Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 14 de maio de 2016

Texto de José Saramago sobre Jorge Amado "Uma certa inocência" - Revista Blimunda #3 Agosto de 2014

Sinopse: "Porque Jorge Amado era dessa estirpe “graças a Deus”, 
como diria Zélia Gattai quando se definiu a si mesma como anarquista por influência divina."

Aqui para descarregar a edição #3 - Agosto de 2014, aqui


"Uma certa inocência

Durante muitos anos Jorge Amado quis e soube ser a voz, o sentido e a alegria do Brasil. Poucas vezes um escritor terá conseguido tornar-se, tanto como ele, o espelho e o retrato de um povo inteiro. Uma par-te importante do mundo leitor estrangeiro começou a conhecer o Brasil quando começou a ler Jorge Amado. E para muita gente foi urna surpresa descobrir nos livros de Jorge Amado, com a mais transparente das evidências, a complexa heterogeneidade, não só racial, mas cultural da sociedade brasileira. A generalizada e estereotipada visão de que o Brasil seria reduzível à soma mecânica das populações brancas, negras, mulatas e índias, perspectiva essa que, em todo caso, já vinha sendo progressivamente corrigida, ainda de que de maneira desigual, pelas dinâmicas do desenvolvimento nos múltiplos sectores e actividades sociais do país, recebeu, com a obra de Jorge Amado, o mais solene e ao mesmo tempo aprazível desmentido. Não ignorávamos a emigração portuguesa histórica nem, em diferente escala e em épocas diferentes, a alemã e a italiana, mas foi Jorge Amado quem veio pôr-nos diante dos olhos o pouco que sabíamos sobre a matéria. O leque étnico que refrescava a terra brasileira era muito mais rico e diversificado do que as percepções europeias, sempre contaminadas pelos hábitos selectivos do colonialismo, pretendiam dar a entender: afinal, havia também que contar com a multidão de turcos, sírios, libaneses e tutti quanti que, a partir do século XIX e durante o século XX, praticamente até aos tempos actuais, tinham deixado os seus países de origem para entregar-se, em corpo e alma, às seduções, mas também aos perigos, do eldorado brasileiro. E também para que Jorge Amado lhes abrisse de par em par as portas dos seus livros. 

(Jorge Amado apresentando uma escultura a José Saramago. 
Porta de acesso à Fundação Jorge Amado)

Tomo como exemplo do que venho dizendo um pequeno e delicioso livro cujo título - A descoberta da América pelos turcos - é capaz de mobilizar de imediato a atenção do mais apático dos leitores. Aí se vai contar, em princípio, a história de dois turcos, que não eram turcos, diz Jorge Amado, mas árabes, Raduan Nlurad e Jamil Bichara, que decidiram emigrar a América à conquista de dinheiro e mulheres. Não tardou muito, porém, que a história, que parecia prometer unidade, se subdividisse em outras histórias em que entram dezenas de personagens, homens violentos, putanheiros e beberrões, mulheres tão sedentas de sexo como de felicidade doméstica, tudo isto no quadro distrital de Ita-buna (Bahia), onde Jorge Amado (coincidência?) precisamente veio a nascer. Esta picaresca brasileira não é menos violenta que a ibérica. Estamos em terra de jagunços, de roças de cacau que eram minas de ouro, de brigas resolvidas a golpes de facão, de coronéis que exercem sem lei um poder que ninguém é capaz de compreender como foi que lhes chegou, de prostíbulos onde as prostitutas são disputadas como as mais puras das esposas. Esta gente não pensa mais que em fornicar, acumular dinheiro, amantes e bebedeiras. São carne para o Juízo tina], para a condenação eterna. E contudo...E, contudo, ao longo desta história turbulenta e de mau conselho, respira-se (perante o desconcerto do leitor) uma espécie de inocência, tão natural como o vento que sopra ou a água que corre, tão espontânea como a erva que nasceu depois da chuvada. Prodígio da arte de narrar, A descoberta do América pelos turcos, não obstante a sua brevidade quase esquemática e a sua aparente singeleza, merece ocupar um lugar ao lado dos grandes murais romanescos, como Jubiabá, A tenda dos milagres ou Terras do sem fim. Diz-se que pelo dedo se conhece o gigante. Ai está, pois, o dedo do gigante, o dedo de Jorge Amado." 
José Saramago

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