Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Não sabemos se dentro de 50 anos Portugal ainda existe

«Estamos no fim de uma civilização e num processo de passagem de um tempo com raízes na Revolução  Francesa, no Iluminismo, na Enciclopédia, que tende a desaparecer. 
Não sei o que virá.
Como será a humanidade daqui a 50 anos?»

(citação, recolhida de "A Estátua e a Pedra", Fundação José Saramago, página 48)





Adelino Gomes entrevista José Saramago
11 de Novembro de 2005

Aqui, o relato da entrevista, do jornal Público, que foi impressa para o suplemento Mil Folhas, em http://www.publico.pt/culturaipsilon/jornal/nao-sabemos-se-dentro-de-50-anos-portugal-ainda-existe-48253


"Não sabemos se dentro de 50 anos Portugal ainda existe"

"Saramago acha que As Intermitências da Morte é a sua melhor obra depois do Nobel. Bárbara Guimarães, a mulher e tradutora, Pilar, e a actriz brasileira Torloni estarão entre os leitores, ao vivo, de trechos do livro, no lançamento simultâneo de oito edições, logo à tarde, em Lisboa. A anteceder uma entrevista amanhã, no Mil Folhas, o escritor fala ao PÚBLICO sobre a sua escrita, antes e depois de 1998, das multidões que o aclamam mundo fora, e da relação com Portugal, país que considera viver neste momento em "estado de cinzas". 

A palavra e a música marcam o lançamento de As Intermitências da Morte, de José Saramago, ao fim da tarde de hoje, em Lisboa. Por entre frases do autor e música de Bach, essencial na trama do romance, editores, tradutores e amigos celebrarão o lançamento simultâneo das edições portuguesa, espanhola, mexicana, argentina, colombiana, catalã, brasileira e italiana do último livro do Prémio Nobel da Literatura de 1998, numa cerimónia programada para as 18h30, no Teatro de S. Carlos. José Saramago será o orador único da sessão, em que, se cumprir a regra que ele mesmo enuncia nesta entrevista ao PÚBLICO, reservará "10 minutos para a obra e mais 50, ou uma hora para falar de outras coisas". 
Bárbara Guimarães, a mulher e tradutora, Pilar del Rio - apresentadoras da sessão, em português e espanhol -, e a actriz brasileira Christiane Torloni figuram entre os leitores, ao vivo, de trechos do livro ("Com o seu vestido novo comprado ontem numa loja do centro, a morte assiste ao concerto", lerá Bárbara, iniciando uma sequência que continua noutras línguas, interpretada por cada um dos editores, e termina no português brasileiro de Torloni: "Quando o violoncelista se virou para o camarote, ela, a mulher, já não estava. Assim é a vida, murmurou.").
A violoncelista Irene Lima tocará o prelúdio da suite n.º 6 em ré maior BWV 1012, de Johann Sebastian Bach. O trecho musical escolhido desempenha um papel decisivo na obra, que se desenvolve a partir da ideia de que um dia a população de um determinado país com dez milhões de habitantes e um regime de monarquia constitucional se apercebe de que deixou de morrer. 
A trama do romance desemboca numa surpreendente relação entre a morte - que assume a figura de uma mulher atraente - e o violoncelista de uma orquestra, cujo falecimento tem vindo a ser sucessivamente adiado porque a carta com a data da sua morte é, misteriosa e sistematicamente, devolvida ao remetente: a própria morte. 

(Matt Haimovitz performs the Prelude of J.S.Bach's Suite for Solo Cello no. 6 in D major)


A 1.ª edição do livro, já à venda, tem uma tiragem de cem mil exemplares (número semelhante ao do seu romance anterior, Ensaio sobre a Lucidez, que vai em segunda edição, de vinte mil exemplares).
Nesta primeira parte da entrevista (a segunda preencherá parte da edição de amanhã do suplemento Mil Folhas), Saramago rejeita a ideia de estar a ser vítima do "mal do Nobel"; defende que tem um público muito próprio, em todo o mundo, ainda que admita que também ele não consegue ser completamente profeta na sua terra; e mostra-se preocupado com a capacidade de sobrevivência de Portugal enquanto país independente. "Num tempo de desconcerto, de mudança de valores rapidíssima, perdemos o pé, não sabemos para onde vamos", lamenta, citando a "apagada e vil tristeza" camoniana.

PÚBLICO - Na sua lista pessoal em que lugar coloca este seu último livro?
JOSÉ SARAMAGO - Não sei. Acho simplesmente que é um bom livro...

Tem-lhe sido mais fácil ou mais difícil escrever livros depois do Nobel? Isto é: sente o peso do prémio ou sente-se agora livre para fazer o que lhe apetece?
Continuo a sentir o medo da exigência. Os livros que escrevi depois penso que reflectem que o autor está tão preocupado com a qualidade daquilo agora como estaria antes. Não sinto o peso do Nobel. Escrevo como se não o tivesse tido. Escrevo como se não tivesse que provar que o mereci. Escrevo como escreveria provavelmente se o não tivesse tido.

Os livros vendem agora pelo que valem ou, digamos, por um preço que o autor tem no mercado livreiro depois do Nobel?
Para alguns leitores, sim, o Nobel terá alguma influência. Mas tenho muitos leitores que têm a preocupação de me dizer: "Olhe que eu já o leio desde antes do Nobel!..."

E não sente a chamada "maldição do Nobel"? O Homem Duplicado, por exemplo, não foi o êxito que esperaria. Depois do Nobel, acha que escreveu alguma obra-prima ao nível dos grandes livros que fizeram o seu nome?
Não me cabe a mim classificar os meus livros de obras-primas. Mas vamos lá ver: O Homem Duplicado - diga-se, com mais ou menos boa recepção do público - é um romance importante. Tanto do ponto de vista da expressão como do que propõe. A Caverna é talvez um livro demasiado longo, podia ter tido menos 50 páginas, ficava mais condensado. Mas põe, embora talvez não da maneira mais eficaz, uma questão que é de hoje (porque eu escrevo fábulas mas estou a falar do dia de hoje): a obsessão da segurança e do que é provável que aconteça no futuro - os centros comerciais deixarem de ser um mero conjunto de estabelecimentos para vender coisas e que se convertam em microcosmos onde se pode viver. É provável que isso venha a acontecer. Considero que o Ensaio sobre a Lucidez é uma obra importantíssima ...

... pelo menos polémica foi... 
.... e que talvez As Intermitências da Morte sejam o melhor desses quatro romances.
É verdade que alguns tradutores estão a ter dificuldades em traduzir a palavra "intermitências"?
Na Alemanha, por exemplo, dizem eles que não há maneira de dizer "as intermitências da morte". Se eu lhes digo, por exemplo, que os automóveis têm uma luz intermitente, eles respondem-me que "luz intermitente" podem traduzir, não podem é dizer em alemão "as intermitências da morte". Ao que eu respondo: "Oh que língua maravilhosa temos nós, que é capaz de dizer coisas que as outras línguas não são capazes!..."

Multidões lá fora, frieza oficial aqui

Nos intervalos dos livros [desde o Ensaio sobre a Lucidez, há um ano e meio, publicou Don Giovanni ou o Dissoluto e agora este], anda pelo mundo. Num corrupio. 
Antes tinha estado no Canadá, onde me fizeram doutor honoris causa pela Universidade de Alberta...

Pela trigésima vez, não?...
São 33 ou 34 doutoramentos. Fomos a Cuba, Costa Rica, El Salvador, Estocolmo, para outro doutoramento...

O que o faz mover? Evidentemente que são os convites. Mas o que o leva a aceitá-los? O gosto da viagem, o prazer dos aplausos, ou uma mensagem que tem para transmitir?
Só aceito alguns convites. Se os aceitasse todos não escrevia nem uma palavra. Aplausos? Toda a gente gosta de carinhos e de mimos. Em Belo Horizonte, onde estive agora a apresentar este livro, havia 1700 pessoas. O que significava o auditório completamente cheio. Em S. Paulo eram mil, sem contar as pessoas que ficaram fora. Viajo porque há congressos em que me interessa estar; para apresentar livros (de dois em dois anos); e por muitas razões que não têm nada a ver com literatura.

Como por exemplo?
Empenhamentos sociais; políticos, nalgum caso. Quando apresento um livro, digo sempre: contem com 10 minutos para o livro e com mais 50, ou uma hora para falar de outras coisas.
Falou nesses milhares de pessoas que o procuram para o ouvir, por exemplo na América Latina. 

Também aqui ao lado em Espanha. Mas em Portugal não é assim. Por não ser profeta na própria terra?
Aqui, se eu apresento um livro em qualquer parte, a sala estará cheia.

Não das multidões que acorrem nos outros países.
Não são realmente multidões. Talvez porque não há esse hábito.

Não se sente menos amado na sua terra?
Não, que ideia! As Intermitências da Morte saem com uma tiragem de cem mil exemplares. E haverá uma segunda e uma terceira edições, estou seguro disso. Não me sinto menos amado. As pessoas param-me na rua. O que há é um sector oficial que realmente não tem muita simpatia por mim. E tem-no manifestado, ainda que agora já não tanto.

Quais as diferenças que encontra nesses públicos que o vão ouvir? Ou há um público global?
Creio que há um público meu.

O público "Saramago"?
O Homem Duplicado foi apresentado em Buenos Aires, no Teatro Colón, que tem 4100 lugares. Estava cheio até ao galinheiro. E cá fora dizia-se que mil pessoas não tinham podido entrar. Isto surpreende-me, porque, como às vezes digo, eu só falo, não danço. O que me impressiona mais é a juventude - a parte da juventude que está nesse meu público.

O que diz a essas pessoas, na Argentina, é o mesmo que diz aqui em Portugal ou nos países nórdicos?
Na maior parte. 

E a recepção é a mesma?
É.

O jornal El Pais traz frequentes notícias sobre intervenções suas perante plateias de intelectuais, de académicos, de políticos, em que se regista um grande assentimento em relação ao que diz. Em Portugal isso não acontece.
Não tem o mesmo impacto, efectivamente. Ninguém é profeta na sua terra, mas também eu não quero ser isso. Provavelmente terá a ver com o público. E também com o acolhimento dos meios de comunicação.

Aí estamos na pescadinha de rabo na boca; ou a procurar ver se foi o ovo se a galinha quem nasceu primeiro, sem a gente saber quem é o ovo e quem é a galinha...
Mas aquilo que eu vejo em alguns países é que actos destes são notícia. E aqui não é.

Tendo em conta esses públicos que o vão ouvir, qual é o estado do mundo? O que é preocupa as pessoas, hoje?
As preocupações que eu expresso, julgo que no fundo são as preocupações que as pessoas têm. Vão lá ouvir em voz alta as suas próprias preocupações, talvez. Como umas tantas coisas que eu digo parecem razoáveis, elas deveriam levar a um determinado tipo de acção. Mas também tenho que entender que ninguém está disposto, depois de eu ter dito umas tantas coisas....

 ... a partir de ali para a acção...
Isso aconteceu alguma vez na história, mas não é o caso.

Portugal em tom menor 

As pessoas dizem que Portugal nunca esteve tão mal como hoje. É um momento de descrença generalizada. É esse também o seu sentimento?
[Longa pausa] O Guerra Junqueiro escreveu aquele livro - Finis Patriae. A sensação que eu tenho é a de um processo de decadência com alguns sobressaltos. A proclamação da República foi um deles; o 25 de Abril foi outro. Ele parece que mostra a nossa incapacidade de manter alta a nossa tenção de viver. Fogos de palha, súbitas erupções de entusiasmo (aquilo a que chamamos entusiasmo) popular - tudo isto se converte, com mais ou menos rapidez, em cinzas. E aqui estamos num tempo de cinzas. Não vejo que haja um debate de ideias. Digamos que a política é discutida em termos de mera cozinha gastronómica. Faltam figuras, faltam pessoas. Em algumas épocas, podíamos citar nomes de grandes figuras nacionais. Hoje é muito difícil. Também não quero cair na tentação de necessidade dos líderes, dos homens exemplares. Não é isso. Quando se publicou O Ano da Morte de Ricardo Reis [1984], eu disse que era uma tentativa para compreender a doença portuguesa. Citando uma vez mais o épico, não são gratuitas aquelas palavras da "apagada e civil tristeza". Continua a haver algo disso na nossa mentalidade. Num tempo de desconcerto, de mudança de valores rapidíssima, perdemos o pé, não sabemos para onde vamos. Não temos a certeza se daqui por 50 anos este país existe.

E nisso somos diferentes dos espanhóis, que vivem em grande euforia, até económica.
Certo. É um país que, com todos os conflitos e que são sérios, como a questão das autonomias e das aspirações mais ou menos independentistas, está vivo, mexe-se. Aqui não. É tudo em tom menor. Não sei o que aconteceria se tivéssemos problemas semelhantes aos de lá. Não sei se teríamos arcaboiço para confrontarmos seriamente questões como essas. 

"O Homem Duplicado" pelas palavras questionadas de José Saramago

Esta obra apresenta-se de uma complexidade filosófica reflexiva assaz assustadora e perplexa. Saramago, refere em "A Estátua e a Pedra", a propósito de "O Homem Duplicado", que continua a discussão sobre o papel do "outro", do "eu e o outro". Esse é o propósito e o fio condutor delineado e seguido. 
Porém, com a maturação das diversas leituras e incursões que fiz nesta obra, permito-me discorrer o seguinte, se bem que, com ou sem autoridade, suponho que com menos, mas senti este fervor de forma muito particular.
Para além do que o punho de Saramago discorreu e produziu, pergunto se poderei ter a possibilidade de fazer duas leituras diferentes? 
Se a mesma obra, pode ser lida, do ponto de vista do professor ou sob o prisma do actor? 
E, neste caso, ao mesmo tempo, a causa e a consequência que isto produz ou afecta o "outro observado" (dependendo da perspectiva, via Tertuliano ou via António Claro), que possa levar a uma justificação de um desenlace final diferente. 
Tertuliano Máximo Afonso, tem conhecimento da existência de um "seu outro", ou sua cópia. Com uma ânsia e incerteza de decisões, vai à procura de uma resposta para o fenómeno, mas não questiona sobre as repercussões que isto terá, ao dar-se a conhecer no seio da outra família. Quais as repercussões da sua acção, versus, a incerteza de não ter uma resposta que lhe satisfaça a curiosidade, e que assim lhe possa diminuir a identidade.
Em contraponto, e na visão de António Claro e da sua mulher, tiveram a possibilidade de não procurar mais, de não buscar a resolução deste episódio, quando questionaram - "o que será de nós quando descobrirmos o que tivermos de descobrir?" Aqui, e ao perseguirem, cada um, per si, tentaram satisfazer a sua curiosidade (particular em conflito com a geral), contrariando o primado da confiança, que o casal deveria ter como pilar principal da relação. 
Tudo se desmorona.
Tudo se revoluciona.
Tudo se precipita.
Alguém desencadeou, alguém continuou.
Ao entrarmos neste drama, como se de uma porta se tratasse e ao observámos todo o cenário (aqui imagino cada um dos leitores como se fosse uma nuvem pairando sobre o holofotes da acção), não é possível deixar de vestir uma, ou, a pele do outro. Ou seja, ao invés dos habituais consensos, em que existe um elemento diferenciador entre a causa e o efeito, que produzirá um bom ou um mau personagem; segundo o gosto, simpatia, ou intuição baseada nos próprios princípios do bem e do mal; aqui, dizia, é possível viver a razão de Tertuliano, ou a razão de António Claro. 
Em "O Homem Duplicado", sinto os acontecimentos afunilarem-se em duas direcções, visões possíveis ou planos. Como é possível, adjectivar o afunilamento que formula a razão de um sentido, ao inferir-se a possibilidade de duas vias?
A história pode ser contada, lida e vivida sob o prisma e razão de Tertuliano Máximo Afonso - este confrontado com uma realidade inesperada e que lhe irá testar a capacidade ou poder de decisão para a buscar/explicar. A outra perspectiva, a que circunscreve a vida de um casal estável, onde a bomba despoletada por Tertuliano Máximo Afonso, fará apresentar António Claro como cópia, numa visão possivelmente redutora, ladeado por uma mulher insegura (com a relação original versus cópia).
Eis, que quem chegou à descoberta em segundo lugar, é rotulado de cópia ou se coloca nessa posição. A visão é aterradora, o meu "eu" não é original, criado do ventre de uma mãe... serei um produto fabricado em série? 
António Claro e a esposa são confrontados, e ao principio interpretam como uma suposta brincadeira, vêm-se decididamente a caminhar para a imersão num conflito de verdades e mentiras, despoletado por um telefonema. Este telefonema, e o seguinte irão mudar para sempre a vida destes dois personagens. Poderiam ter parado. Poderiam ter ignorado. Poderiam racionalmente ter tomado a decisão de não caminhar em direcção  ao um caminho desconhecido. Mas não. A consciência do "eu social", de quem sou, ou do poder que posso exercer sobre o "outro" com quem interajo, abriu as portas do caos e da necessidade irracional de buscar a verdade. 
António Claro não consegue fugir à curiosidade, e depois, à tortura de ter um, não semelhante, mas um igual a si até ao ínfimo detalhe. O "outro" que se lhe apresentou, que se intrometeu na pacatez da sua vida, que destruiu o seu lar, deverá ser apagado da face da terra. Primeiro que existe um "outro", o que não se entende à luz da lei da vida, depois, por vingança, por ter ousado intrometer-se num castelo que não era o seu. 
Assim, li eu, sob a visão interrogativa de Tertuliano Máximo Afonso. 
Assim, também li, sob a visão reactiva de António Claro.
Para finalizar, deixo a transcrição do último capítulo da obra, justificando a forma como comecei: "Esta obra apresenta-se de uma complexidade filosófica reflexiva assaz assustadora e perplexa."
Seria Tertuliano Máximo Afonso, o original?



(Tertuliano Máximo Afonso, professor de história, vive o drama... Quem é ele? E "eu"?)

(António Claro, actor de cinema, vive o drama de conhecer o seu outro "eu" - Como é possível?)

"O enterro de António Claro foi daí a três dias. Helena e a mãe de Tertuliano
Máximo Afonso tinham ido representar os seus papéis, uma a prantear um filho que
não era seu, outra a fingir que o morto lhe era desconhecido. Ele havia ficado em
casa, a ler o livro sobre as antigas civilizações mesopotâmicas, capítulo dos arameus.
O telefone tocou. Sem pensar que poderia ser algum dos seus novos pais ou irmãos,
Tertuliano Máximo Afonso levantou o auscultador e disse, Estou. Do outro lado uma
voz igual à sua exclamou, Até que enfim. Tertuliano Máximo Afonso estremeceu,
nesta mesma cadeira deveria ter estado sentado António Claro na noite em que lhe
telefonou. Agora a conversação vai repetir-se, o tempo arrependeu-se e voltou para
trás. É o senhor Daniel Santa-Clara, perguntou a voz, Sim, sou eu, Andava há
semanas à sua procura, mas finalmente encontrei-o, Que deseja, Gostaria de me
encontrar pessoalmente consigo, Para quê, Deve ter reparado que as nossas vozes
são iguais, Parece-me notar uma certa semelhança, Semelhança, não, igualdade,
Como queira, Não é só nas vozes que somos parecidos, Não entendo, Qualquer
pessoa que nos visse juntos seria capaz de jurar que somos gémeos, Gémeos, Mais
que gémeos, iguais, Iguais, como, Iguais, simplesmente iguais, Acabemos com esta
conversa, tenho que fazer, Quer dizer que não acredita em mim, Não acredito em
impossíveis, Tem dois sinais no antebraço direito, um ao lado do outro, Tenho, Eu
também, Isso não prova nada, Tem uma cicatriz debaixo da rótula esquerda, Sim, Eu
também. Tertuliano Máximo Afonso respirou fundo, depois perguntou, Onde está,
Numa cabina telefónica não muito longe da sua casa, E onde posso encontrá-lo, Terá
de ser num sítio isolado, sem testemunhas, Evidentemente, não somos quaisquer
fenómenos de feira. A voz do outro lado sugeriu um parque na periferia da cidade e
Tertuliano Máximo Afonso disse que estava de acordo, Mas os carros não podem
entrar, observou, Melhor assim, disse a voz, É essa também a minha opinião, Há
uma parte de bosque depois do terceiro lago, espero-o aí, Talvez eu chegue primeiro,
Quando, Agora mesmo, dentro de uma hora, Muito bem, Muito bem, repetiu
Tertuliano Máximo Afonso pousando o telefone. Puxou uma folha de papel e
escreveu sem assinar, Voltarei. Depois foi ao quarto, abriu a gaveta onde estava a
pistola. Introduziu o carregador na coronha e transferiu um cartucho para a câmara.
Mudou de roupa, camisa lavada, gravata, calças, casaco, os sapatos melhores."

Último capítulo, assim termina recomeçando... quiça por mais vezes




(...) "O Homem Duplicado", uma história de dois homens em tudo idênticos que apresenta, uma vez mais, um tema recorrente no meu trabalho: o outro. Com a diferença de que o outro é, no aspecto físico, um mesmo, que o todo de um se repete no outro, como se estivessem diante de um espelho diferente dos espelhos que utilizamos. Aqui, o meu lado direito não é o lado esquerdo do espelho. Acreditamos estar a viver uma alucinação, a pior de todas, porque a pessoa que temos à nossa frente, sendo outro, e também a que nós mesmo somos." (...)

em, "A Estátua e a Pedra"
Fundação José Saramago
Página 41

(O Homem Duplicado - Trailer oficial)


Na Bibliografia activa, na página da Fundação José Saramago, uma breve menção à obra.

Tertuliano Máximo Afonso, professor de História no ensino secundário, «vive só e aborrece-se», «esteve casado e não se lembra do que o levou ao matrimónio, divorciou-se e agora não quer nem lembrar-se dos motivos por que se separou», à cadeira de História «vê-a ele desde há muito tempo como uma fadiga sem sentido e um começo sem fim». Uma noite, em casa, ao rever um filme na televisão, «levantou-se da cadeira, ajoelhou-se diante do televisor, a cara tão perto do ecrã quanto lhe permitia a visão, Sou eu, disse, e outra vez sentiu que se lhe eriçavam os pêlos do corpo»Depois desta inesperada descoberta, de um homem exactamente igual a si, Tertuliano Máximo Afonso, o que vive só e se aborrece, parte à descoberta desse outro homem. A empolgante história dessa busca, as surpreendentes circunstâncias do encontro, o seu dramático desfecho, constituem o corpo deste novo romance de José Saramago.