30 de Novembro (de 1994)
"Palavras iniciais da conferência que fui dar em Las Palmas, no Centro Insular de Cultura: «Vivemos, nós os que habitamos nas Canárias, em sete jangadas de pedra erguidas pelo fogo e agora ancoradas no mar, se não contarmos uns quantos ilhéus que são como barcas orgulhosas que não tivessem querido recolher-se ao porto. Embora não creia no destino, pergunto-me se ao escrever a minha Jangada de Pedra, a outra, não estaria já buscando, sem o saber, a rota que sete anos depois me havia de levar a Lanzarote.
«Porém, a "jangada de pedra" não é só o original e particular meio de transporte de que me sirvo para as grandes ocasiões: ela é também essa parte do mundo que nos leva e traz desde antes que pudéssemos chamar-nos a nós próprios portugueses e espanhóis, a velha península carregada de história e de cultura que cometeu o prodígio de fazer-se inteira ao mar para levar a Europa aonde ela não parecia capaz de ir pelas suas próprias artes e indústria. E se, cinco séculos depois, um discreto escritor português se atreveu a romper as amarras que nos prendem ao cais europeu, foi ainda para tentar persuadir a Europa, e em primeiro lugar a portugueses e espanhóis, de que já é tempo de olhar para o Sul, de respeitar o Sul, de pensar no Sul, de trabalhar com o Sul, e de que a possibilidade de um efectivo papel histórico dos povos da Península Ibérica no futuro depende da sua compreensão de que são, de um lado e do outro da fronteira, continentais, sim, mas também atlânticos e ultramarinos.» E acrescentei, rematando assim a introdução: «Talvez possam entendê-lo melhor que ninguém estes sete "adiantados" da Ibéria que são as ilhas Canárias, estas sete jangadas caldeadas por dois fogos, o do céu e o da terra. Não falo aqui dos Açores portugueses, que quase só olham para os Estados Unidos, nem da Madeira, que não consegue saber para onde há-de olhar...»"
in, "Cadernos de Lanzarote Diário II"
Caminho, páginas 240 e 241