Será possível conhecer a obra e o legado de um homem, baseado no estudo e conhecimento do que produziu e deixou aos seus, enquanto resultado final?
Neste caso, nesta área de acção - a escrita - e numa alusão algo simplista, um escritor deixa livros publicados ou rascunhos que poderiam ter dado lugar a algo mais substancial. Dessa obra que deixou e que pode sobreviver à morte do autor, serão traçadas as linhas caracterizadoras do seu pensamento; poucas linhas servirão para descrever quem foi "fulano de tal", que morreu na tal data, e que "abaixo se transcreve a sua bibliografia". Isto é o mundanamente vulgar que se inscreve, todos os dias, nos anais da história da literatura.
Daí a pergunta inicial, que cada um poderá dar a sua resposta, com base na experiência própria ou da sua percepção sobre o que é, o que pensa ser, o que gostaria de ser, e também, do que pensa que os outros entendem sobre si.
José Saramago, e na percepção do que eu assumo como meu pensamento principal, é a negação à resposta da minha pergunta.
A minha leitura da extraordinária conversa, entre a jornalista Ana Sousa Dias e José Saramago (Verão de 2006 em Lanzarote), acrescentou ao meu conhecimento mais alguns detalhes sobre a pessoa, o escritor e o intervencionista inquieto e desassossegado, que caracterizaram o autor. Neste caso, mostro-me maravilhado, pelo pormenor revelado sobre a via inicial com que a "História do Cerco de Lisboa", poderia ter sido conduzida pelo punho de Saramago, em eventual analogia à obra de Dino Buzatti, "O Deserto dos Tártaros".
Qual a importância deste facto? Relevância ou mera curiosidade? Talvez um pouco de cada, mas depois de ter lido estas linhas, perguntei-me:
«Poderíamos ter perdido e passado ao lado de Raimundo Silva?
Poderíamos ter perdido a discussão filosófica do peso do "não" e do "sim"?
O que seria deste quadro histórico se a linha de escrita tivesse sido outra?»
José Saramago, o seu legado, a extensão do seu "mundo", continuam hoje a provar, que, ele enquanto figura inicial e génese da filosofia "Saramaguiana", transcendem toda a sua obra publicada. Não é possível conhecer uma pessoa, só pelo que ela deixou realizado, e, neste caso transmitido em obras devidamente catalogadas. Não só, é obrigatório incluir as obras publicadas, mas também, tudo o que gira à volta do homem e das suas referências, sendo disto exemplo, as crónicas e textos realizados ao longa da vida e que muitas publicações deram disso testemunho, como objecto de reflexão sobre os dias e a história desses tempos passados - refiro-me aos livros de crónicas de teor político e social. Também não poderá faltar, a incursão pela sua poesia; poemas que continuam a ser musicados e cantados por homens e mulheres que sentem a mesma urgência inicial com que o autor os escreveu. Disto, e de entre alguns, são testemunhas Barata Moura, Manuel Freira, Mísia, Luis Pastor.
O intervencionista, o manifestante, a incursão pelos meandros da politica, o agitador de consciências, o homem social, o confronto com os pilares corrompidos da "igreja", a luta pela liberdade, a luta contra as várias formas de censura, as guerras que "comprou" e as em que foi envolvido, fizeram de Saramago, um ícone social, diria até, exterior e independente da obra produzida. O homem que lutou pela causa dos Zapatistas em Chiapas; na defesa do meio ambiente, que inscreveu nos Princípios da Fundação José Saramago; na intervenção conjunta com Sebastião Salgado; ou no apelo feito em defesa da activista e resistente Saharaui Aminatou Haidar; na posição pública perante a causa palestiniana; na oposição frontal a Guantanamo e a G.W.Bush, são momentos de intervenção cívica, que embora não retratados nos romances, não deixam de ficar imortalizados na história em memória daqueles que foram terrivelmente assassinados e oprimidos.
Saramago, é também conhecido, como tendo sido entusiasta e estudioso de outras áreas das artes e expressões artísticas. Melómano e apreciador de musica clássica, da pintura e cinema, de onde as suas obras disso fazem menção expressa; rapidamente nos lembramos do violoncelista em "As Intermitências da Morte", o espaço cénico e musical sempre presente no "Memorial do Convento", o retratista crítico de si, no "Manual de Pintura e Caligrafia", os barros e artes populares em "A Caverna", e toda a arte na sua forma do retrato que é (foi) Portugal através da "Viagem a Portugal". O seu interesse pela arte, é transportado para dentro dos seus livros e transmitido sob a forma de conhecimento.
José Saramago, foi também a solidariedade e amizade com aqueles que muito prezava e respeitava, dizia-se um solitário cheio de gente à sua volta; as multidões para o ouvir nas inúmeras conferências que realizou, deixava-o de boca aberta, as longas e intermináveis filas de autógrafos que tinha de estoicamente resistir, são exemplos do homem que era mais do que os livros escritos, e que lhe trouxeram a obrigação social de se manter disponível. Após a atribuição do Nobel, percorreu o mundo, deu voltas a Portugal e a muitos lugarejos, mais mundo teria percorrido se lhe fosse humanamente possível.
Foi com este humanamente impossível, e aqui relembro a visita que efectuou em cadeira de rodas, manifestamente debilitado, à exposição "A Consistência dos Sonhos", que ele involuntariamente ao longo dos tempos alcança uma imagem de força, resistência e tenacidade.
Ultrapassar o impossível e a alcançar o possível. A urgência de retribuir. O agradecimento. O homem que se sentia reconhecido, e a bondade com que, em forma de romance viveu os seus dias.
Será Pilar a responsável?
Miguel de Azevedo
"Depois vem um livro estranho que é a “História do Cerco de Lisboa”. A primeira ideia era na linha de “O Deserto dos Tártaros” do [Dino] Buzzati. Um cerco em que não se percebia muito bem quem cercava nem quem era cercado. Usemos a palavra: um pouco kafkiano. Isso andou na minha cabeça durante uma quantidade de anos até que me dispus a escrever o livro já com um objectivo completamente diferente. Em princípio, toda a gente parte do cerco de 1385, mas não, os cercados são os mouros. E entre as figuras simpáticas do livro algumas delas são mouros."
Extracto da entrevista de Ana Sousa Dias
Link para consulta em http://www.anasousadias.com/jose-saramago-2/
Baseado no post, sobre a mesma entrevista, aqui em http://desaramago.blogspot.pt/2014/12/ana-sousa-dias-entrevista-jose-saramago.html
(Dino Buzatti, 1906/1972)
Pequena referência biográfica do escritor Dino Buzatti,
via Wikipédia, em http://pt.wikipedia.org/wiki/Dino_Buzzati
"Dino Buzzati Traverso (San Pellegrino di Belluno, 16 de outubro, 1906 — Milão, 28 de janeiro, 1972) foi um escritor italiano, bem como jornalista do Corriere della Sera. Sua fama mundial é principalmente devido ao seu romance Il deserto dei Tartari, traduzido para português como O Deserto dos Tártaros, de 1940. Dino Buzzati detém um estilo inconfundível, que não obedece a modas e etiquetas, explorando sempre uma visão fantástica e absurda do real. A sua obra está traduzida em inglês, francês, alemão e espanhol e difundida largamente em todo o mundo.
Dino Buzzati nasceu perto de Belluno em uma pequena propriedade rural de sua família. Sua mãe, veterinária, era veneziana e seu pai, professor universitário, era de uma arntiga família de Belluno. Buzzati foi o segundo dos quatro filhos do casal. Desde muito jovem manifestou as que iam ser as aficções de toda sua vida: escrevia, desenhava, estudava violino e piano, além da paixão pela montanha à que dedicou sua primeira novela, Bárnabo das montanhas (Bàrnabo delle montagne) (1933).
Em 1924 ele entrou para a faculdade de direito da Universidade de Milão, onde seu pai já ensinara. Quando já estava para terminar seu curso de direito, aos 22 anos, tornou-se jornalista do jornal milanês Corriere della Sera, onde permaneceria até a sua morte. Não começou como repórter, onde só depois trabalharia como correspondente especial, ensaista, editor e crítico de arte. É comum dizer que sua profissão como jornalista teve forte influência sobre seus escritos, emprestando mesmo para seus contos mais fantásticos uma aura de realismo. Frequentou o Liceo Classico Parini di Milano e laureou-se em jurisprudência com uma tese La natura giuridica del Concordato.
O sucesso obtido com sua primeira novela, a já citada Bárnabo das montanhas, não se repetiu com a seguinte O segredo do Bosque Velho (Il segreto do Bosco Vecchio) (1935), que foi acolhida com indiferença.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Buzzati serviu na África, como jornalista da Marinha italiana. Após o fim da guerra, publicou sua obra-prima, O Deserto dos Tártaros, alcançando fama mundial e tendo grande sucesso de crítica.
Desde 1936 escreveu numerosos relatos para o Corriere della Sera e outros jornais, posteriormente recopilados em Os sete mensageiros e outros relatos (I sette messaggeri) (1942), Paura alla Scala (1949), Il crollo della Baliverna (1954), Sessanta racconti (1958, prêmio Strega), Esperimento dei magia (1958), Il colombre (1966), As noites difíceis e outros relatos (Lhe notti difficili) (1971).
Em 1960 saiu O grande retrato (Il grande ritratto), quase um experimento de novela]] de ciência ficção]], onde entra em cena o universo feminino, que até então tinha explorado muito pouco. Três anos depois, em Um amor (Um amore) relatou a história de Antonio Dorigo, um homem que encontra o amor aos cinquenta anos: apresenta prováveis rasgos autobiográficos, já que aos sessenta Buzzati casou-se com Almerina Antoniazzi.
Também elaborou roteiros de cinema, como o de Il viaggio de G. Mastorna, colaborando com Federico Fellini, além de libretos de ópera. Entre vários outros, venceu o prêmio jornalístico Mario Massai (1970) pelo artigo publicado no Corriere della Sera nell'estate (1969), sobre a descida do homem à Lua.
Em 1972 morre em decorrência do câncer, após uma prolongada luta contra a doença, na clínica La Madonnina de Milão."
(Capa da obra de Dino Buzzati)
Sinopse da obra, via Wikipédia, em http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Deserto_dos_Tártaros
"O Deserto dos Tártaros é uma romance escrito pelo escritor italiano Dino Buzzati em 1940, que gerou um filme - homónimo em 1976
A necessidade humana de dar sentido à vida e o desejo de imortalidade através da glória são o tema, sobre o qual circulam as alegorias desta obra. O enredo se desenrola sobre a narração da espera feita ao longo da vida do personagem Drogo, um militar de carreira, que vive se preparando para uma grande guerra na qual ele acredita que sua vida e existência serão postas à prova.
Drogo ainda jovem, é designado a uma remota fortaleza, localizada defronte a um deserto desolado, fronteiriço ao território tártaro. Nela, ele gasta sua carreira esperando e se preparando para uma invasão tártara, sempre temida em renovados rumores, alimentados pelo próprio Estado a que serve.
Só muito tarde, Drogo vai percebendo que ao longo dos anos em sua estadia no forte, ele deixou passar anos e décadas e que, apesar de seus velhos amigos, tanto os da cidade, como os militares que passaram pelo forte, terem tido filhos, casado, e vivido uma vida plena, ele em sua longa e paciente vigília veio acabar com nada, excepto a camaradagem militar.
Quando finalmente o ataque dos tártaros está para ocorrer de verdade, com as tropas inimigas à vista da fortaleza pela primeira vez em todos os seus anos, Drogo já velho e doente é dispensado pelo novo comandante do forte. Em seu caminho de volta à civilização, Drogo morre solitário em uma pousada."