Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 26 de dezembro de 2015

Sobre o caso Salman Rushdie "Heresia, um direito humano" (26/01/1994) - Republicado na Revista Estudos Saramaguianos (#2)

O artigo foi publicado e está disponível para consulta e leitura cuja tradução foi realizada pelo académico Pedro Fernandes de Oliveira Neto, aqui
em http://www.estudossaramaguianos.com/2015/07/2_30.html

"Herejía, un derecho humano"
"En la extensa lista de las creaciones humanas, desde el descubrimiento de la rueda hasta la tecnología espacial, no he visto incluida aquella que se convirtió, sobre todo en tiempos pasados, en el más eficaz instrumento de dominio de los cuerpos y de las almas. Me refiero al sistema judicial y penal resultante de la invención del pecado con su burocrática división en pecados veniales y pecados mortales, y el subsiguiente catálogo de castigos, prohibiciones y penitencias. (...) 
Aqui a versão publicado no jornal El País em 16 de Fevereiro de 1994, aqui
em http://elpais.com/diario/1994/02/16/opinion/761353205_850215.html


"Heresia, um direito humano"
de José Saramago

"Na extensa lista das criações humanas, desde a descoberta da roda até a tecnologia espacial, não vi incluída aquela que se converteu, sobretudo em tempos passados, no mais eficaz instrumento de domínio dos corpos e das almas. Refiro-me ao sistema judicial e penal resultante da invenção do pecado com sua burocrática divisão em pecados veniais e pecados mortais e, por conseguinte o catálogo de proibições e penitências. Desacreditado, caído em relativo desuso como aqueles monumentos da antiguidade que o tempo implacável há arruinado, mas que conservam até a última pedra, a memória e a sugestão do que foi seu antigo poder, o sistema Judicial e penal que teve origem no pecado continua atuando e oprimindo de modo capcioso ou direto, como uma tela, nossas consciências. Compreendi melhor (se me permite, nesta ocasião, falar de mim mesmo) ante as polémicas desencadeadas pelo livro que intitulei O Evangelho segundo Jesus Cristo, agravadas, quase sempre, as ditas polémicas, por calúnias e insultos dirigidos contra o imprudente autor. Sendo O Evangelho segundo Jesus Cristo um romance que se limita a representar de novo, certo é que de uma maneira oblíqua e crítica, a figura e a vida de Jesus, é surpreendente que muitos dos que contra ele se pronunciaram hajam entendido como uma ameaça à estabilidade e à fortaleza dos fundamentos do mesmo cristianismo, em particular em sua versão católica. Seria o propósito perguntarmos aqui sobre a real solidez desse outro monumento herdado da antiguidade que é o cristianismo, se não fosse evidente que tais reações se deveram, fundamentalmente, a essa espécie de tropismo reflexo do sistema Judicial e penal do pecado que, de uma ou de outra maneira, com todas suas consequências, levamos dentro de nós. 
A expressão mais frequente desses ultramontanismos, felizmente a mais pacífica, consistiu em manifestar que o autor de O Evangelho segundo Jesus Cristo, sendo como é, um descrente, não tinha o direito de escrever sobre Jesus. A esta acusação, de aparência irrefutável, o autor de O Evangelho segundo Jesus Cristo, não esquecendo o básico direito que assiste qualquer escritor para escrever sobre qualquer tema, se limitou a responder que, bem vistas e ponderadas as coisas, não havia feito mais que escrever um livro sobre algo que diretamente lhe pertencia e continua lhe pertencendo, posto que, sendo efeito e produto da civilização e das culturas judaico-cristãs, é, em tudo e por tudo, no que se refere ao plano das mentalidades, um cristão, embora se defina a si mesmo filosoficamente como um ateu e na vida corrente se comporte como tal. Deste ponto de vista será lícito afirmar que, tanto como o mais convicto, observante e militante dos fiéis católicos me parecia, a mim, incrédulo, como sou, o direito a escrever sobre Jesus. Entre esse católico ou simples catecúmeno, e eu mesmo reconheço uma só diferença, mas esta, importante: um direito que nos é comum, por exemplo, o direito de pensar e a escrever, acrescento, por minha conta em risco, outro que ao católico está proibido: o direito a pecar. 
Bom, quem diz pecado poderá dizer heresia. Sendo a heresia uma negação ou dúvida pertinente, por parte de um cristão, de alguma verdade que se deve crer com fé divina e católica, não creio abusar demasiadamente da elasticidade semântica dos conceitos se digo que no pecado, qualquer que seja sua gravidade, já se está movendo embrionariamente, a heresia. Um teólogo demonstraria, com suas razões de teólogo, que não tenho razão, mas, no simples plano do comportamento humano, me parece bastante claro que entre o pecado (que é a ofensa a Deus) e a heresia (que é a negação da verdade que se deve crer) algo existe em comum: ambos expressam uma vontade de rebeldia, portanto, uma vontade de liberdade, seja qual seja o grau de consciência que a defina. Quando, ao longo da história da Igreja, as heresias se manifestaram pela negação ou rejeição voluntária de uma ou mais afirmações de fé (como se denominaria esta outra atitude, radical, de negá-las e rejeitá-las todas?), que fizeram essas heresias se não escolher, de um conjunto autoritário e coercitivo de supostas verdades, o que lhes parecia mais adequado, simultaneamente à fé e à razão? Que já a partir do século IV os concílios ecumênicos passassem a ser o principal instrumento eclesiástico para a definição da ortodoxia e condenação das heresias mostra, em primeiro lugar, que os movimentos chamados heréticos foram, pacificamente, contemporâneos ao nascimento do cristianismo e, em segundo lugar, que a Igreja, como poder central e centralizador por excelência, logo se autodesignou guardiã de uma lei em que ela própria, condenada as oposições, isto é, as heresias, estabelecia as condições da observância e os limites da crítica. Paradoxalmente, se observamos o que se passa em nossos dias, se vê como em nome da democracia estão reprovando todas e cada uma das ortodoxias políticas e ideológicas, aplaudindo-se, portanto, as heresias nascidas dentro delas, e como, em absoluta contradição com essa atitude liberalista, permanece no espírito das pessoas o temor supersticioso de ofender ou atentar contra Deus, quando apenas se trata de recusar ou negar o que foi imposto por outras pessoas, organizadas em igreja. E não devemos esquecer com que facilidade e comodidade alguns dos mais encarniçados defensores das heterodoxias ideológicas e políticas se aproveitam e conciliam politicamente, em nome de interesses práticos comuns, que não de Deus, com os aparelhos institucionais e as manipulações espirituais das diversas Igrejas do mundo, que pretendem manter e aumentar, pela condenação das heresias antigas e modernas e pelo castigo dos pecados de sempre, o seu poder sobre uma humanidade absurda mais disposta a pagar multiplicadas as suas pretensas ofensas a Deus do que a reconsiderar as culpas e os crimes de que, contra si mesma, é responsável. Sobram as razões pelas quais os homens falam que devem matar-se uns aos outros, não fazem falta as que duvidosamente são atribuídas aos deuses. A dura verdade é que vivemos no mundo da hipocrisia, da impostura, do fingimento, em que as insuficiências da razão são aproveitadas para negá-la. 
Quando Salman Rushdie escreveu Os versos satânicos, pelos caminhos próprios da arte, exerceu seu humaníssimo direito ao pecado e à heresia, como quer que os classifiquem e definam os teólogos mulçumanos. Também da vigilância doutrinal da Igreja Católica exercida a partir do século XVI pela Sagrada Congregação da Inquisição que hoje permanece como um pesadelo anti-humano, como foram os campos de concentração. Combater tais perversões do espírito é tarefa do espírito, mesmo quando ao simples direito de escolha chamem as igrejas, todas elas, condenatoria mente, pecado e heresia." 

El Pais, 16 de febrero de 1994. Tradução de Pedro Fernandes de Oliveira Neto



José Saramago fotografado por Micha Bar-Am (20 de Janeiro de 1994)

"Micha Bar-Am é o nome do fotógrafo de Israel de quem me falou Miriam Tivom há uma semana. Trabalha para a Magnum desde 1967 (...) 
Telefonou-me hoje para me dizer que está disposto a vir a Lanzarote para conversar, 
mostrar-me o seu trabalho (...)
Disse-lhe que viesse."
in, "Cadernos de Lanzarote - Diário II", Caminho, página 23 (20/01/1994)

Algum trabalho do fotografo Micha Bar-Am, pode ser consultado no site da Magnum Photos, aqui

As fotografias tiradas a José Saramago, estão neste link, 

Ref.ª Imagem PAR152403 (BAM1994011W02862/18) 
© Micha Bar Am/Magnum Photos


Ref.ª Imagem PAR152405 (BAM1994011W02862/03)
© Micha Bar Am/Magnum Photos


Ref.ª Imagem PAR152402 (BAM1994011W02862/13)
© Micha Bar Am/Magnum Photos