Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

"História do Cerco de Lisboa” que PODERIA ter sido inspirada na obra de Dino Buzatti, “O Deserto dos Tártaros”

Será possível conhecer a obra e o legado de um homem, baseado no estudo e conhecimento do que produziu e deixou aos seus, enquanto resultado final?
Neste caso, nesta área de acção - a escrita - e numa alusão algo simplista, um escritor deixa livros publicados ou rascunhos que poderiam ter dado lugar a algo mais substancial. Dessa obra que deixou e que pode sobreviver à morte do autor, serão traçadas as linhas caracterizadoras do seu pensamento; poucas linhas servirão para descrever quem foi "fulano de tal", que morreu na tal data, e que "abaixo se transcreve a sua bibliografia". Isto é o mundanamente vulgar que se inscreve, todos os dias, nos anais da história da literatura.

Daí a pergunta inicial, que cada um poderá dar a sua resposta, com base na experiência própria ou da sua percepção sobre o que é, o que pensa ser, o que gostaria de ser, e também, do que pensa que os outros entendem sobre si.
José Saramago, e na percepção do que eu assumo como meu pensamento principal, é a negação à resposta da minha pergunta.

A minha leitura da extraordinária conversa, entre a jornalista Ana Sousa Dias e José Saramago (Verão de 2006 em Lanzarote), acrescentou ao meu conhecimento mais alguns detalhes sobre a pessoa, o escritor e o intervencionista inquieto e desassossegado, que caracterizaram o autor. Neste caso, mostro-me maravilhado, pelo pormenor revelado sobre a via inicial com que a "História do Cerco de Lisboa", poderia ter sido conduzida pelo punho de Saramago, em eventual analogia à obra de Dino Buzatti, "O Deserto dos Tártaros". 
Qual a importância deste facto? Relevância ou mera curiosidade? Talvez um pouco de cada, mas depois de ter lido estas linhas, perguntei-me: 
«Poderíamos ter perdido e passado ao lado de Raimundo Silva? 
Poderíamos ter perdido a discussão filosófica do peso do "não" e do "sim"? 
O que seria deste quadro histórico se a linha de escrita tivesse sido outra?»

José Saramago, o seu legado, a extensão do seu "mundo", continuam hoje a provar, que, ele enquanto figura inicial e génese da filosofia "Saramaguiana", transcendem toda a sua obra publicada. Não é possível conhecer uma pessoa, só pelo que ela deixou realizado, e, neste caso transmitido em obras devidamente catalogadas. Não só, é obrigatório incluir as obras publicadas, mas também, tudo o que gira à volta do homem e das suas referências, sendo disto exemplo, as crónicas e textos realizados ao longa da vida e que muitas publicações deram disso testemunho, como objecto de reflexão sobre os dias e a história desses tempos passados - refiro-me aos livros de crónicas de teor político e social. Também não poderá faltar, a incursão pela sua poesia; poemas que continuam a ser musicados e cantados por homens e mulheres que sentem a mesma urgência inicial com que o autor os escreveu. Disto, e de entre alguns, são testemunhas Barata Moura, Manuel Freira, Mísia, Luis Pastor.
O intervencionista, o manifestante, a incursão pelos meandros da politica, o agitador de consciências, o homem social, o confronto com os pilares corrompidos da "igreja", a luta pela liberdade, a luta contra as várias formas de censura, as guerras que "comprou" e as em que foi envolvido, fizeram de Saramago, um ícone social, diria até, exterior e independente da obra produzida. O homem que lutou pela causa dos Zapatistas em Chiapas; na defesa do meio ambiente, que inscreveu nos Princípios da Fundação José Saramago; na intervenção conjunta com Sebastião Salgado; ou no apelo feito em defesa da activista e resistente Saharaui Aminatou Haidar; na posição pública perante a causa palestiniana; na oposição frontal a Guantanamo e a G.W.Bush, são momentos de intervenção cívica, que embora não retratados nos romances, não deixam de ficar imortalizados na história em memória daqueles que foram terrivelmente assassinados e oprimidos.  

Saramago, é também conhecido, como tendo sido entusiasta e estudioso de outras áreas das artes e expressões artísticas. Melómano e apreciador de musica clássica, da pintura e cinema, de onde as suas obras disso fazem menção expressa; rapidamente nos lembramos do violoncelista em "As Intermitências da Morte", o espaço cénico e musical sempre presente no "Memorial do Convento", o retratista crítico de si, no "Manual de Pintura e Caligrafia", os barros e artes populares em "A Caverna", e toda a arte na sua forma do retrato que é (foi) Portugal através da "Viagem a Portugal". O seu interesse pela arte, é transportado para dentro dos seus livros e transmitido sob a forma de conhecimento.

José Saramago, foi também a solidariedade e amizade com aqueles que muito prezava e respeitava, dizia-se um solitário cheio de gente à sua volta; as multidões para o ouvir nas inúmeras conferências que realizou, deixava-o de boca aberta, as longas e intermináveis filas de autógrafos que tinha de estoicamente resistir, são exemplos do homem que era mais do que os livros escritos, e que lhe trouxeram a obrigação social de se manter disponível. Após a atribuição do Nobel, percorreu o mundo, deu voltas a Portugal e a muitos lugarejos, mais mundo teria percorrido se lhe fosse humanamente possível. 
Foi com este humanamente impossível, e aqui relembro a visita que efectuou em cadeira de rodas, manifestamente debilitado, à exposição "A Consistência dos Sonhos", que ele involuntariamente ao longo dos tempos alcança uma imagem de força, resistência e tenacidade. 
Ultrapassar o impossível e a alcançar o possível. A urgência de retribuir. O agradecimento. O homem que se sentia reconhecido, e a bondade com que, em forma de romance viveu os seus dias. 
Será Pilar a responsável?

Miguel de Azevedo 




"Depois vem um livro estranho que é a “História do Cerco de Lisboa”. A primeira ideia era na linha de “O Deserto dos Tártaros” do [Dino] Buzzati. Um cerco em que não se percebia muito bem quem cercava nem quem era cercado. Usemos a palavra: um pouco kafkiano. Isso andou na minha cabeça durante uma quantidade de anos até que me dispus a escrever o livro já com um objectivo completamente diferente. Em princípio, toda a gente parte do cerco de 1385, mas não, os cercados são os mouros. E entre as figuras simpáticas do livro algumas delas são mouros."

Extracto da entrevista de Ana Sousa Dias


(Dino Buzatti, 1906/1972)

Pequena referência biográfica do escritor Dino Buzatti,

"Dino Buzzati Traverso (San Pellegrino di Belluno, 16 de outubro, 1906 — Milão, 28 de janeiro, 1972) foi um escritor italiano, bem como jornalista do Corriere della Sera. Sua fama mundial é principalmente devido ao seu romance Il deserto dei Tartari, traduzido para português como O Deserto dos Tártaros, de 1940. Dino Buzzati detém um estilo inconfundível, que não obedece a modas e etiquetas, explorando sempre uma visão fantástica e absurda do real. A sua obra está traduzida em inglês, francês, alemão e espanhol e difundida largamente em todo o mundo.
Dino Buzzati nasceu perto de Belluno em uma pequena propriedade rural de sua família. Sua mãe, veterinária, era veneziana e seu pai, professor universitário, era de uma arntiga família de Belluno. Buzzati foi o segundo dos quatro filhos do casal. Desde muito jovem manifestou as que iam ser as aficções de toda sua vida: escrevia, desenhava, estudava violino e piano, além da paixão pela montanha à que dedicou sua primeira novela, Bárnabo das montanhas (Bàrnabo delle montagne) (1933).
Em 1924 ele entrou para a faculdade de direito da Universidade de Milão, onde seu pai já ensinara. Quando já estava para terminar seu curso de direito, aos 22 anos, tornou-se jornalista do jornal milanês Corriere della Sera, onde permaneceria até a sua morte. Não começou como repórter, onde só depois trabalharia como correspondente especial, ensaista, editor e crítico de arte. É comum dizer que sua profissão como jornalista teve forte influência sobre seus escritos, emprestando mesmo para seus contos mais fantásticos uma aura de realismo. Frequentou o Liceo Classico Parini di Milano e laureou-se em jurisprudência com uma tese La natura giuridica del Concordato.
O sucesso obtido com sua primeira novela, a já citada Bárnabo das montanhas, não se repetiu com a seguinte O segredo do Bosque Velho (Il segreto do Bosco Vecchio) (1935), que foi acolhida com indiferença.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Buzzati serviu na África, como jornalista da Marinha italiana. Após o fim da guerra, publicou sua obra-prima, O Deserto dos Tártaros, alcançando fama mundial e tendo grande sucesso de crítica.
Desde 1936 escreveu numerosos relatos para o Corriere della Sera e outros jornais, posteriormente recopilados em Os sete mensageiros e outros relatos (I sette messaggeri) (1942), Paura alla Scala (1949), Il crollo della Baliverna (1954), Sessanta racconti (1958, prêmio Strega), Esperimento dei magia (1958), Il colombre (1966), As noites difíceis e outros relatos (Lhe notti difficili) (1971).
Em 1960 saiu O grande retrato (Il grande ritratto), quase um experimento de novela]] de ciência ficção]], onde entra em cena o universo feminino, que até então tinha explorado muito pouco. Três anos depois, em Um amor (Um amore) relatou a história de Antonio Dorigo, um homem que encontra o amor aos cinquenta anos: apresenta prováveis rasgos autobiográficos, já que aos sessenta Buzzati casou-se com Almerina Antoniazzi.
Também elaborou roteiros de cinema, como o de Il viaggio de G. Mastorna, colaborando com Federico Fellini, além de libretos de ópera. Entre vários outros, venceu o prêmio jornalístico Mario Massai (1970) pelo artigo publicado no Corriere della Sera nell'estate (1969), sobre a descida do homem à Lua.
Em 1972 morre em decorrência do câncer, após uma prolongada luta contra a doença, na clínica La Madonnina de Milão."

(Capa da obra de Dino Buzzati)


Sinopse da obra, via Wikipédia, em http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Deserto_dos_Tártaros

"O Deserto dos Tártaros é uma romance escrito pelo escritor italiano Dino Buzzati em 1940, que gerou um filme - homónimo em 1976
A necessidade humana de dar sentido à vida e o desejo de imortalidade através da glória são o tema, sobre o qual circulam as alegorias desta obra. O enredo se desenrola sobre a narração da espera feita ao longo da vida do personagem Drogo, um militar de carreira, que vive se preparando para uma grande guerra na qual ele acredita que sua vida e existência serão postas à prova.
Drogo ainda jovem, é designado a uma remota fortaleza, localizada defronte a um deserto desolado, fronteiriço ao território tártaro. Nela, ele gasta sua carreira esperando e se preparando para uma invasão tártara, sempre temida em renovados rumores, alimentados pelo próprio Estado a que serve.
Só muito tarde, Drogo vai percebendo que ao longo dos anos em sua estadia no forte, ele deixou passar anos e décadas e que, apesar de seus velhos amigos, tanto os da cidade, como os militares que passaram pelo forte, terem tido filhos, casado, e vivido uma vida plena, ele em sua longa e paciente vigília veio acabar com nada, excepto a camaradagem militar.
Quando finalmente o ataque dos tártaros está para ocorrer de verdade, com as tropas inimigas à vista da fortaleza pela primeira vez em todos os seus anos, Drogo já velho e doente é dispensado pelo novo comandante do forte. Em seu caminho de volta à civilização, Drogo morre solitário em uma pousada."

Poema "Aprendamos o rito" de José Saramago (Os Poemas Possíveis) cantado por Carlos do Carmos


Carlos do Carmo - "Aprendamos o Rito"
Poema: José Saramago
Música: Miguel Ramos


"Aprendamos o rito"

"Põe na mesa a toalha adamascada
Traz as rosas mais frescas do jardim
Deita o vinho no copo, corta o pão
Com a faca de prata e de marfim

Alguém veio juntar-se à tua mesa
Alguém a quem não vês mas que pressentes
Cruza as mãos no regaço, não perguntes
Nas perguntas que fazes é que mentes

Prova depois o vinho, come o pão
Rasga a palma da mão no caule agudo
Leva as rosas à fonte, cobre os olhos
Cumpriste o ritual e sabes tudo."

em "Os Poemas Possíveis", 
Caminho, 3.ª edição, página 81