"A propósito da publicação de História do Cerco de Lisboa, último livro de José Saramago, publicamos um diálogo entre Manuel Gusmão e o escritor."
"Enquanto não alcançares a verdade, não poderás corrigi-la.
Porém, se a não corrigires, não a alcançarás.
Entretanto, não te resignes."
Do Livro dos Conselhos
O não e o sim. A insatisfação com a história. O diálogo.
«Mas esta batalha, desgraçadamente, vai ganhá-la Mr. Hyde, percebe-se pela maneira como Raimundo Silva está a sorrir neste momento, com uma expressão que não esperaríamos dele, de pura malignidade, desapareceram-lhe do rosto todos os traços do Dr. Jekill, é evidente que acabou de tomar uma decisão, e que má ela foi, com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente, o que chamamos falso prevaleceu sobre o que chamamos verdadeiro, tomou o seu lugar, alguém teria de vir contar a história nova, e como.»
(Pp. 49-50)
MG — A acção do teu romance parece começar a desencadear-se com a aposição voluntária de uma gralha num texto de um livro de história.
JS — Não diria exactamente gralha porque a gralha é involuntária. E a intromissão violenta de um não que, enfim, não devia estar lá.
MG — Sim. Esse não parece aliás relacionar-se com o próprio fragmento que tu colocas em epígrafe «enquanto não alcançares a verdade, não poderás corrigi-la. Porém, se a não corrigires, não a alcançarás. Entretanto, não te resignes».
JS — Isso é de um livro dos conselhos que não existe.
MG — Isso também é importante esclarecer. O não de que estamos a falar, na lógica da ficção, tem a função de fazer uma correcção à história, de emendar uma história que já está escrita, aceite, etc. Ora é a partir desse não, que é no fundo um acto de liberdade do revisor, que ele vai ficar exposto a uma série de desenvolvimentos e de novos condicionamentos da sua vida, através dos quais se vai cumprir, de certa forma, um processo de libertação sua.
JS — Nota que esse não é por assim dizer um remate. Eu quando digo rema-te não quero dizer que seja final, mas é um ponto agudo, digamos assim, de um não que tem estado já presente na minha obra, que é motor de toda a minha ficção. Toda ela passa pelo não. Não, na Jangada de Pedra, não, no Ricardo Reis, no Memorial do Convento, em praticamente todos os meus últimos romances. Só que aqui é um não explícito, enquanto, em todos os outros, é um não implícito. Aqui é realmente explícito e responde de facto a esta minha preocupação de que a história de certo modo está por fazer. Muitas vezes fala-se do fim da história, eu diria antes que a história verdadeiramente ainda não começou. Claro que isto é um ponto de vista de ficcionista, não esqueço todo o trabalho dos historiadores de hoje, cuja pesquisa, cuja investigação de alguma maneira se orienta nesse sentido, quero dizer, que de certo modo procura refazer a história. No campo restrito, específico, da ficção, digamos que é essa também pelo menos a minha preocupação, e, nomeadamente neste caso, em que a história, digamos assim, é posta em revés, vira os pés pela cabeça. Para o meu próximo livro já tenho algumas ideias que vão desenvolver isto; mas a História do Cerco de Lisboa, creio eu, pode ficar como a demonstração do que pretendiam todos os meus livros anteriores.
MG — A questão da relação da ficção com a História que tu acabaste de pôr é uma velha questão, desde Aristóteles; mas para já queria agarrar nessa ideia de que neste livro estás de certo modo a fazer ostensivamente algo que já era nítido nos teus outros romances. Se tomarmos à letra este «não» como uma reescrita da própria história do cerco de Lisboa e, portanto, como uma reescrita da História que já está feita, podemos ver que de certo modo todos os outros romances teus contêm algo disto, mesmo quando são escritas de tipo diferente. Pode dizer-se, por exemplo, que isso se passa já no Manual de Pintura e Caligrafia através do segundo retrato e nas notas autobiográficas que se vão escrevendo. Em relação ao Levantado do Chão, penso que se trata, no fundo, de reescrever a história precisamente não feita, a não ser marginal e dominadamente, de uma região e de uma comunidade ao mesmo tempo histórica e mítica. No caso do Memorial do Convento, há de novo essa dimensão de reescrever uma história que não fala daqueles que construíram Mafra e ao mesmo tempo de emenda da História, porque a Passarola desta vez vai voar.
JS — Exacto.
MG — No caso do Ano de Morte de Ricardo Reis trata-se de preencher uma lacuna do próprio texto pessoano acerca do destino do Ricardo Reis.
JS — Claro.
MG — E nesse sentido também de reescrever. Na Jangada de Pedra trata-se, finalmente, reescrever o próprio presente e é isso que há de curioso.
JS — Exacto. O Cerco de Lisboa é, conforme tínhamos dito já, a explicitação do que antes podia estar mais ou menos explícito ou mais ou menos implícito na minha obra. Neste caso, agora, diante do Cerco de Lisboa já não pode haver dúvidas de que a minha intenção anterior mesmo que tivesse sido completamente malograda já era essa. E, repara, a verdade é que o meu sentimento habitual em relação à História é sobretudo o da insatisfação. Digamos que não me satisfaz aquilo que me dizem; informa-me, esclarece-me, evidentemente, porque é justamente para isso que a História se faz, que a História se escreve, mas a verdade é que me deixa sempre com esta sensação de falta, de ausência — falta aqui qualquer coisa — e digamos que com este romance e com o meu trabalho de ficção, é certamente por vezes como se eu quisesse emendar, mas também às vezes e, talvez mais do que isso, é como se eu quisesse acrescentar, como se quisesse dizer: «atenção!, o que disseram está bem, mas falta qualquer coisa, que eu venho dizer». Enfim, é uma pretensão evidentemente um pouco exagerada más é essa a minha posição em relação à matéria histórica, à matéria ficta, digamos assim, e é por aí que eu tento juntar as duas, dar-lhes um nó, de forma a que não se separe uma coisa da outra. De resto, quando da conversa inicial entre o revisor e o autor, o revisor chega ao ponto de dizer que a própria história é literatura, digamos que no fundo é isso mesmo, está a tentar ser isso mesmo.
MG — Uma das coisas que move, penso eu, a tua relação entre ficção e historicidade é precisamente essa noção de que toda a encenação de um determinado passado é repassada de presente, de um eu, aqui, agora, que assinala quem está a escrever um livro e é, ao mesmo tempo, uma maneira de auscultar ou de inscrever um desejo de futuro.
JS — Sim, não há dúvida e, repara, ... eu vou nestes dias a Málaga fazer uma conferência, num ciclo de conferências que lá se vai dar sobre o tema «escrever na Europa» — enfim, está na moda a Europa e até isto agora de escrever na Europa — e é interessante que entre as pessoas que vão estar lá está o Vladimir Kosintzev, o célebre autor de Nem Só de Pão Vive o Homem. Ora, a minha posição é esta — e vai ser provavelmente uma declaração um pouco de desmancha-prazeres —, o que eu vou dizer é «não, eu não escrevo na Europa, eu escrevo em Portugal, sobretudo por causa de Portugal». Isto liga-se exactamente a toda a minha preocupação com o nosso passado, com a nossa história, com a cultura que está lá e vem de lá, e que não tem que ver ou julgo eu que não tem, embora isto possa ser também uma espécie de máscara que eu me ponho a mim mesmo, não tem que ver com saudosismos ou com revivalismos, tem que ver de facto com uma conformação minha, do meu próprio espírito. A verdade é que, digamos, eu tenho com o tempo uma relação que penso que é rara, porque quando penso no ano de 1147 e quando eu estou aqui em Lisboa e de vários pontos da cidade olho e vejo o Castelo, e vejo aquilo que foi a Lisboa de então, posso imaginá-la; há pelo menos uma coisa que eu sei, que ela esteve ali, ali naquele mesmo sítio. Então é como se o tempo em mim desse uma volta e eu já não fosse capaz de distinguir, é claro que sou capaz de distinguir racionalmente, mas, quer dizer, há uma sensação minha, particular, em que eu de repente posso interrogar-me — estou hoje em 1989 ou estou em 1147 desta colina de Lisboa olhando aquilo? Isso aliás sucedeu-me com O Ano da Morte de Ricardo Reis, em que de facto aquela pequena Lisboa em que tudo aquilo se passa foi qualquer coisa que eu senti intemporalmente. Há um episódio típico disto e que dá de facto uma expressão total a isto que eu tenho estado a tentar dizer: foi por ocasião do Memorial do Convento; eu ia de carro ali no Cais das Colunas, vindo do lado do Cais do Sodré para o lado de Santa Apolónia e quando passo mesmo defronte da Praça do Comércio, do Terreiro do Paço, olho para a esquerda e durante se calhar um décimo de segundo, ou centésimo de segundo, aquilo que eu vi, aquilo que eu julguei ver não foi de facto o Terreiro do Paço como ele é hoje mas foi um Terreiro do Paço que eu tinha construído dentro da minha cabeça através das pinturas e gravuras da época e, por um momento, um relâmpago, eu projectei sobre a realidade uma imagem mental que não durou mais que eu sei lá, eu chego a perguntar-me se existiu. Agora que eu tenho a impressão de que isso aconteceu, isso tenho. Há de facto essa minha relação com o tempo que me permite, e eu diria sem dificuldade, passar ao romance toda esta complexa relação com o tempo. Isto para mim não é uma operação racional, é qualquer coisa que me sai espontaneamente. Portanto não tem um mérito, enfim, um mérito intelectual superior, porque é como se eu em relação ao tempo não tivesse outra maneira de funcionar senão esta; portanto, tendo só esta, é esta.
MG — Isso é muito curioso porque eu diria que, neste romance de uma forma muito nítida e muito concentrada, até porque se manifesta de uma forma talvez mais violenta do que noutros romances teus, existe essa possibilidade de confluência de dois tempos muito afastados; manifestase o que se poderia chamar uma temporalização do espaço, que é uma tendência por vezes muito dominada por uma outra, a da espacialização do tempo. Quase se poderia dizer que muita ficção contemporânea e mesmo certas formas de pensamento nas ciências sociais e na própria teoria da linguagem são marcadas, pelo menos na primeira metade do século, por uma tendência dominante para espacializar o tempo. No teu caso há uma clara temporalização do espaço; é isso que se lê quando vemos os cristãos a avançarem por Lisboa, a atravessarem, como tu dizes, a Praça dos Restauradores e a começarem a invadir ruas com os nomes actuais; ou quando a personagem do século xx olha para a Lisboa sua contemporânea, que inclusivamente tem as Amoreiras, e vê, numa espécie de alucinação, as personagens do cerco de Lisboa.
JS — Pois, é isso. E esse conceito da temporalização do espaço julgo que o exprime bem.
MG — Aliás, quando a narração fala do passado, nos teus romances, há sempre marcas de que essa narração é uma narração contemporânea, ou pelas suas alusões a uma conjuntura dos nossos dias, ou por certos traços lexicais, sintácticos, discursivos; há sempre essa inscrição do presente que de alguma forma marca o modo como se reencena o passado. Agora, neste romance, para além disso, há uma certa convulsão dos tempos que tem também a ver, penso eu, com o mecanismo do duplo, de que a Maria Alzira Seixo fala em relação à tua ficção. Mas eu queria ainda voltar à reescrita e à imposição do «não» por uma outra razão. É que este não uma das consequências que vai ter é a de fazer com que o revisor se torne um escritor e de certo modo este romance é também, entre outras coisas, um romance sobre a passagem à escrita.
JS — Como aliás o tinha sido já o Manual. Exactamente.
MG — É muito curioso que o revisor é uma espécie de leitor, um leitor com funções especializadas,' mas nota-se ao longo de todo o livro que é um leitor que não só já leu os livros que foi revendo como leu muito mais coisas, portanto é um leitor que tem um universo de leituras muito grande e é na emenda de um determinado escrito que ele se vai ver obrigado por várias contingências a passar a escritor. Mas penso que é ainda muito curioso que, embora na sequência narrativa, ele só passe a escritor um pouco também em resposta ao encontro amoroso ou por determinação do encontro amoroso, no desafio que lhe é posto pela Maria Sara; de certo modo haja já um texto inicial, quando ele ainda está a rever e ainda não pôs o não, haja um texto inicial no romance, que não é o texto do historiador, e que evidentemente pode ser um texto do narrador, mas pode sempre ficar insinuado que é um texto produzido pelo revisor, mentalmente.
JS — Sim, sim, claro, e tu de resto nota, enquanto por um lado se insinua que esse texto foi produzido mentalmente pelo revisor, mais adiante fica muito claro que nada daquilo que se lê neste livro foi escrito pelo revisor. Quer dizer, o texto do revisor mantém-se ignorado até ao fim. Há uma versão à qual também se pode chamar «história do cerco de Lisboa», que é a versão que alguém faz, vamos supor que é o narrador sobre um texto de que o leitor não chega a ter conhecimento; então, essa indecisão acerca de quem é o autor pode ser também entendida de acordo com a posição em relação à qual eu estou em relação à história, com uma dificuldade de saber quem disse, ou quem escreveu, e porquê e para quê, e que aqui, neste livro, suponho eu, se vem a reflectir depois na desmontagem de todos os milagres, fazendo-se uma interligação entre um texto que a Maria Sara está a ler e o texto, o suposto texto que o Raimundo, digamos, vai escrevendo. E com isso que é interessante, julgo eu, é claro, que em alguns pontos estes textos que são paralelos correspondem-se um ao outro e contradizem-se algumas vezes e anulam-se mutuamente.
MG — Tem esse efeito, mas penso que tem um outro efeito, que é o de insinuar a hipótese, que é uma evidência num certo sentido de que o texto, dessas páginas em que isso acontece, e que são aliás claramente marcadas, é escrito a dois...
JS — Sim, no fundo é.
MG — Como se essas páginas fossem escritas a dois.
JS — Como se fossem escritas a dois porque..., enfim, a verdade é que são mesmo escritas a dois, está lá o narrador que vai recebendo de um e outro as suas contribuições, digamos assim, e introdu-las organizadas no texto, naquilo que é um texto final.
MG — E que de certo modo é um momento também da exibição de qualquer coisa que é muito característica na tua obra de ficção: o carácter polifónico do narrador.
JS — Exacto.
MG — O narrador é um lugar de encontro de vozes, mais do que uma personagem linear e com uma identidade muito definida.
JS — E eu suponho que, também neste caso, esse carácter do narrador, que já era claro antes, suponho, também no caso da História do Cerco de Lisboa atingiu de facto uma expressão mais aberta, porque a verdade é que este título História do Cerco de Lisboa aplica-se a três ou quatro ou cinco textos completamente diferentes, que existem, que coexistem dentro do texto final e que coexistem de uma maneira que me parece que levanta por vezes algumas dificuldades sobre a delimitação desses mesmos textos — quando é um e quando é outro? —, e isso só se poderia conseguir, julgo eu, justamente pelo carácter polifónico que o narrador assume na minha ficção, porque realmente eu não me vejo a usar um narrador que seja ele próprio unilinear e que conte e que narre unilinearmente aquilo que, digamos, tem a dizer.
MG — Este «não» polivalente, que emenda um texto, que desencadeia a necessidade de contar uma história, que vai propiciar inclusivamente, de alguma forma, o encontro amoroso, faz um pouco a passagem do leitor ao escritor como se quisesse dizer que todo o escritor é uma espécie de leitor que, gostando muito de ler, não está satisfeito com o que tem para ler, tem ele próprio que escrever alguma coisa.
JS — E nota como isso se liga àquilo que eu há pouco te disse sobre a insatisfação.
MG — Exacto. Este não, que é uma espécie de motor fundamental no que tem de crítico e no que tem de insatisfação, no que tem de activo e negativo, é entretanto um não que trabalha um sim, ou que desencadeia um sim. Num dos teus famosos diálogos diz-se:
«Abençoados os que dizem não, porque deles deveria ser o reino da terra,
Deveria, disseste, o condicional foi deliberado,
o reino da terra é dos que têm o talento de pôr o não ao serviço do sim.» (P. 330)
O que eu penso que é fabuloso.
JS — Não sei se é fabuloso, mas é uma lição da experiência.
MG — E no fundo é um epítome da dialéctica; da dialéctica entendida como diálogo e enquanto movimento da contradição. No caso da tua obra o diálogo é múltiplo, quer dizer, a estrutura dialogante ou o dialogismo permeia todos os planos em que é costume analisar uma narrativa: é o narrador que dialoga, é a narração que dialoga com o narrado, é um texto que dialoga com muitas outras escritas e muitos outros textos da Literatura Portuguesa nomeadamente, é o diálogo entre as personagens e a forma como isso é feito e que é muito característica — o modo como uma frase complexa, se entendermos que é o que corre entre dois pontos de finais, é dita por várias personagens e às vezes por três personagens, digamos a personagem do narrador e duas outras personagens.
JS — Mas tu repara numa coisa, que pode afinal de contas exprimir uma certa inabilidade minha, que é a frequência com que os meus diálogos, os diálogos que eu meto nas minhas ficções, são de facto diálogos. Reflectindo sobre aquilo que faço cheguei a esta conclusão: eu tenho provavelmente alguma dificuldade, ou pode não ser exactamente uma dificuldade, pode ser apenas uma inapetência para um diálogo a três ou a quatro, quer dizer, os meus diálogos são diálogos entre duas pessoas; normalmente, se há um terceiro ou um quarto limitam-se a ser meros contrapontos encarregados de dizer aqui ou além qualquer coisa que não é substancial, porque tudo se passa, mesmo que haja mais do que duas pessoas, tudo se passa sempre entre duas pessoas, e a regra é que são diálogos de facto entre um e outro; em todas as circunstâncias.
MG — Sim, mas o modo como tu escreves, sem exibir com travessão ou de outra forma qualquer a separação das falas, mostra no fundo que toda a fala, mesmo a fala individual ou a fala de um só, já é diálogo.
JS — Sim, sim, pois.
MG — O monólogo nunca é absoluto...
JS — Isso não é. A verdade é que há dois tipos de diálogo, há um diálogo que eu chamaria elementar de pergunta-resposta, ou não pergunta-resposta, mas limitado à sucessão de falas de cada um, que começa após um ponto final e se remata com outro ponto final; e há outro tipo de diálogos que, sendo eventualmente também apenas de duas pessoas, permitem a introdução, na ligação entre cada uma das duas falas, de reflexões que são do narrador ou que são às vezes a expressão do pensamento não enunciado; mas de qualquer forma digamos que aquilo que me move é sempre a dialéctica do «sim» e do «não», que seriam, enfim, aquilo em que se poderia resumir todo um diálogo, um debate entre um sim e um não, que requer apenas duas pessoas, fundamentalmente requer apenas duas pessoas.
MG — Nós falámos na temporalização do espaço mas há também evidentemente no romance um gozo pela topografia, pelo espaço e mesmo pela toponímia, pelos trajectos.
JS — Sim. Que aliás está patente em todos os meus livros.
MG — Não só nas referências àquela pequena zona da cidade moura, mas, por exemplo, no curiosíssimo jogo da preferência e contra-preferência em relação aos dois lados da Avenida da Liberdade...
JS — Isso no fundo são mecanismos a que nós todos estamos mais ou menos sujeitos na nossa inserção num certo espaço. Por que é que realmente todos nós, julgo eu, numa determinada rua gostamos mais de um lado do que do outro? Por que é que isso acontece? Não discutimos isso, mas seguimos numa espécie de tropismo, enfim, um determinado caminho, e quando outro está mesmo ao lado não queremos um e queremos outro. Eu, que sofro isso como qualquer um de nós, exprimo-o, integrado nessa mesma preocupação minha com o espaço, com o lugar, com o caminho, essa quase obsessiva referência à R. tal, à rua tal, como no caso do Ricardo Reis, em que dentro de Lisboa há uma outra Lisboa mais pequena, no fundo, como num jogo de caixas chinesas em que passa de uma para outra. No fundo, tal como acontece isso no caso do Ricardo Reis, em que da cidade eu não tenho mais do que aquele pequeno circuito que o Ricardo Reis faz, assim, neste caso do Cerco, da mesma cidade aquilo que eu recolho é também uma cidade mais pequena, a cidade moura e tendo o cuidado de delimitá-la. Quer dizer, o meu pequeno universo é este. A que se junta, por outro lado, a obsessão do que já não existe, que está representado por exemplo pelas referências constantes ao esteiro.
O cerco, os cercos. Sitiantes e sitiados.
MG — Tu já disseste que n'A História do Cerco de Lisboa há várias narrativas, várias partes do romance, que podem receber esse título. Pergunto-te duas coisas: uma, porquê este cerco e não o outro? E depois, uma outra: para além dos vários textos que directamente, literalmente, se pode dizer que se referem ao cerco de Lisboa e que se cruzam no romance, há também, penso eu, indiciada em certos momentos, a ideia de que a história amorosa tem a ver com uma espécie de sitiação, é um encontro amoroso que se dá no Cerco. No fundo, ambos estarão cercados antes do encontro e o encontro é uma forma de se dessitiarem. Isso podia ver-se talvez mais claramente em relação ao Raimundo Silva...
JS — Mais em relação a ele, mais em relação ao Raimundo Silva, cuja história anterior é de alguma maneira contada ou insinuada; a verdade é que da Maria Sara nós não sabemos nada senão o pouco que ela num dado momento diz, mas eu acho que não podemos esquecer que há outro encontro amoroso.
MG — Sim, já lá iremos...
JS — Para pegar na pergunta que começaste por fazer: «porquê este cerco e não o outro?», eu vou dizer-te que a história deste livro é uma história complicada. Eu nem diria que começou por essa ideia, porque há qualquer coisa anterior, muito mais vaga; a verdade é que eu posso dizer-te que a primeira ideia de qualquer coisa que tinha que ver com o Cerco de Lisboa não é de ontem nem de anteontem, pode ter provavelmente uns dez ou doze anos; essa ideia anda comigo há pelo menos doze anos ou talvez mesmo mais, e começou por ser uma ideia que teria a ver com o cerco de 1383. Mas havia qualquer coisa que não me agradava completamente nessa ideia, e provavelmente o que não me agradava seria sujeitar-me não direi a uma comparação, isso não é sequer possível, mas não me atrevia a pôr ao lado, digamos, da crónica de D. João I, ao lado do Fernão Lopes, 200 ou 300 ou 400 páginas minhas. Depois, e sobretudo, porque é uma história demasiado conhecida. Digamos, cuja carga simbólica está feita, e até eventualmente exaurida; é como se já não se pudesse tirar nada dali; enfim, com certeza que se poderá, mas eu não seria capaz. Depois passei a um outro momento em que imaginei qualquer coisa de extremamente complicado: uma visão conjunta dos dois cercos em que estaria mais uma vez a oposição: em 1147, os portugueses estariam cercando, e em 1383 os portugueses estariam cercados; mas mesmo isto também não me convenceu, e acabei por me fixar no primeiro cerco, provavelmente, por razões semelhantes àquelas que me levaram a pensar no Convento de Mafra: ninguém tinha reparado que estava lá. Também é verdade que está ali o Castelo de S. Jorge e aquilo que foi a antiga cidade de Lisboa, a cidade moura, e também ninguém reparou nisso; bom, isto não é verdade, muita gente reparou, muita gente escreveu sobre isso, historiadores e tudo mais, mas ficou a ideia de que havia ali qualquer coisa, que em termos de ficção estava ainda intacta, porque pode haver uma ficção qualquer, e com certeza há, onde D. Afonso Henriques esteja cercando, agora o que não há com certeza, julgo eu, é alguém que tenha dito, que se tenha lembrado de que os cruzados poderiam ter dito «não ficamos aqui, vamos embora». Então esse óbvio não visto por outros, como foi o caso do Convento de Mafra, foi exactamente aquilo que me prendeu e que me levou a decidir: vou eliminar todas as outras ideias, as ideias mais ou menos paralelas, convergentes ou não, que eu tinha antes, e vou-me concentrar enfim neste cerco.
MG — Entretanto, penso que tu no tratamento deste cerco... recuperaste algo da segunda ideia que referiste...
JS — Ah, sim, claro, claro.
MG — No fundo é muito nítida em certos momentos uma espécie de indistinção entre quem sitia e quem é sitiado...
JS — E nota que vai ao ponto de introduzir, digamos, os célebres versos cantados pelas moças de Lisboa, neste caso, com a adaptação necessária, ditos por uma moura que está numa casa qualquer sobre as muralhas e que fala para o revisor que está do lado de fora, porquanto continua a haver esta minha confusão digamos no tempo, nunca sei muito bem em que época estou; digamos que esta tentação de levar o presente para o passado e a outra tentação também constante de trazer o passado até nós. E depois isto: vamos lá a ver, quando eu pego nisso, quando eu pego nesses versos, estou a falar de qualquer coisa que era futuro no século xii, mas que para nós é passado. Este constante viajar, esta instabilidade no tempo, que por outro lado é uma maneira de estar estavelmente no tempo, porque o tempo é todo um, e não partido em presente, passado e futuro, isso é o que. julgo eu, é a grande linha central dos meus livros. Enfim, está numa relação muito característica, muito sui generis com o tempo e também com o espaço.
MG — Um dos momentos da indistinção é também quando por exemplo se fala «desta desgraçada gente de Lisboa», que são naquele contexto imediato, necessariamente, os mouros, embora seja uma frase aplicada e aplicável aos cristão, aos lisboetas...
JS — De agora mesmo, de agora mesmo.
MG — Depois há outro momento em que, no diálogo entre o Raimundo Silva e a Maria Sara procurando situar-se, saber quem são, se diz que são os mouros ou cristãos que estão lá dentro...
JS — Exacto, exacto, «que somos nós, neste momento», porque, enfim, é a casa dele. Porque mais uma vez eu não posso fazer nada sem ver, eu não posso escrever nada sem ver, mesmo que aquilo que eu veja não seja aquilo que está agora ali. Não é o caso, por exemplo, do Convento de Mafra, pois o Convento de Mafra é mesmo o Convento de Mafra, mas já é o caso da casa do Ricardo Reis no Alto de Santa Catarina. Eu tive de ir ver ali uma casa, tinha que encontrar uma casa que me conviesse, e mais uma vez neste caso da História do Cerco de Lisboa eu encontrei a casa do revisor, e a partir de agora a casa do revisor é aquela, com uma janela, que está lá; aquela, onde eu não entrei, ao contrário do que aconteceu no Hotel Bragança, onde fui escolher o quarto do Ricardo Reis. O 201 é esse quarto e eu sei como é, porque estive lá. Neste caso, digamos, não é assim, mas enfim há sortes ou há acasos que fazem com que a casa do revisor ocupe, deve ocupar mesmo o lugar de uma das torres laterais da porta de Alfofa, porque está exactamente em frente de um prédio, de um edifício, que lá está e, aí, não há dúvida nenhuma que é assim, aí, averiguadamente, eram o local e os fundamentos, os alicerces; e a própria estrutura é a da outra torre. Então, isso permite que nessa conversa entre o Raimundo e a Maria Sara eles se questionem sobre quem eles são. Se são mouros ou se são cristãos, se estão do lado de fora ou se estão do lado de dentro.
MG — Esta indistinção do dentro e do fora, do passado e do presente é uma maneira muito curiosa de dar duas coisas dentro do romance: por um lado, é uma espécie de compaixão por vencedores e por vencidos, um modo de nos fazer herdeiros não apenas dos vencedores, como uma certa história costuma fazer, mas também herdeiros dos vencidos e, por outro lado, de tentar propor em alternativa à conquista e à instituição militar ou guerreira o encontro amoroso.
JS — É, porque tu repara, isso que tu disseste agora sobre a compaixão acho que está bem dito, porque é de facto um sentimento que eu tenho, a compaixão, nesse sentido exacto. O que realmente é incapaz de distinguir entre quem vence e quem perde. E as reflexões sobre o ganhar, o vencer e o ser derrotado abundam neste livro, quer directamente expressas, enfim, pelo Raimundo Silva, ou pelo narrador que a toda a hora toma como símbolos, como generais dos dois exércitos, por um lado Alá, e por outro lado o Deus dos cristãos, diz que exactamente por interpostos homens se guerreiam, porque os deuses não se podem eliminar uns aos outros, porque os deuses não se podem guerrear, porque um deus não pode matar outro deus, enfim, não há outra maneira senão criar os homens para delegar neles aquilo que não pode ser feito no plano divino. Ora bem, essa minha posição em relação a gente que finalmente não é mais do que vítima, digamos, desta decisão superior — e quem diz agora Deus, diz poder, digamos, poder concreto — faz com que não haja, penso eu, uma preferência do narrador ou do autor, que pelo contrário fala dos mouros em pé de igualdade com os cristãos que vêem, que estão a fazer um país que nessa altura ainda não existia, o que se presta a certas observações até sobre a própria história porque eles ainda não têm história. E ao diálogo final entre os soldados e o Rei, em que se discute como é que este país está a nascer, se está a nascer torto, se está a nascer direito; e isto tudo tem que ver, por um lado, com o modo relativizador com que ele encara todas estas coisas e, por outro lado, tem também que ver com esta consciência de que o ser humano é um pobre diabo, em definitivo, somos todos uns pobres diabos.
O duplo par amoroso. Os nomes e as siglas.
«Parece que estamos em guerra.
Claro que estamos em guerra, e é guerra de sítio, cada um de nós cerca o outro
e é cercado por ele, queremos deitar abaixo os muros do outro e continuar
com os nossos, o amor será não haver mais barreiras,
o amor é o fim do cerco. Raimundo Silva sorriu.» (P. 330)
«perguntará, Como te chamas, mas é só um truque para começar a conversar,
se há algo nesta mulher que para Mogueime não tenha segredos,
é o seu nome, tantas são as vezes que ele o tem dito,
os dias não só se repetem, como se parecem, Como te chamas,
perguntou Raimundo Silva a Ouroana, e ela respondeu, Maria Sara.» (P. 290)
MG — Neste romance, o que disseste antes sobre o jogo do «sim» e do «não» aplica-se muito claramente ao encontro amoroso, como uma espécie de pequena guerra ou de pequena dança entre os dois elementos que a certa altura se encontram no sim.
JS — Exacto, exacto. Mas tu meteste agora aí uma palavra que me parece feliz que é a palavra dança. Efectivamente, se nós pensarmos no que é a dança, para além, digamos, do que tenha de expressão cultural e tudo isso, de mais ou me-nos beleza; se reduzirmos isso ao essencial que é o movimento, no caso da dança de dois, o movimento é ao mesmo tempo de complementaridade e de oposição, e essa palavra dança, que é ainda por cima aplicável no plano intelectual, tem neste caso uma expressão evidente, dado que o diálogo ou a dança, se quiseres, é a dança de duas vontades, ou a dança da apetência amorosa, conduzida mais uma vez pela mulher. Tudo se passa nestes termos: é como se eles estivessem a dançar num palco.
MG — Tive a sensação de que este é talvez o teu romance em que o encontro amoroso e a sua dança ocupam mais o fundamental da cena.
JS — Eu penso que sim. Quer dizer, em todos os outros romances há qualquer coisa de instantâneo; acontece na Jangada; acontece no fundo de uma maneira neutra no Ricardo Reis, acontece evidentemente no Memorial do Convento, o encontro amoroso é instantâneo, fica aí. Neste caso não é, tu repara como convergem para a última página do livro os dois encontros amorosos coincidentemente com o desenlace do cerco. No fundo, este livro é uma longa aproximação dos preparativos do cerco, de tudo aquilo, porque, repara, o cerco resolve-se nas dez últimas páginas, assim como os casos de amor de um casal e de outro casal também se resolvem nas dez últimas páginas, tudo se encaminha, num processo lento de aproximação que converge para um ponto final que poderia abrir outra vez, mas que não abre, que, enfim, fica ali. Ora, porque é que terá sido assim, não sei... enfim, não sei se a minha própria vida pessoal e sentimental terá entrado nisto. Eu diria... Como é que eu poderia dizer... talvez tudo antes fosse muito instantâneo porque eu não saberia como acontece. Tens uma maneira de resolver que acentua o instantâneo, o que pode até de um ponto de vista artístico produzir efeitos felizes; talvez que neste caso tivesse sido impossível instantaneizar, porque o meu próprio prazer exigia a demora, a aproximação, mas sensível, lenta...
MG — Essa é uma das dimensões muito nítidas no livro, a da duração da espera, enquanto em alguns outros livros teus surge ou o valor da fulguração, ou o da duração que se mantém viva. Outra coisa que eu gostaria, já agora, de sublinhar é a poética do erotismo feliz. Neste livro, isso continua; semelhante e diferente da dos outros, a jubilação do encontro amoroso é intensificada não só pela demora, mas pelo próprio facto de ser muito nítido que há uma transformação profunda na vida do Raimundo Silva.
JS — Isso é verdade e até a minha própria experiência pessoal, que de uma maneira indirecta é transposta. Não é o relato de uma experiência pessoal, mas é provavelmente o relato ou a tentativa de transmitir um estado de espírito que é o meu. Se calhar, neste momento, um livro meu onde acontecesse um encontro amoroso poderia prestar-se a esta maneira.
MG — Aliás, eu penso que «uma parte» da tua singularidade em termos da ficção narrativa portuguesa é a manifestação de uma tão intensa e, por outro lado, não ingénua, até porque combinada com uma nítida capacidade de ironia, aspiração à felicidade. Ora, neste romance essa aspiração é intensificada e, digamos, ratificada, pela duplicação do par amoroso, que é uma das mais nítidas figurações do «tema do duplo», cuja importância na tua obra a Maria Alzira Seixo destacou já. Ambos os pares, o «contemporâneo» e o «medieval», dançam a pequena dança a que nos referimos, embora em ritmos diferentes, ora antecipando ou prometendo, ora confirmando ou celebrando a jubilação. Entretanto, e isso parece-me que é enriquecedor, os duplos não são perfeitos, ou seja, há uma diferença naquilo que se duplica.
JS — Embora haja uma diferença maior entre a Ouroana e a Maria Sara, que pouco ou quase nada têm de comum, do que entre o Mogueime e o Raimundo Silva. Digamos que o revisor ao inventar o Mogueime como sua personagem (e é interessante ver como ele a escolhe) vai ter que ir à procura de alguém cuja vida, no fundo, também tem algo de falsidade, tal como a sua. Estabelece-se até um paralelo entre o que se esconde e o que se mostra e entre aquilo que se diz ser e afinal de contas o que se é, quando por um lado o Raimundo Silva quer aparentar uma juventude que já não tem e quando por outro lado o Mogueime quer sustentar a ideia de que ele é que subiu às costas do Mem Ramires e não o Mem Ramires às costas dele. Podemos dizer que há uma semelhança maior entre essas duas personagens.
MG — Há também uma coisa muito interessante e que tem a ver com a diferença das temporalidades e com a não homologia total e fechada entre as figuras do duplo: é a questão da dificuldade em saber como é que eles se exprimiriam, como é que eles falariam, o que dá para meteres uma lindíssima homenagem à poesia. É que nesse momento ainda não se tinha inventado a poesia portuguesa...
JS — Logo, como é que se podia falar poeticamente?
MG — Só depois de D. Dinis...
JS — Depois do poeta D. Dinis.
MG — É por isso que eu digo que há nisso uma lindíssima homenagem à poesia, atribui-se-lhe um certo papel de construção antropológica: a escrita literária, a poesia, fazem parte da constituição dos humanos que nós somos.
JS — Eu penso que sim; aliás, sabes que eu às vezes digo que nós somos seres feitos de papel no sentido de que, enfim, a literatura fez-nos, faz-nos.
MG — Há um belo texto do Marx dos Manuscritos de 1844 onde ele diz que a formação dos sentidos humanos é um processo histórico de que participam também a pintura, a música, a literatura.
JS — Agora, com isso fizeste-me lembrar coisas que, enfim, nós fazemos sem saber porquê e o não sabermos porquê provavelmente é que mostra a radicalidade delas. Nesse sentido, quando se tratou de fazer o livro Poética dos Cinco Sentidos sobre as tapeçarias «La dame à la Licorne» porque é que eu escolhi o ouvido? Repara que eu não tomei o ouvido como aquilo que sobrava, eu escolhi o ouvido e não a vista como parecia imediato. A Fátima [Maria Velho da Costa] escolheu a vista, mas eu, que podia escolher em primeira mão, escolhi o ouvido, porquê? Que razão foi? O que é que eu achei e o que é que eu continuo a achar que há no ouvido? Há qualquer coisa de potencialmente mais gratificante em termos de conhecimento do que haverá na vista. E porque é que eu a partir daqui, ou não a partir daqui, mas agora podemos aproximar uma coisa e outra, digo que o Almuaden é cego, o que é um dado histórico de facto, não é nada que eu tivesse inventado, mas como é que estas coincidências se organizam para que tudo depois tenha uma coerência?
MG — Há muito nitidamente em várias outras obras tuas um jogo com os nomes das próprias personagens e, aqui, podíamos também interrogar-nos se é por acaso que nos dois nomes, o apelido do Raimundo Silva e o segundo nome da olaria Sara são iniciados pelo S de Saramago? Se quiseres falar sobre isto, pergunto-te se com o nome Ouroana, para além da atracção por uma palavra composta de Ouro e Ana, não houve nenhuma vontade de duplicar, transformando-o, o nome de Oriana, a do Amadis de Gaula?
JS — Nota que isso é inevitável. Só que o nome de Ouroana colhi-o eu numa leitura, já não sei donde, talvez da «Crónica dos Cinco Reis», enfim, julgo que foi da «Crónica dos Cinco Reis», em que o próprio nome Ouroana está ali, eu suponho que o Oriana é uma corruptela ou uma forma paralela de Ouroana. De qualquer forma, digo-te que se eu tivesse de escolher entre Ouroana e Ouriana eu escolheria Ouroana; simplesmente não crive de escolher, o nome existia, como aliás tem acontecido algumas vezes comigo; quando me perguntam se Blimunda existe, eu digo, existe, está aqui no vocabulário, e Ouroana existe, está ali, e foi ali que o fui buscar. Agora, de facto, eu preciso dos nomes, e aliás fala-se disso no livro, o fulano não podia chamar-se fulano, eu preciso de sentir que o nome cola aos personagens. Mas, por outro lado, há constantes e o Raimundo chama-se Raimundo porque esse nome tem ar antigo e nobre e é a continuidade da Blimunda, que tem que ver também alguma coisa, enfim, em termos de som, com a Marcenda, que aliás entra neste livro não já como nome próprio, digamos, mas como o que é de facto no Ricardo Reis; fala-se portanto na rosa murcha, marcenda, e aí toma o seu lugar. A Maria Sara, que foi o nome que me custou mais a encontrar, mas que de repente saiu, eu julgo que tem que ver directamente com as duas primeiras sílabas do meu próprio nome, do meu apelido, que entra por exemplo também no Manual, pois a partir de uma certa altura começo a falar de apelidos que apareçam com S, aparecem os Simões e aparece também Saramago. Aparece também no Memorial e, no fundo, talvez isto seja uma maneira de dizer que tudo é tudo e que, digamos, eu não separo aquilo que é ficção do que é real e, portanto, é como se eu fizesse uma espécie de interpenetração constante entre a realidade e a ficção negando as fronteiras que existiriam entre uma e outra, e demonstrando isso, utilizando neste caso o meu próprio nome não como alguém que por megalomania quer introduzir-se na sua própria ficção, mas como uma demonstração de que não há que distinguir entre isto e aquilo, tudo é.
MG — Sim. Penso que pode ser uma maneira de assinares não só na capa do livro, não só no fim, eventualmente no fim do manuscrito, mas de assinares dentro do livro, ou seja, tu estás lá dentro entre outras coisas, pelo espalhar, pelo disseminar letras do teu nome, o que eu não vejo, de facto, como uma afirmação de megalomania, mas como uma maneira de te situares também, como de alguma forma produto da ficção, não és apenas função criadora, és também um daqueles pequenos objectos de que na ficção se fala.
JS — Eu digo-te, por exemplo, que em monumentos e igrejas sobretudo da Idade Média, da arquitectura românica, há uma coisa que me comove muito e às vezes muito mais que a beleza de um capitel, que são as siglas: o canteiro deixou na pedra a sua sigla e sobre isso passaram 600 anos, mas está ali. Isto é uma coisa que me deixa comovido. Sabes que há uma igreja ao pé de Castro Daire que está crivada de siglas do lado de fora e são siglas da época, claro; é uma coisa impressionante. Então, no fundo, é como se eu quisesse deixar também a minha sigla.
MG — Gravar a pedra histórica.
JS — Claro, claro.
MG — Ainda em relação àquela questão do nome de Ouroana, aquilo que eu estava a pensar é isto: tu encontraste também outros nomes, preferiste esse, mas uma das maneiras de podermos ler essa tua preferência é precisa-mente pelo modo como esse nome suscita o dessa outra heroína, Oriana, que é muito diferente da Ouroana do teu romance, como convém a uma personagem que, colocada na Idade Média, entretanto, não é a heroína de uma narrativa medieval.
JS — Claro. Aliás eu encontrei outros nomes de mulheres que depois introduzi no livro. Por exemplo, havia dois nomes que me agradaram muito, um que é Chamoa e outro que é Moninha, e que entram também como nomes que teriam sido possíveis mas que finalmente acabaram por ficar de parte, tendo o autor escolhido a Ouroana. E no caso dos homens, dos mortos, que vão passar de um lado da margem de um esteiro para outro esteiro, quando há uma reminiscência clássica, a da barca que leva os mortos, esses nomes, que de uma certa maneira repetem em morte aquilo que tinha acontecido já em vida com os vivos, constituem uma enumeração, como havia já no Memorial, onde se vai de A a Z. Neste caso isso não acontece, mas há também essa espécie de fascinação tão enumerativa, demonstrativa, que eu tenho, e a que não posso realmente fugir.
MG — Penso que tem essa função, que me parece evidente, e que tem a ver, aliás, com a hipótese de que o pronunciar o nome próprio seja, como tu dizes, uma demonstração, um evidenciar a realidade daquilo que se diz, e que tem também a função, penso eu, de uma homenagem àqueles que são os mais esquecidos.
JS — Isso é claro e é o primeiro movimento; aquilo que me move a essa enumeração é sempre essa ideia que de certo modo se liga com a compaixão. A compaixão por essa sucessão de homens, de mulheres e de toda essa gente que veio e que passou e não deixou nada senão o seu sacrifício, a sua fome, a sua miséria, a sua infelicidade. E, no fundo, é como se fosse preciso fazer qualquer coisa por eles, é uma maneira de expressar também essa compaixão, de não os deixar desaparecer; e o modo é esse, vamos lá. Isto liga-se, outra vez, ao momento em que o narrador diz que, falando dos nomes, «podia dizer aí vai Gonçalo e imaginar-se que era apenas um, podiam ser trinta que tivessem todos eles o mesmo nome». Então, surge esta necessidade de deixar ficar qualquer coisa mesmo que não seja mais do que um nome, a sigla.
MG — A propósito de deixar a sigla, uma outra coisa: os teus livros contêm sempre, por momentos, pequenas remissões mínimas de uns para os anteriores. Por exemplo, no Memorial aparece um Mau-Tempo, que remete para o Levantados do Chão...
JS — Em todos eles. Todos eles fazem isso, cada um em relação aos outros, e este mais uma vez. Eu julgo que isso tem a ver com o narrador, porque no fundo é a marca da presença do narrador, que é o mesmo, independentemente da velocidade das histórias que se contam. O narrador é um só, neste sentido: é que ele, sendo de cada vez polifónico, sendo algumas vezes uma espécie de coro do qual se destacam um ou dois ou três solistas, que também eles depois podem dar lugar à expressão coral, enfim, apesar de todo esse jogo, polifónico, há sempre um narrador; também esse narrador faz questão de, uma vez que é único, que é ele quem está a narrar tudo, então ele deixa marcas da sua presença e do seu conhecimento, ele sabe de um livro anterior que aconteceu isto e vai dizê-lo aqui. E tudo isto sendo livros tão diferentes uns dos outros, porque não há livros repetidos, não há livros que repitam temas no sentido de uma ampliação, de um aprofundamento, como em alguns casos e com toda a justificação, mas no meu caso não é assim, é o narrador que, afinal de contas, é o narrador único e que vai marcando a sua passagem, trazendo de uns lugares para outros, por onde passou, recordações.
MG — Eu penso que isto se pode também ligar a outra coisa de que já falaste e que é o estatuto dialéctico da relação ficção-realidade. É que, no fundo, essas alusões a outros livros, a entidades que são textuais, que são ficcionais, funcionam pelo mesmo processo como num livro se alude a qualquer coisa que é do chamado mundo extratextual. Ora isso mostra que esse mundo textual a que se alude nos teus livros é um mundo real, acrescentado, como tu dizes.
JS — Era isso que eu ia a dizer, porque, no fundo, esses livros anteriores, porque existem, estão impressos, são lidos, estão integrados na realidade. Então é retirar dessa nova realidade, essa realidade acrescentada, elementos que já não são afinal apenas da ficção, mas da realidade onde essa ficção se integrou, e então vai-se buscar aí para aquilo que por enquanto ainda é ficção e que vai deixar de sê-lo, continuando a sê-lo, claro está, por um processo de integração na realidade, igual ao que tinha acontecido com todos os outros e, portanto, estabelece-se uma ponte que liga uma coisa e outra. Eu costumo dizer que sou mais realista do que todos os romancistas que há. Mesmo que eu ponha nos livros coisas fantásticas.
MG — Eu penso que é muito claro que na tua obra o fabricar, o ficcionar uma contra-realidade, que passa muitas vezes pelo reabilitar do maravilhoso, não tem como estratégia uma separação da realidade, mas antes o acrescentar, o modificar a realidade, a modificação das imagens que nós temos da realidade. Isto tem também a ver com a questão dos provérbios. Por alguma razão, também os surrealistas se interessaram tanto pelos provérbios, e pela modificação e pela invenção de novos provérbios, que é uma coisa, aliás, que tu também fazes. Há frases tuas, fragmentos de frases, que são provérbios, novinhos em folha, prontos a circular.
JS — Se os quiserem introduzir, eles já estão feitos.
MG — E também esta ideia, que é no fundo, também, um dos projectos do surrealismo, embora não só — eles formularam-no de uma maneira muito nítida: o papel da poesia (tida como distinta da literatura, mas podendo incluir também a ficção) como uma forma de alargar os horizontes do real.
JS — Numa entrevista que eu dei aqui há tempos a um jornal holandês e que saiu há muito pouco tempo, eu falei de uma tendência minha para a sobrenaturalização da realidade, que o entrevistador confundiu dizendo «mas isto tem alguma coisa a ver com o religioso?» Não tem nada a ver; depois, tentei explicar e acabei por encontrar talvez a melhor explicação dizendo que isto tinha a ver alguma coisa com o surrealiismo, quer dizer, aquilo a que ele chamava sobrenaturalização não era na realidade sobrenatural, enfim, no sentido transcendente, é realmente ver a realidade como a teriam querido ver e como a viram os surrealistas.
«Que estranha língua fala a nossa gente».
«Dê importância às palavras, não ao tom.
Supus que a sua experiência de revisor lhe teria ensinado que
as palavras não são nada sem o tom, Uma palavra escrita é uma palavra muda,
A leitura dá-lhe voz, Excepto se for silenciosa,
Até mesmo essa, ou julgará o senhor Raimundo Silva
que o cérebro é um órgão silencioso.» (P. 237)
MG — Uma das características muito nítidas da tua ficção é não apenas o gozo da efabulação, o gozo de contar histórias, que parece ser a recuperação de uma arte perdida, de uma arte inocente, mas o modo como isso é acompanhado por uma enorme consciência de feitura, que tem a ver com a constante auto-reflexividade; existem na tua ficção, constantemente, momentos em que a ficção se dá a ler como tal, e se mostram os seus processos. Ora, uma coisa que tem sido também notada em relação à tua escrita é o grande gozo com a língua portuguesa, a grande acumulação de registos discursivos historicamente diferenciados, de registos literários e populares diferentes. Ora, neste romance, vem uma fórmula que dá a ler isso de uma maneira muito nítida e muito clara; quando o revisor-narrador tem que precisamente escolher as suas personagens no Cerco de Lisboa, para além de lhes escolher os nomes, ele «ouve-os» confusamente falar e diz «que estranha língua fala a nossa gente». Ora, é muito interessante ver como uma das razões desta polifonia discursiva na tua obra pode ser este espantar-se com a língua que a comunidade fala e que, de tão diversa, se torna estranhável, o que é uma maneira de melhor a ver. O estranhar alguma coisa é uma maneira de exigir que se fixe a atenção nela; por outro lado, permite mostrá-la como muito diversa e complexa.
JS — Bom, é isso. E eu vejo isto deste modo, que é o que eu tentei e que tem a ver com aquilo do ouvir e do entender: há uma concomitância entre, por um lado, as palavras, por outro lado, os sentimentos; por que modo é que as palavras podem exprimir esses sentimentos e que sentimentos é possível ter, sendo detentor de determinadas palavras? Isto, por um lado; por outro lado, a ideia de que a língua que nós falamos, e não nos cansamos de dizer isto, é um organismo vivo e portanto vai-se transformando. Tem-se vulgarmente a ideia de uma fixidez da língua, porque é fixamente que nós a utilizamos no nosso quotidiano, mesmo se não é fixamente que a utilizamos ao longo da nossa vida, dependendo evidentemente da maior ou menor duração dessa mesma vida, há variações que resultam da idade que tens, da cultura que vais tendo, do meio em que vives ou das relações que tens, de tudo isso. Vais utilizando a língua de diferentes modos, mas, de qualquer forma, sendo um tempo breve que se observa, há uma imagem de uma relativa fixidez. Agora, é outra coisa se tu pensas nisso e tens que fazer um livro, se tens que dar essa ideia um pouco nebulosa de uma transformação que sabes que existiu mas que, em rigor, no que se refere à língua falada, ignoras. Repara: pelo documento, a escrita está aí, podemos acompanhá-la desde o século xii, se quisermos, que é o tempo do livro, até agora. O que não sabemos é de facto como as pessoas falavam. Portanto é essa língua que soa estranha, e no século XII devia soar estranhissimamente, o que, portanto, implica também ao nível dos sentimentos um igual grau de estranheza, porque não podemos saber hoje, uma vez que algo conhecemos das palavras mas não conhecemos o modo de dizê-las. A expressão do sentimento passa muito pelo modo como utilizamos as palavras que conhecemos e então é essa sensação de coisa desconhecida e intrigante, por isso estranhável, nesse mesmo sentido — como é que essa gente fala o português, uma coisa que temos o direito de chamar o português, que no fundo nos soaria tão estranhamente hoje como se fosse italiano ou alemão, ou coisa que o valha, uma língua que nos é estrangeira, que nos seria estrangeira ou estranha se a ouvíssemos, e a verdade é que quando o Raimundo necessita de escolher as suas personagens, então, encontra-se com estas duas dificuldades: por um lado, a dos sentimentos, por outro, a da língua que se falava então. Pode ser entendido que se trata de uma saída fácil por parte do autor — resolveu sair por uma porta lateral; mas talvez com a coincidência de que a porta lateral seja a única por onde se pode sair.
MG — Repara que, de qualquer mo-do, essa estranheza é transportada para espaços de tempo mais curtos. Por exemplo, a partir da frase que citei atrás dizes que, se calhar, os conflitos de gerações são conflitos de linguagem. Num espaço de tempo muito curto e inclusivamente no mesmo momento pode haver esse estranhamento, que tem a ver com os usos discursivos diferentes das pessoas, e é a acumulação destas diferenças que perpassa constantemente na tua obra e que tem a ver com uma ligação à língua não tanto enquanto sistema formal abstracto, mas enquanto discurso. O que te permite dar a evidência da socialidade da língua e portanto também de que o discurso é também um processo de uso, de apropriação da língua comum numa fala própria, o que tem a ver também com a radicação da linguagem no corpo. Quando tu insistes tanto na fala, parece-me que isso tem a ver com a maneira mais evidente como nós corporalmente produzimos a linguagem, e isso passa por uma expressão que uma vez te ouvi usar num colóquio que era: «a auralidade»; dizias tu que aquilo que interessava era a auralidade, jogando ao mesmo tempo com a noção da palavra produzida e ouvida.
JS — Porque eu não consigo ver qualquer livro meu como qualquer coisa apenas escrita, quer dizer, pelo menos não consigo escrevê-lo se estiver apenas a escrevê-lo; se não tiver a sensação clara, nítida, de como soa a frase que eu escrevo. E nota que não caio no dizer em voz alta, para ver se soa bem; eu não preciso sabê-lo, tenho uma espécie de ouvido interno que está a ouvir aquilo que eu escrevo, e a perceber. Muitas vezes eu disse já tudo aquilo que tinha para dizer e ainda lhe acrescento mais cinco ou seis palavras que não trazem de certa forma nada de novo, mas necessito delas, porque o compasso o exige. Diga-mos, é só por isso. E isso é um processo meramente interior; eu não chego ao momento de pôr um ponto final para ler em voz alta aquilo que escrevi e sentir que tenho que acrescentar mais; não, esse acrescentamento faço-o eu, enfim, por necessidade, mas necessidade interna, é o meu ouvido interno que o ouve.
MG — Parece-me que é isso que torna muito evidente na tua escrita a existência de um trabalho rítmico e mesmo prosódico, que é uma coisa de que se costuma falar quase só em relação à poesia mas que existe nos teus textos.
JS — Em todo o caso quero que fique claro isto: os resultados finais, enfim, podem ser melhores ou piores, mas o que te quero dizer é que esses resultados, o texto final, não são consequência de uma leitura em voz alta e muito menos de uma atenção ao jogo de consoantes e vogais abertas, fechadas, mudas; não, é qualquer coisa que se processa; é como se eu tivesse de acompanhar, escrevendo, um processo harmónico-melódico que vai funcionando dentro de mim e que automaticamente elimina as palavras que não conviriam; mesmo que, do ponto de vista do seu sentido, estivessem bem no discurso, não o estão porque são dissonantes; é isso.
MG — Aliás tu dizes tudo isso no livro de uma maneira muito clara. Mais uma vez, dito por uma personagem, o que é uma maneira do texto exibir esse trabalho de escrita.
JS — «Uma palavra escrita é uma palavra muda, A leitura dá-lhe voz, Excepto se for silenciosa, Até mesmo essa, ou julgará o sr. Raimundo Silva que o cérebro é um órgão silencioso.» Eu julgo que isso define melhor do que tudo quanto se possa dizer. A ideia de que o cérebro não é um orgão silencioso.
MG — Estas questões da socialidade da língua, da polifonia e da «auralidade» dão passagem para falarmos de uma outra coisa, que é também constante da tua obra, mas que me parece existir neste livro de uma maneira muito exibida, que é a questão dos provérbios, dos aforismos, dos ditados, de certos estereótipos. São frases cujo sentido parece aparentemente fixo, independentemente de quem as diz e, entretanto, podemos ver que, ao serem ditas em diferentes circunstâncias, a sua significação varia. Ora, o livro está repleto de provérbios...
JS — Sobretudo um que é recorrente e que na sua recorrência vai variando. É esse tão conhecido «no melhor pano cai a nódoa», e isto vai valendo diferentemente.
MG — Esta fascinação da tua prosa pelos provérbios parece-me muito curiosa e tem a ver com esse valer diferente de que falas. Com o modo como jogas com eles. Dois exemplos do livro:
«começando imediatamente pelo abate das árvores que havia ali,
umas nascidas ao acaso da natureza, outras plantadas pelas mesmas mãos dos mouros,
que então não puderam adivinhar que estavam, literalmente, a juntar lenha
para se queimarem, são, digamo-lo uma vez mais, as ironias do destino». (P. 307)
Tu, por um lado, integra-los no discurso, crias-lhes situações de enunciação em que eles como que estão a ser feitos, restituis-lhes um sentido literal, ou contesta-los pela ironia. Em suma, em vez de os tomares como coisas feitas, inalteradas e inalteráveis, tu refaze-los. E isto é mais uma vez um trabalho de estranhar a língua.
JS — Essa é exactamente a minha posição constante, a posição de alguém que constantemente está surpreendido perante a língua. Mas eu queria fazer referência a um livro que não tem que ver nada com isto, que não toca sequer nesta última parte dos ditados, dos provérbios e tudo isso — mas alguém que fizesse essas aproximações possíveis concluiria se sim ou não o que eu vou dizer tem algum sentido. Mas pelo menos vai tê-1o, quando eu te disser que um dos livros que mais me impressionou de toda a literatura, enfim, de todos os livros que ao longo da minha vida eu pude ter conhecido, que é um livro que normalmente é muito citado de um dos mais importantes autores franceses do século xix, o Flaubert, que é o Bouvard et Pécuchet. Considero esse livro, enfim, um livro notabilíssimo, de todas as formas, por todos os modos de encarar, e sendo tão radicalmente diferente daquilo que eu faço, porque há muita ilusão nas coisas que eu escrevo, essa compaixão e tudo isso, que não se encontra imediatamente no Bouvard et Pécuchet. Eu quase diria... se me perguntasses qual foi o livro que te marcou, tendo cai não tendo passado para os livros que fazes hoje como influência; claro que é fácil dizer o D. Quixote, o Padre António Vieira e tudo aquilo que normalmente serve para responder, e que no meu caso penso que tem alguma legitimidade, mas digo-te que uma impressão estranha, particular, muito especial me acompanha desde justamente a leitura desse livro do Flaubert.
MG — Vou pensar nessa. Parece-me aliciante.
JS — E olha que nunca o tinha dito antes, isto é, já o tinha pensado muitas vezes, mas assim num diálogo, numa, conversa, e muito menos numa coisa que se destina a ser publicada numa entrevista, nunca o tinha dito. Pensa nisso.
«Uma espécie de misto [...] entre o Manual e o Memorial».
«No papel todos os planos são mais ou menos bons,
porém, a realidade tem mostrado a sua irresistível
vocação para desviar os papéis e rasgar os planos.» (P. 249)
MG — Como trabalhas? Como é isso de planos, e o que lhes acontece com o trabalho da escrita? Como lês para o que escreves? Como surge a multiplicidade dos registos?
JS — Vamos ver então sobre os pianos que a realidade altera, que a realidade transforma. Tu repara que isto teia aqui dois significados, um deles liga-se ao próprio caso do Raimundo Silva que acabou por ter que fazer outra coisa„ porque na própria execução do plano, o plano vai-se alterando com os dados daquilo que passou a ser não já plano mas real; portanto, os dados do real impõem a sua própria lógica e a sua própria exigência. Mas isto também é um eco daquilo que eu comecei por dizer há pouco sobre os meus planos iniciais, que acabaram por se transformar nisto que é agora a História do Cerco de Lisboa, quando dizia que hesitei entre um e outro, quando eu pensei em reunir os dois num só, o de 1383 e o de 1147; no fundo, é um eco disso, dessa minha própria dificuldade, dessa minha própria perplexidade que está aí no livro. Quanto às vozes que aparecem no livro, eu chamar-lhe-ia realmente vozes, repara nas leituras necessárias para dar um fundamento... enfim, aceitável a este livro. Eu utilizei essencialmente a Crónica dos Cinco Reis de Portugal e a Crónica de D. Afonso Henriques de Frei António Brandão. É interessante como não se reparou, enfim, reparou-se, eu é que fico sempre muito surpreendido quando reparo em alguma coisa e acho que os outros não repararam; quer dizer, é interessante reparar como toda a vida do Frei António Brandão corre sob a ocupação espanhola; a obra do Frei António Brandão, que tem, digamos, aspectos que poderíamos chamar patrióticos, é toda ela realizada em cheio no tempo em que Portugal estava sob o domínio da Coroa espanhola. Por outro lado, tive que consultar, tive de ler o livro do Vieira da Silva sobre a cerca moura, pois era importante para isto e, digamos assim, a vítima inocente deste livro é um livro do José Augusto de Oliveira Sousa, sobre a conquista de Lisboa — é aí que aparece alguma da retórica patrioteira, de que eu dou no livro exemplos, e alguns erros históricos, como a questão do Crescente e das Quinas. Agora, tudo isto funciona como referências que são indispensáveis, neste caso, para este livro, mas a diversidade de registos não resulta de leituras paralelas que eu faça para recolher e depois passar a escrever, mas sim de ecos que me ficam de uma vida de leituras e que têm que ver também com uma certa faculdade mimética que eu julgo ter para a imitação do estilo. Não é imitação directa, não é bem o pastiche, penso eu, é como se eu fosse um actor que quer transformar-se de escritor em actor e portanto tivesse que adoptar o texto, não o texto explícito, directo, tal qual, mas aquilo que move o texto, que leva alguém num tempo determinado a falar desta maneira ou daquela, de acordo com o barro de que dispõe, de acordo com a sua língua e com a linguagem. Então eu digo que tudo isso acontece com relativa facilidade, penso eu, porque eu me assumo esses diversos falantes, recorrendo, e não expressamente, pela memória, a frases completas ou a um certo modo de dizer, um certo modo de falar, que me ficaram, claro, dos Camilos, dos Vieiras, enfim, dos Lopes, dos Garretts... O Garrett para mim é uma referência fundamental. Não se tem reparado nisso, e eu próprio também ajudo, com esta ideia do barroco; em que sempre acabo por «bon gré, malgré» deixar-me eu próprio envolver e portanto acabando eu por coincidir nessas referências ao barroco; mas eu acho que não se fez ainda uma relação entre este meu trabalho de ficcionista e o Almeida Garrett, e creio que há uma relação muito directa, julgo eu.
MG — Já agora, uma outra coisa, a Maria Alzira Seixo naquele livro, O Essencial sobre José Saramago, fala do papel importantíssimo que tem a Viagem a Portugal na evolução da tua obra. O Levantados do Chão é de antes, mas, no fundo, os temas da viagem, dos encontros, e do tempo, num determinado país, são depois redistribuídos ficcionalmente por vários romances, e de certo modo a Viagem a Portugal seria uma espécie de placa giratória.
JS — Eu acho que sim, e eu próprio considerei, nas conversas que tive com a Maria Alzira, que ela própria tinha visto isso, e eu confirmei que a Viagem a Portugal é um livro decisivo. Normalmente considera-se que é um livro decisivo, de uma certa maneira o é, quanto ao estilo e modo de narrar, o Levantados do Chão. Mas para passar do Levantados do Chão para o Memorial do Convento foi preciso estar nessa viagem, que provavelmente não teria existido sem o Levantados do Chão. Foi preciso escrever o Levantados do Chão para fazer a Viagem a Portugal, mas talvez o Levantados do Chão não fosse suficiente para escrever o Memorial do Convento e aquilo que veio depois. Considero que a Viagem é um livro importante, tal como as Crónicas, tal como as minhas velhas crónicas que são contos. No fundo, hoje, surpreendo-me um pouco ao reconhecer ou julgar que reconheço uma unidade que não foi voluntária, mas que hoje se apresenta com esse carácter, entre textos tão fragmentários, tão limitados de alcance como eram as crónicas e as coisas de fôlego, digamos, maior, que vou fazendo hoje. Mas com esse ponto, a que eu chamaria ponto central, que é a Viagem.
MG — Quanto a isso que dizes da unidade, penso que é naturalmente mais fácil percebê-la retrospectivamente.
JS — É evidente, claro, que não se pode antecipar, mas a verdade é que muita gente ainda estabelece um corte, um corte que chega a excluir o Manual de Pintura e Caligrafia, o que me parece um erro, e a referência quase exclusiva é o Levantados do Chão.
MG — Eu penso que Levantados do Chão monta, de forma exuberante e de certa forma inaugural, determinado tipo de mecanismos que vão marcar a tua enunciação romanesca.
JS — Claro, claro.
MG — Agora é evidente, também, que no Manual está já uma questão fundamental em todos os outros livros que é a reflexão sobre ficção e realidade.
JS — É no Manual que está, e não é no Levantados do Chão. Nota como há o Manual, depois há uma espécie de suspensão do caminho do Manual, hoje vemos que o Manual estava à porta. O Levantados do Chão é como se fosse um intervalo, necessário de uma certa maneira, mas intervalo, em relação àquilo que o Manual vinha anunciando e que se retoma mais adiante, que se retoma sobretudo no Ricardo Reis.
MG — Sim, não há que decidir sobre esta questão, mas talvez se possa ver que, no fundo, a partir do Levantados do Chão o que se processa é algo que tem a ver com um cruzamento entre esse livro e o Manual.
JS — Pois.
MG — O Levantados do Chão encontra não só um certo tipo de narrador que aliás se transforma nos outros livros mas, sobretudo, penso que inaugura o jogo com o tempo.
JS — Sim, mas agora repara que este livro, a História do Cerco de Lisboa, se o tivéssemos que explicar em duas palavras, ou três ou quatro, talvez pudesse ser como uma vez disse ao Zeferino quando ainda estava a escrevê-lo: — mas que é o livro? E eu disse-lhe: este livro vai ser uma espécie de misto, se pode haver mistos de livros, entre o Manual e o Memorial, e creio que, finalmente, agora que o livro está concluído, se pode ver... enfim, que esta antevisão, um pouco vaga, se confirmou.
Revista "Vértice"
Número 14 (II Série - Maio de 1989)
Páginas 85 a 99