, a Bíblia e o Corão. Do ponto de vista do meu bom senso é absurdo. (...)

Extractos da entrevista de Clara Ferreira Alves a José Saramago, originalmente publicada no jornal "Expresso", em 2/11/1991

Com a tag #JeSuisCharlie esta imagem correu mundo,
testemunhando o horror que originou um repúdio consensual 


(...) "No seu discurso aquando da cerimónia da entrega do Nobel fez um balanço doso livros que tinha publicado até então e fez questão de na parte de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" reforçar, mais uma vez, publicamente a sua habitual contrariedade em relação ao papel da Igreja. Essa será uma das marcas da vida de José Saramago? 

É. É uma das marcas, digamos, da minha vida e da minha personalidade. A questão é que a Igreja Católica, é a essa que nos referimos, confundiu-se muitas vezes — demasiadas vezes — com uma associação de criminosos. Inventou a Inquisição para vigiar o grau de fidelidade às crenças cristãs, sobretudo na sua versão católica, e a partir daí organizar um sistema repressivo implacável e de uma crueldade absolutamente diabólica que nega qual-quer direito que a Igreja suponha ter para interferir na vida de cada um. Que, no fundo, é o que ela quer, a Igreja não está nada preocupada com a minha alma ou com a sua — ela própria tem muitas dúvidas sobre essa questão de haver alma — porque o que quer controlar é o meu corpo e o seu corpo e para purificar-se e assim acumulou um passivo nestes dois mil anos de uma lista de mortos interminável por causas distintas. É uma banalidade dizer que Deus nunca cá esteve em baixo a ver o que é que estava bem e o que é que estava mal, a deixar os seus conselhos ou as suas críticas. Nunca, nunca aconteceu e não acontecerá, Deus simplesmente não existe ou, como eu digo no In Nomine Dei, Deus é apenas o nome que tem, não é mais nada. Mas é o poder, poder de tal forma descarado e insolente que pretende introduzir-se em todos os aspectos da vida humana — no comportamento sexual, no cumprimento de regras que não vieram das estabelecidas por seres humanos —para controlar os seres humanos e isto há que denunciá-lo. Mas, o poder da Igreja Católica está de tal forma enraizado no corpo social e na mente das pessoas que não vejo como é que se possa sair disto. Com o Vaticano II, a Igreja fez uma espécie de esforço, o chamado aggiornamento, para se adaptar à sociedade humana em marcha tal como acontece com os touros quando saltam a barreira. A isso chamam-lhe crença natural... O touro está na praça mas lembra-se de que há um sítio onde tinha estado antes, num lugar um pouco sujo e mal cheiroso mas onde estava melhor. Como não pode regressar ao campo, quer voltar para o curro porque ali está, ou crê que está, em segurança e a Igreja tem que voltar sempre à sua crença natural e a crença natural da Igreja é o autoritarismo e é a intolerância. Uma intolerância que começa por ser em relação a outras religiões, por isso a longuíssima história das guerras de religião, enquanto no interior de si mesma mantém uma vigilância constante sobre os actos e se possível os pensamentos dos fiéis para ver se mijam ou não fora do penico. No fundo é isto, não se pode ter confiança nessa gente, principalmente quando sabemos que foram tantas e quantas vezes cúmplices de um poder político e político-militar implacável que recorreu à tortura sistemática que a Igreja abençoou. Basta ver o exemplo de Franco que quando saía de uma igreja fazia-o debaixo do pálio! O pior de tudo, é que nós vivemos num engano e a questão posta n' "As Intermitências da Morte" é bastante clara porque a única justificação ou a única razão que dá força à Igreja é a morte. Porque foi a sua existência, e continua a ser, que permite à Igreja Católica representar a comédia e dizer às pessoas «portem-se bem porque terão no Além o prémio ou o castigo, se se portarem mal».



Logo no início de "As Intermitências da Morte", o cardeal diz: «Sem morte não há ressurreição e sem ressurreição não há Igreja»... 
O único fundamento que a Igreja Católica tem para tentar manter-se de pé e continuar é defender com unhas e dentes, com bons ou maus argumentos, ou de qualquer maneira, a ressurreição. Porque se não há ressurreição não há Igreja. Se os corpos não ressuscitam e se as almas, ou o que quer que seja, não têm uma duração maior que a vida em que situação é que ficaria a Igreja? Para chegar a um suposto julgamento ou a uma decisão que não se sabe quem é que vai tomar sobre o destino que se há-de dar para toda a eternidade — castigo ou prémio — em que é que fica a Igreja? Em nada... Dominam os pensamentos, criam coisas que não existiam antes como, por exemplo, o pecado. Inventar o pecado foi uma manobra absolutamente genial porque se eu faço qualquer coisa, a Igreja aparece a dizer que isso é pecado, não importa que eu pergunte «É pecado porquê?» porque não têm uma explicação. Não podem dizer que receberam um e-mail do céu a dizer «Cuidado que fulano tal e fulana estão aí a cometer vários pecados». Não, simplesmente lideram em função do risco que, para a manutenção da própria Igreja, pode representar uma desobediência, uma heresia e um protesto contra os métodos da própria Igreja. Tudo isso é um mecanismo de repressão e, ao mesmo tempo, uma fábrica que produz uma ideologia que nos mantém atados." (...)

em, "Uma longa viagem com José Saramago
de João Céu e Silva
Porto Editora, páginas 254 a 256

Imagem metafórica com alusão aos atentados de 11/9, 
agora com lápis não censurados contra os ódios e fanatismos religiosos


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