(Capa da edição)
Revista "Ler Livros & Leitores" - N.º 6 - Primavera de 1989
Entrevista de Francisco José Viegas
Fotografias de Luís Ramos
"Com a publicação de História do Cerco de Lisboa (Editorial Caminho), José Saramago conta sete romances. Nesta entrevista, o autor de Memorial do Convento e de O Ano da Morte de Ricardo Reis fala de alguns deles. E da forma como a vida continua a surpreendê-lo."
É uma máquina de escrever, esta que está junto de nós enquanto fala-mos: teclado hcesar, de ferro, marca Hermes. No lugar que ela acaba de deixar, sobre a mesa onde José Saramago escreve, está agora um computador (processador de texto). E curioso saber, agora, que Blimunda e Baltasar, antes de conhecerem as páginas impressas do Memorial do Convento, se namoraram primeiro nestas teclas de bater antigo. E que o primeiro olhar, o matinal, de Blimunda, fora antes decidido neste teclado já gasto. Interrompeu-se um ciclo, com esta mudança para o visor com letras verdes do ecrã do computador, abandonando a imagem da página em branco, de papel A/4? «Não creio. A única questão que eu coloco é a de saber se serei capaz de escrever o próximo livro com este novo material...» Soubessem o Padre Gusmão desta novidade, ou Ricardo Reis, assim entregues à escrita de Saramago. A ver o que diriam.
Fotografia de Luís Ramos
"Ao fim de alguns anos, sobretudo de-pois do Memorial do Convento, o seu nome é uma referência fundamental para se falar sobre a literatura portuguesa contemporânea. Como encara, agora, esse facto?
— Sinceramente, não me sinto nada uma figura de proa da literatura portuguesa no estrangeiro. Sinto-me é como alguém que está a fazer os seus livros e que os livros que essa pessoa faz são bem recebidos.
Mas o Memorial do Convento tem registado um êxito muito grande em todo o lado...
— Sim, o Memorial do Convento é o livro que está mais divulgado e traduzido e eu sinto-me contente por isso, evidentemente. É um livro entre outros que, por circunstâncias que têm a ver com algumas características do próprio livro...
...Com o tipo de escrita e com a temática?...
— ...sim, sim, talvez. Com essas características principalmente. Bom, o livro teve êxito. E outro dos factores é extremamente simples: é que, às vezes, a gente entra em boa hora... O que eu acho é que, de um lado estão os livros que eu escrevi e, do outro, o destino desses livros. São coisas distintas que, por um feliz acaso, se conjugaram no bom caminho.
Está surpreendido?
— Sim, mas é muito difícil dizer por que é que me sinto surpreendido. É como se tivesse de olhar para o lado, para ver se esse êxito todo não pertence a outra pessoa. Talvez isso se explique pelo auto-equilíbrio que eu tenho. Evidentemente que somos humanos e que gostamos do êxito, mas não tiro daí a conclusão de que sou uma espécie de representante da literatura portuguesa no estrangeiro ou onde quer que seja...
Olhe, na última Feira de Frankfurt, perguntavam por si no pavilhão português. Numa tarde, um italiano, um americano e um africano, creio que do Benin, entraram pelo pavilhão dentro e queriam falar consigo. Mas você não estava...
— Bom, mas eu recebo muitas cartas, de todo o lado. Não recebo tantas cartas como a Madonna [risos], claro, mas recebo muitas cartas a falar dos meus livros... Há coisas que tocam mais as pessoas, e eu creio que isso tal-vez se deva ao facto de eu contar histórias extremamente simples. Para lá da imaginação, da fantasia, do fantástico, o que está na base de tudo é sempre uma história muito simples onde as pessoas estabelecem uma relação com outras pessoas e onde há um certo ar de surpresa diante das coisas e da vida. Eu sei que aquilo que eu escrevo já foi escrito antes, como tudo o que hoje fazemos, salvo raras excepções, já foi feito há muito tempo, antes de nós. Tudo é assim, na vida. Na literatura também. Mas aquilo que talvez distinga os meus livros é o facto de parecer que eu olho as coisas pela primeira vez e poder, assim, traduzir a surpresa daquilo que é visto pela primeira vez. Veja o caso da Viagem a Portugal... Aquilo que o distingue é justamente a surpresa do novo, a imagem do novo que o autor talvez consiga traduzir naquilo que vai escrever. Quando falo do amor, ou de uma cidade — aquilo que o narrador consegue exprimir passa ao leitor, ou talvez ele sinta que aquilo tem a ver com ele próprio, para além das tais diferenças. O lado bom do livro está no facto de ter a ver com o leitor ou de o leitor ter a ver com o livro.
Esse olhar pela primeira vez é só nos livros ou é seu, na vida?
— É o meu, e tem uma razão de ser biológica. Tenho 66 anos mas, apesar disso, sou favorecido porque tive uma espécie de adolescência prolongada. É como se tivesse vivido em dois planos: um, biológico; outro, não direi propriamente intelectual ou cultural, mas que tem a ver com isso, e que me fez entrar pela vida adulta como se tivesse conservado um ar de adolescente. Isso traduz-se, também, numa certa forma de olhar. Um olhar não habituado. Olho as coisas como se os meus olhos não estivessem habituados.
Faz algum esforço para as coisas acontecerem assim?
— Não. Não é um método nem uma técnica. Tem a ver comigo mesmo, é uma coisa que aconteceu e que continua a acontecer, felizmente. Eu sei que já se viu tudo muitas vezes, na vida, mas a verdade é que as coisas que vejo continuam a surpreender-me. Neste livro, na História do Cerco de Lisboa, faço uma distinção entre olhar, ver e reparar. Eu penso que são três níveis de atenção: olhar, que é a mera função; ver, que é um olhar atento; e reparar, que é já uma atenção a uma dada coisa ou a um dado fenómeno — passamos a reparar naquilo que só tínhamos visto, a ver aquilo que só tínhamos olhado. E isso faz o tal olhar não habituado. Isso passa-se em relação a Lisboa, também. Alguns críticos estrangeiros transformaram-me no escritor de Lisboa. Não penso isso. Penso é que escrevi sobre Lisboa de outra maneira...
Com O Ano da Morte de Ricardo Reis...
— Sim. Foi um livro que me levou a reparar em Lisboa de outra maneira. E a escrita do próprio livro também, porque cada um de nós é a visão que tem.
Por isso é que a Blimunda do Memorial era muitas coisas... Mas, voltando a Lisboa, como é a sua relação com a cidade?
— Em primeiro lugar, não sou um escritor de Lisboa. Talvez o seja de uma certa Lisboa, antiga, de recantos, de almas dispersas. Não conheço nada da vida nocturna de Lisboa, além de um bar onde vou por vezes. Claro que gosto da cidade, mas não sou um fanático nem caio nessas expansões líricas sobre a Lisboa maltratada, ofendida ou magoada. Não tenho essa paixão moderna por Lisboa, embora saiba que é um privilégio viver nesta cidade —não me refiro a coisas práticas (tudo tão depauperado, os transportes, as ruas estragadas, etc.) mas à topografia, ao céu, ao rio...
"Eu sei que aquilo que eu escrevo já foi escrito antes,
como tudo o que hoje fazemos, salvo raras excepções,
já foi feito há muito tempo, antes de nós,
Tudo é assim, na vida, Na literatura também."
De qualquer modo, não é muito visto na cidade, nos lugares públicos...
— Não. Não sou. Mas não é por misantropia, nem para tornar-me interessante («ah, ele nunca aparece, está a escrever, não se dá...»). O que acontece é que gosto das pessoas mas não tenho muitos amigos (não tenho nem deixo de ter pena). Os que tenho são bons. Nem tenho essa necessidade de aturdimento social, de ir de festa em festa, de cocktail em cocktail.
Mas viaja muito...
— Viajo muito para o estrangeiro. Mas, se eu lhe disser que a minha primeira viagem para o estrangeiro (quase tudo me aconteceu tarde...) aconteceu quando eu tinha 47 anos... Claro que, ultimamente, tenho viajado muito.
"Sou favorecido porque tive uma espécie de adolescência prolongada,
Entrei pela vida adulta como se tivesse conservado um ar de adolescente,
Isso traduz-se, também, numa certa forma de olhar.
Olho as coisas como se os meus olhos não estivessem habituados a isso."
O sucesso dos seus livros (e do seu nome) começou há uns anos atrás, sobretudo depois do Memorial do Convento, que marcou o seu trabalho como escritor de forma definitiva. Há uma data determinada?
— Há uma data, que é 1980, com o Levantado do Chão, que é um livro inseparável da Viagem a Portugal. A história desses livros é bastante curiosa e tem a ver com o facto de eu ter ficado desempregado em finais de 1975 (até hoje...). Bom, eu pensei «vamos lá a ver o é que eu vou viver agora; ainda não sei ar sou escritor; mas se tiver de ser é agora ou maca». Ou arranjava um emprego para fazer qualquer coisa, o que não era interessante mas mão me deixava sem dinheiro ao fim do mês, ou arriscava... Escrevi então o Levantado do Chão depois de, em 1976, ter estado no Alentejo. Três anos depois, em 1979, o livro saiu e coincidiu com o convite que o Círculo de Leitores me fez para escrever a Viagem a Portugal. Ninguém sabia o que iria sair dali, nem eu nem o editor. Esse convite possibilitou-me duas coisas: a transformação do meu próprio modo de escrever e, claro, as condições materiais para escrever. Eu, que entre 1975 e essa data tinha vivido de traduções, pude (e não digo isto para ser agradável a ninguém) encontrar uma estabilidade e uma segurança económica que me permitia a tranquilidade necessária para aprofundar o trabalho que tinha começado com o Levantado do Chão. A Maria Alzira Seixo disse um dia, e com toda a razão, que a Viagem a Portugal e a Bagagem do Viajante são dois livros de passagem, que fazem a viragem para os que vêm a seguir. Qualquer olhar mais atento, qualquer crítico, não devia ignorar o papel desempenhado quer pela Viagem quer pelo livro de crónicas, A Bagagem do Viajante. Claro que se pode entender o meu trabalho actual sem ler as crónicas, mas eu penso que esse livro é fundamental.
Depois, vem o Memorial do Convento...
— O Levantado do Chão é a rampa de lançamento e o Memorial é o míssil... E um livro que não pára de surpreender-me, dizem-me coisas bem agradáveis de ouvir.
É esse o livro de que mais gosta?
— O livro de que mais gosto é a História do Cerco de Lisboa [risos]. Para convencer os leitores risos]...
Dos já publicados...
— O livro de que mais gosto, aquele que estai mais dentro de mim, é O Ano da Morte de Ricardo Reis. Gosto do Memorial do Convento, que mexe muito com as pessoas, mas O Ano da Morte de Ricardo Reis talvez seja aquele que ainda hoje me emociona mais, talvez por falar de uma época que nós vivemos há pouco tempo. E que eu apanhei a parte inicial desse tempo. Em 1936 eu tinha 14 anos...
Quando o livro saiu, em 1984, um crítico acentuou, especialmente, o facto de se tratar de uma imagem de fim de século.
— Bom, mas o século XIX entrou, em Portugal, pelo século XX dentro, até à década de cinquenta. É uma imagem de fim de século no que se refere a um mundo que está a acabar, a uma espécie de letargia, de povo que acaba, de uma vida real que está em contradição com o folclore fascista. Porque a vida era outra e não tinha nada a ver com os foguetes do Estado Novo: era mais triste, difícil, sem sentido...
Como é que se deu esse encontro com Fernando Pessoa?
— Era um encontro que tinha de se dar. É natural que nós nos encontrássemos um dia, mas o que é interessante foram as circunstâncias em que esse encontro se deu. Eu estava a acabar o meu curso de serralheiro-mecânico na Escola Industrial de Afonso Domingues e, aí, havia uma biblioteca que, não funcionando muito bem, à semelhança de todas as bibliotecas portuguesas, possuía coisas tão bizarras como a revista Athena (veja-me com dezassete anos, em 1939...). Folheio ao acaso e dou com aquelas odes de um senhor chamado Ricardo Reis. Que era Ricardo Reis e não outro qualquer. Qual Fernando Pessoa! Nessa altura, em que eu já gostava de ler e começava a comprar livros, fiquei deslumbrado com as odes e lembro-me de ter feito de uma delas uma espécie de divisa, que é aquela onde se lê «para ser grande, sê inteiro...» [Para ser grande, sê inteiro: nada/Teu exagera ou exclui./ /Sê todo em cada coisa. Põe quanto és/ /No mínimo que fazes./Assim em cada lago a Lua toda/Brilha, porque alta vive.]. Depois, mais tarde, soube que Ricardo Reis era Fernando Pessoa.
"O livro de que mais gosto,
aquele que está mais dentro de mim,
é O Ano da Morte de Ricardo Reis.
É aquele que me emociona mais."
Ficou desiludido?
— Não. A contradição fascinava-me, e compreendia-a. Nesta mesma ode, aliás, a contradição está presente.
É Ricardo Reis o heterónimo de que mais gosta?
— Gosto muito de Ricardo Reis, por razões históricas. Pessoais, claro, que têm a ver com esta minha relação com a sua poesia. De resto, divido-me muito entre o Caeiro e o Campos. Mas aquele de que menos gosto é o próprio Fernando Pessoa...
Depois de O Ano da Morte de Ricardo Reis aparece a surpresa do título A Jangada de Pedra.
— Sim, a seguir é A Jangada de Pedra...
Que não se chamava assim...
— Pois não. O Memorial do Convento estava para se chamar só O Convento, mas nessa altura a Agustina Bessa-Luís publicou O Mosteiro. Foi por isso que se chamou Memorial do Convento... A Jangada de Pedra foi o livro mais difícil quanto ao título. Ainda pensei em O Mar Aberto, ou A Grande Pedra do Mar, ou só A Jangada. Mas havia um título assim do Romeu Correia. Portanto, retomei A Jangada e... pus-lhe a Pedra.
Foi então que se falou em iberismo...
— O iberismo entrou muito no vocabulário político entretanto. Mas a ideia do livro era a de soltar toda a península do resto da Europa. Um todo? Talvez, mas isso não tem nada a ver com a questão iberista entre nós. Um crítico espanhol, aliás, viu a história muito melhor, e escreveu uma coisa muito inteligente ao dizer que mais do que ler esse fenómeno de separação da península como separação em relação ao continente, deve entender-se como deslocação para o sul, arrastando a Europa para o sul... Mas, nisso, o problema é o da unidade política de Espanha, como se sabe. Se não houvesse uma unidade política tão vincada, seria possível estabelecer melhores relações, de tipo multilateral, entre Portugal e as várias zonas de Espanha... Aqui vivemos muito no medo de a Espanha nos devorar...
Porquê?
— Nós, portugueses, não sabemos por que pensamos coisas que achamos que pensamos...
Sente-se fascinado pela Espanha?
— Não propriamente fascinado. Mais no sentido da surpresa e do maravilhamento... A minha mulher é espanhola, tenho muitos amigos espanhóis, por aí fora. Mas, de resto, o que é fascinante é a Espanha, não a minha relação com a Espanha...
"Esta crise no PCP traduz o conflito entre opiniões diferentes.
Entre o que foi, o que é e o que será.
E sobre isso, há duas saídas para o problema,
Uma, que é estagnar, girar volta de si próprio,
Outra, que é avançar em circunstâncias e exigências novas,
colocadas pelos tempos e pela capacidade de entender os novos tempos."
O que é fascinante em Espanha?
— Sobretudo a diversidade, os mundos que cabem naquele país. Estão hoje, em virtude dessa diversidade, perfeitamente justificadas as autonomias, com aquela enorme diferença de caracteres. E isto não é um lugar-comum: as pessoas são realmente diferentes, um andaluz é completamente diferente de um galego, um galego de um catalão, um castelhano de outro qualquer... Viajar em Espanha é surpreendente porque se está, permanentemente, a passar de um mundo a outro e isso sim é fascinante...
Bom, agora é a História do Cerco de Lisboa... Creio que se trata de um dos cercos de Lisboa mas, também, de outro cerco, provavelmente...
Talvez sim... Ou seja, é e não é, porque, de facto, há um cerco de Lisboa, histórico, no passado, embora isto não seja razão para se falar de romance histórico. O Memorial não é um romance histórico, e História do Cerco de Lisboa é ainda menos histórico que o Memorial. Tem é uma história que se passa em dois planos temporais: o dia de hoje e o tempo desse cerco...
Qual?
— Vem no livro... É um dos dois cercos de Lisboa...
Ao longo dos seus livros construiu dezenas de personagens, mas nota-se sempre uma ternura maior pelos personagens femininos. Está de acordo?
— Sim, sim. No caso dos meus romances, os personagens femininos são aqueles que eu mais quero, que eu prefiro. Os homens, nesses romances, são sempre, ou quase sempre, não diria pobres diabos, mas gente menor... No Levantado do Chão os homens têm ainda força (talvez devido a uma espécie curiosa de machismo alentejano que vai desaparecendo em favor de uma força crescente das mulheres, de geração para geração). No Memorial do Convento, repare, à frente da Blimunda, não há Baltasar que se aguente [risos]... O Ricardo Reis, ao pé da Lídia é, apenas, um pobre heterónimo [risos]...
E no caso da História do Cerco de Lisboa?
— Aí, a força está nas mulheres... Claramente nas mulheres. Isto não é uma atitude feminista — deve-se ao facto de eu crer que elas são realmente fortes, que têm muito para dar. E porque eu gosto muito delas... Acho que, para não cair na frase (coitadas das frases...) do Aragon, aquela famosa da femme est l'avenir de Thomme» — que é uma coisa mais vazia do que à primeira vista se possa pensar ou dizer —, eu penso que elas têm mais autenticidade e mais generosidade que nós. Valem mais que nós, homens. Na verdade, daquilo que é substancial e essencial na vida, aprendi pouco com homens e aprendi muito com as mulheres. Não por idealizações. É o ser humano inteiro, aquilo que elas são... Bom, algumas, eu sei, não são nada disto...
"Na verdade, daquilo que é substancial e essencial na vida,
aprendi pouco com os homens e muito com as mulheres.
É o ser humano inteiro, o que elas são..."
O que se passou, em si, entre o Levantado do Chão e História do Cerco de Lisboa?
— Passou-se tudo de forma bastante simples, normal, tranquila. Fica-se contente pela atenção que as pessoas deram ao que escrevi, pela atenção que deram ao escritor. Se tudo isso me tivesse chegado mais cedo, poderia acontecer que eu me tivesse imbuído de um sentimento de.importância até chegar àquele lado lamentável da vida em que já se tem o título de mestre [risos]... Como tudo isto me aconteceu tarde, na altura em que já se sabe estar tranquilo, então não olho para estes anos de escritor com olhar céptico. Disfruto aquilo que vivo. Gosto de que as pessoas não separem em mim o homem do escritor. Vivo isto tudo muito discretamente, não me sinto a tal figura de proa. Mas também tenho consciência de que o meu trabalho literário já significa alguma coisa. Mas não sei o quê...
Não está a ser modesto demais?
— Não. Não, nada disso... Repare. Lembra-se do Carlos Manuel a marcar aquele golo no jogo de Estugarda, contra a Alemanha, que nos deu a passagem para a fase final do campeonato do mundo de futebol? Veja se hoje ainda alguém se lembra. O escritor é um pouco isso, em termos de prestígio, nos dias de hoje. Escritor é jogador de futebol. Olhe o caso da Rosa Mota. Depois de ela ter ganho uma série de provas decisivas, houve um dia em que desistiu, e um jornal escreveu na primeira página Rosa Mota: derrocada em tal sítio... Mas esse jornal tinha embandeirado em arco algum tempo antes... Bastou que a atleta tivesse sido forçada a desistir para que a situação mudasse radicalmente de um dia para o outro... Com o escritor é quase a mesma coisa. Como um jogador de futebol. Amanhã há um deslize e pronto...
Mas há outra dimensão no trabalho literário...
— Esta coisa de ter prestígio hoje em dia é muito complicada porque... quem me garante que esse período não vai ser curto?
Mas, não acredita no seu trabalho?
— Acredito no meu trabalho da mesma forma que outras pessoas acreditam no seu trabalho, mas não se pode estar convencido de que o trabalho literário, hoje em dia, e infeliz-mente, é olhado pelas pessoas de uma forma transcendente, metafísica... Você veja: o que se escreve hoje sobre o Rodrigues Miguéis? Nada. Sobre o José Gomes Ferreira? Nada. Não acho que devamos estar sempre a gabar, a contribuir para o deleite das nossas letras, mas o facto é que em Portugal esquecemo-nos muito. Não só dos escritores. De quase tudo o que fomos amando. O Raul Brandão — de quem somos devedores, porque ele era muito grande — morreu e, algumas semanas depois, o Castelo Branco Chaves publica na Seara Nova um artigo, demolindo-o. Parece-me mal. É um pouco o que aconteceu agora com um artigo publicado no Expresso sobre o Fernando Namora... Eu acho que se deve contestar, claro, e a rebeldia literária só tem dado bons frutos. Mas também penso que esta malta nova devia começar por estudar mais um pouco as coisas que vão passando. Senão, passa-se de moda em moda...
Tem-se dito que o Prémio APE está permanentemente contra si...
— Isso diverte-me muito, porque já são três livros meus publicados desde o prémio APE e a situação é essa, de as pessoas me considerarem o eterno candidato. Mas candidato é aquele que se candidata, e eu não me candidatei. Os livros estão aí, e o júri é que pode entender escolhê-los ou não... Mas há coisa divertidas nisso do prémio APE, não nego. Uma delas foi a declaração de voto de um membro do júri do prémio que dizia que A Jangada de Pedra era um ensaio... Outra foi uma outra declaração em que se dizia que eu já escrevo para o mundo... Portanto, como você vê, nada de prémios nacionais. Havia ainda uma pessoa muito respeitável que escreveu que «por circunstâncias infelizes» o prémio ainda não me tinha sido atribuído... Ora a única circunstância infeliz era, para mim ter havido livros melhores que o meu. A não ser que haja outras circunstâncias que eu desconheço... Mas isso não tem importância nenhuma. As pessoas até acham divertido que, depois de o Memorial do Convento não ter sido premiado, os outros livros continuem a merecer a mesma atenção...
Mas, sente que há outras razões? Que há uma perseguição...
Não! Que ideia absurda! O júri gosta mais de outros livros. É só isso...
Você é o autor comunista que as pessoas de direita também lêem...
— Se eu quisesse auto-lisonjear-me, diria que isso é uma prova do bom-gosto das pessoas... O Eduardo Prado Coelho dizia, com muita graça, e a propósito, que com o Memorial do Convento eu tinha alargado a minha base social de apoio... Mas lembro-me de uma conhecida jornalista da nossa terra (jornalista, não... colaboradora da imprensa...) se ter recusado a ler o Levantado do Chão porque o autor era comunista. Acho que tudo isso se pode resumir em duas frases, separadamente: «ele é comunista mas é bom» e «ele é bom mas é comunista»...
Mas, o facto de ser comunista tem tido influência na recepção dos seus livros?
— Não sei se tem. As pessoas não me lêem mais pelo facto de eu ser comunista... Apesar da nossa vida democrática (coitadinha...), esteve aqui ontem um jornalista do Corriere della Sera durante uma hora e tal, e confessou-me que várias pessoas a quem ele disse que tinha um encontro marcado comigo o informaram, espantados, dizendo «mas olhe que ele é comunista.» O jornalista dizia-me, claro, que em Itália é muito diferente... Claro que é. Lembro-me, já agora, de que foi espalhado por certos espíritos maledicentes que o êxito do Levantado do Chão se deve ao facto de o romance ter o Alentejo por cenário — e de os militantes do meu partido terem recebido ordem para comprar o livro... Sob outro ponto de vista, claro que todo o trabalho literário também é um trabalho político e não poderá deixar de o ser a menos que o autor seja inerte e mentalmente incapaz. Quanto a isto não há dúvidas por parte do leitor. Ninguém poderá é dizer que utilizo a literatura para fazer política...
Ultimamente, o seu partido, o Partido Comunista Português, tem atravessado uma crise política. Preocupa-o, a situação no PCP?
— Claro que me preocupa a situação no partido. E preocupa-me no sentido em que eu me preocupo com a vida do meu partido. Estes últimos acontecimentos têm um significado bastante especial e traduzem algumas divergências, conflitos de opinião sobre o que deve ser o partido e a sua política. Repare, também, que eu disse que me preocupava e não que me inquietava. Nada de estar com inquietações muito profundas, nada disso. O meu partido está a viver uma crise — e esta é uma ocasião para usar a palavra crise porque em relação às crises diz-se que «esta é uma crise mas vamos vencê-la» — esta, claro, será resolvida. O partido não vai deixar de ser o que é. Além do mais, desde que temos em Portugal uma vida democrática, todos os par-tidos já tiveram as suas crises, mais ou menos dramáticas, mais ou menos significativas...
Esta crise, que o PCP atravessa, traduz a oposição entre o novo e o velho no interior do partido?
— Traduz o conflito entre opiniões diferentes. Entre o que foi, o que é e o que vai ser. E, sobre isso, há duas saídas para o problema. Uma, que é estagnar, girar à volta de si próprio, perecer. Outra, que é avançar, em circunstâncias e exigências novas, colocadas pelos tempos e pela capacidade de entender os novos tempos, sem renunciar àquilo em que se acredita. Fundamentalmente, um corpo que não se transforma é um corpo que não cresce e que não se desenvolve. A história está cheia desses exemplos, de relações de conflito entre a autoridade e a liberdade com vista a ponderar a necessidade de transformação. Às vezes a autoridade entende, outras não entende. O que se verifica no interior do PCP é o que se verifica em toda a parte. Aconteceu, agora, no interior do PCP, e ainda bem.
Acabou este livro, História do Cerco de Lisboa. Sente-se feliz com o seu trabalho até agora? Com a sua vida?
— Eu poderia ser felicíssimo como homem e ter uma pouca sorte danada como escritor. No meu caso, sinto-me em paz com o meu trabalho, sei o que quero fazer e julgo que faço aquilo que quero. Uma obra que se pensa fazer é sempre um destino que se inicia. Mas os livros não me têm decepcionado. Nem este, porque tenho uma boa relação com aquilo que escrevo.
E consigo próprio?
— Como homem posso dizer de mim mesmo que sou um homem feliz...