(Capa do artigo - Página 70)
O artigo de Joan Morales Alcudia, está disponível para consulta e leitura na "Revista Blimunda" (páginas 70 a 75) aqui
"No verão do ano 2000, José Saramago orientou na Universidade Menéndez Pelayo de Santander, Espanha, um curso de literatura. Foram quatro dias de encontros, em que o escritor conversou com cerca de 170 alunos sobre a sua obra e o seu ofício. O catalão Joan Morales Alcudia foi um dos presentes. Treze anos depois, o professor espanhol decidiu compartilhar aquela experiência com os demais leitores e admiradores de Saramago. Escutou com atenção as fitas que guardava em casa e que registavam as palavras do Prémio Nobel de 1998, acrescentou ao material comentários e impressões suas, e publicou o livro Saramago por José Saramago (El Páramo, 2013). Morales escreveu para esta edição da Blimunda um texto em que recupera lembranças daqueles dias com o «professor» Saramago.
Tive a sorte de ser aluno no curso que José Saramago orientou no Palácio da Magdalena da Universidade Menéndez Pelayo de Santander no ano 2000. Éramos por volta de 170 os privilegiados que assistimos àquelas aulas. O título do curso era «José Saramago, os modos e os fins de sua escrita». Nele, José, durante quatro dias, em jornadas de manhã e de tarde, foi-nos desfiando os segredos de cada um dos seus romances. Transcorridos mais de treze anos sobre aquele curso, a memória e as anotações que fiz na época servir-me-ão agora para ativar as recordações de dias inesquecíveis.
Quando penso em Saramago no papel de professor, a primeira coisa que me vem à cabeça é a capacidade didática que tinha. Como conseguia enlaçar um discurso coerente, cheio de matizes, e no qual cabia quase tudo: desde a ironia mais fina até à indignação mais sentida. Um discurso que não precisava de anotação prévia para aparecer em sala de aula com total naturalidade e que, como ele mesmo nos confessou, era construído em torno do facto de «estar pensando em voz alta».
O Nobel era capaz de falar horas e horas e fechar o círculo da sua intervenção com a frase com que havia começado o discurso. Jamais vi alguém falar daquela maneira. Era uma sensação agradável, singular: como se estivesse a redescobrir o valor real da linguagem e das palavras. Uma multidão de emoções surgiram naquela sala onde Saramago nos foi debulhando a sua obra. Ideias e emoções que podíamos compartilhar no momento dos debates: «São doze menos um quarto. Agora vamos às conversas. Vamos conversar, já era hora. Eu não sei como orientar isso, mas... Não sei como se organiza isso, mas vamos a organizar-nos, claro, não há um microfone? Não há?»
Debates nos quais houve momentos para tudo: para rebater o fundamento da crença, para tentativas de pedantismo acompanhadas de sinais mal dissimulados de promoção pessoal, para o riso, para a reflexão... Mas, acima de tudo, para a dúvida. Saramago já nos havia alertado a respeito quando afirmou, nem bem iniciado o ateliê, que não sabemos para que nascemos: «À exceção, está claro, de um príncipe que, se não vem a República, nasceu para Rei, nasceu para ser Rei.»
No entanto, talvez nasçamos, sim, para dizer o que somos. Para que alguém nos escute. Para ficarmos fugazmente fixados na memória dos homens. Para ser um conto cuja única finalidade seja a de ir passando de geração em geração até desaparecer. Como dizia José em um dos seus escritos: somos contos de contos.
A minha vida no Palácio da Magdalena transcorreu, naqueles dias de verão, entre o diagnóstico certeiro e uma das mais lúcidas reflexões em torno do estado do mundo que alguma vez ouvi:
O que eu digo quando digo que «o homem não tem remédio», é que o homem não tem remédio na circunstância atual. Como vivemos, o que estamos fazendo com a vida. Não temos remédio porque o remédio ainda não foi encontrado. E eu penso que a única circunstância que poderá levar-nos a encontrar o remédio é o reconhecimento, não direi da totalidade dos seis bilhões mas de uma maioria de pessoas, de que para onde estamos a levar a Terra,o mundo, e a vida, chegaremos ao desastre. Desastre que já se anuncia, que já está por aí, mas que chegaremos ao desastre total.
Um consenso no qual, em palavras do próprio Saramago, os meios de comunicação também têm um papel muito importante a jogar:
Os meios, os meios, o que chamamos de meios... A televisão serve-nos todos os dias o nosso prato sangrento de um, dois, três ou quatro mortos e de tudo isso. E nós lamentamos muito, protestamos inclusive contra essa violência. Ou seja: «este mundo»... Mas aonde quero chegar é que há que se fazer algo mais. Há que fazer algo mais. E volto aos meios, que têm toda a responsabilidade do mundo, porque dão a notícia e ponto, nada mais. Pode ser que comentem em algum editorial que ninguém lerá. Mas uma postura didática, no sentido positivo, mais positivo que tenha dos meios... Os meios não têm de simplesmente dar a informação e deixar que cada um faça dela o que quiser. Têm que ter uma responsabilidade, ou duas: a responsabilidade da opinião, da informação, e a responsabilidade acrescida do dever de ter uma opinião sobre isso. Porque se os meios não dão o exemplo de ter uma opinião, a cidadania não encontra motivo para tê-la. Aprendemos com o que vemos. Aprende-se com o que está a acontecer. A aprendizagem faz-se sempre com o outro. É o outro que nos ensina por aquilo que está a fazer e pelo que sabe, ou pelo que soube. Se os jornais, a televisão, dizem: aqui está a informação, e pronto, a informação não basta. E tampouco quero que um jornal, uma televisão, me deem a opinião que tenho que ter. Não se trata disso. Mas isso não os isenta de ter e de expressar uma opinião. Porque só no confronto de opiniões é que podemos ter uma ideia mais ou menos próxima do que sabemos, de que sabemos em que mundo estamos, e que, mais ou menos, sabemos que vida é esta que levamos.
No meio disso, e enquanto se gerava tal consenso, a maioria dos ali presentes gastávamos o nosso tempo buscando a felicidade:
– Perdão que o interrompa, mas somos uma história de nós mesmos, da pequena infância, das frustrações da vida, que às vezes impedem que cheguemos a ser felizes.
– Às vezes impedem o quê?
– Às vezes impedem que sejamos felizes. Perguntei no ano passado sobre isso, sobre a felicidade...
– Bom, você quer uma vida sem frustrações?
– Não, eu tenho muitas. Tenho muitas frustrações, por isso é que lhe perguntei precisamente sobre a felicidade. Ao senhor, que é um Prémio Nobel. Eu não tenho uma resposta.
– Não, mas veja só... Eu repito o que disse antes, para mim a palavra felicidade é uma palavra vazia de conteúdo. Vazia de conteúdo. O que é isso? Que é isso de felicidade? E quanto tempo dura? E em que circunstâncias? E com quem? E para quê? E como? Sim, quando eu digo que em lugar de felicidade eu prefiro dizer harmonia, harmonia onde o conflito pode estar, é uma harmonia que nasce... Olhe só, vamos ver. Se eu digo que estou mal, que estou mal no mundo onde estou a viver é difícil dizer: mas como é que você, se se sente mal no mundo em que vive, pode falar de harmonia? Eu diria que é outro tipo de relação. Eu vivo em harmonia com a minha ideia de mundo, com uma ideia de humanidade, com uma ideia de consciência que talvez um dia possa realizar-se, ou que talvez não se venha a realizar, porque é um equívoco meu. Mas a felicidade... eu às vezes digo que não resiste a uma dor de dentes. Pois, frustrações... disso a vida está cheia, não?
Também me recordo como a sala se enchia de silêncio, especialmente de cada vez que entrava Deus em cena:
Mas eu creio que a invenção de deus, que é uma invenção humana, é realmente algo verdadeiramente assombroso. É que chegámos a inventar deus! É que não só inventámos a televisão – que é uma espécie de deus, claro: um deus um pouquinho mais pequeno, um pouquinho mais pequeno. Por causa da morte natural, pelo facto de que não podemos viver mais do que o que temos que viver, e que essa vida eterna não é a do corpo. Será outra coisa, ou seria outra coisa. Mas nós somos o corpo. Somos o corpo. Que o corpo seja o habitáculo da alma, bom, tudo bem, de acordo. É-me indiferente. Mas sem o corpo, não chegamos a lugar nenhum. Inclusive, o cérebro, onde está? É material, não é espírito. Porque se levássemos dentro da cabeça um espírito no lugar dessa coisa um pouquinho repugnante que é o cérebro humano, essa coisa cinza, mole, que não sabemos por que funciona, se no lugar disso levássemos um espírito, se a cabeça fosse oca, se fosse oca, mas tivesse dentro um espírito imaterial, porque como espírito que era... Ou seja, pois sim: tudo está muito claro! Não, é tudo química! É tudo química!
Foram dias intensos aqueles em Santander. Dias a partir dos quais a química dos nossos cérebros, provavelmente, não voltou a ser a mesma. Uma química que, no meu caso pessoal, acabou por se transformar em paixão. Nesse sentido, Saramago converteu-se, para mim, além de um referente ético imprescindível, nesse farol tão necessário para sair das trevas que nós, seres humanos, fomos criando ao longo da história. Procuremos na sua obra, e encontraremos os caminhos para abandonar o reino da escuridão. Pessoalmente posso compartilhar o seu pensamento, mas sempre me parecerá insuficiente diante do que José Saramago me ofereceu naquele verão do ano 2000. Muitíssimo obrigado por tudo, Don José."
Também pode ser consultado anterior post, sobre Joan Morales Alcudia, aqui
«Recuperação do momento do lançamento da obra
"Saramago por José Saramago" de Joan Morales Alcúcia»
A notícia pode ser consultada e lida, através do site "La Voz de Lanzarote", aqui