Caminho
Os Apontamentos - Crónicas políticas
2.ª Edição - Abril 1990
O branco em discussão
22 de Abril de 1975
Este branco que se discute não é o vinho a que esse nome damos, nem é já (felizmente) o português que por terras coloniais andava como colonizador e opressor. O motivo da polémica que, em todos os tons, lavra de Norte a Sul do País é o denominado voto em branco. Dizem uns (di-lo também a Comissão Nacional de Eleições) que o voto em branco é a resposta cívica daqueles eleitores que, conscientes do seu dever de votar, estão igualmente conscientes de que o esclarecimento político colhido ao longo deste ano não foi, afinal, tão claro como todos desejaríamos. Replicam outros que aconselhar o voto em branco (naquele caso) é pouco menos que insultar o eleitor, e que os 365 dias decorridos foram bastantes e sobejantes para que um povo que nunca exerceu a política se transformasse em perspicaz aferidor destes nada menos que doze partidos concorrentes.
Se traçássemos um risco vertical na página e escrevêssemos de um lado e do outro, isto é, à esquerda e à direita, os partidos, grupos e movimentos que preconizam ou não o voto em branco para o eleitor indeciso, veríamos que, com pouquíssimas excepções, a distribuição se faria segundo (precisamente) a tradicional divisão entre direita e esquerda, englobando a primeira o centro, como na prática política é uso acontecer. Aliás, ao longo destas últimas semanas não houve quem não dissesse o que pensava sobre o assunto, com maior ou menor sobriedade e em alguns casos com tanta exaltação que faz pensar serem mais importantes, no entendimento de alguns, os votos em branco do que os assinalados com a cruzinha recomendada.
Quanto a nós, toda esta questão assenta num equívoco propositado e que propositadamente se disfarça. Tudo se resume à contabilidade dos votos, à cegueira, à obsessão de querer ter mais votos do que o vizinho, parceiro ou inimigo, mesmo que isso se consiga à custa das angústias do eleitor inseguro, muitas centenas de milhares de vezes analfabeto, no interior da guarita e perante um papel impresso que é, para tanta gente, uma charada indecifrável. Em tudo se admite que uma pessoa interrogada responda «não sei», e isto é honesto e respeitável. Mas, quando se trata de votar, há quem pense que esta resposta não deveria ser permitida... Provavelmente, esse tão categórico cidadão ficaria indignado se, procurando orientar-se em lugar desconhecido, recebesse uma indicação de acaso da parte de alguém que não tivesse a coragem ou a simples honradez de dizer «não sei»... Não faltariam aí protestos contra a falta de civismo do mau encaminhador.
É preciso que fique esclarecido que o voto em branco ou inutilizado com um traço também é voto. É voto que deve merecer tanto respeito como aquele que se exprime firmemente por uma opção partidária. O voto em branco é o voto de quem não sabe e o afirma. O voto em branco é uma forma de protestar contra quarenta e oito anos de fascismo que, eles sim, são os verdadeiros responsáveis por esta discussão tão pouco clara, em que se procura pescar votos como em águas turvas se pescam peixes cegos...
É deveras interessante, observar e interpretar o contexto em que uma crónica, realizada em condições num país em urgência civil, acabado de sair de meio século de fascismo, que dominou um povo pobre e com recursos de todas as ordens nada abundantes.
Este povo, saído da guerra colonial e do abismo fascista, acorda num outro abismo. Decidir autonomamente, por si e para os seus, com todas as vicissitudes que os supostos novos ventos de liberdade e democracia poderiam trazer.
Nesta crónica, realço a interpretação do que era aos olhos de Saramago o valor do voto em branco. Tão legitimo como o voto partidário ou o nulo, este será também a expressão de um sinal ou sentimento - «O voto em branco é o voto de quem não sabe e o afirma.»
O "Ensaio sobre a Lucidez", aborda o mesmo voto em branco. 30 anos depois, da crónica publicada no Diário de Notícias, e compilada no livro de Crónicas Políticas - Os Apontamentos, o romance transmite uma outra perspectiva do acto - Ir, votar, mas de forma supostamente diferente, não previsível.
Aqui, colectivamente, o povo de uma capital decide votar maioritariamente em branco. Não é o "Eu", que pode querer votar como um acto de democracia e de direitos conquistados, mas o "Povo", como entidade colectiva que toma uma atitude contra o sistema instituído.
Em "O Ensaio sobre a Lucidez", a história mostrará o acto colectivo (do povo), que o confirma em novo acto eleitoral, e um Governos com as suas estruturas de decisão que julgam, tal qual um tribunal de costumes, abandonar a capital e deixar a população à sua mercê.
Esta população que votou em consciência, abandona e liberta-se do sistema de poder instituído, ao permanecer na capital. A fuga dos governantes torna-se no momento épico das consequências do voto em branco.
Caminho - 2004 - 2.ª edição
Informação à obra, no sita da Fundação José Saramago - Bibliografia activa - aqui http://www.josesaramago.org/ensaio-sobre-lucidez-2004/
Num país indeterminado decorre, com toda a normalidade, um processo eleitoral. No final do dia, contados os votos, verifica-se que na capital cerca de 70% dos eleitores votaram branco. Repetidas as eleições no domingo seguinte, o número de votos brancos ultrapassa os 80%. Receoso e desconfiado, o governo, em vez de se interrogar sobre os motivos que terão os eleitores para votar branco, decide desencadear uma vasta operação policial para descobrir qual o foco infeccioso que está a minar a sua base política e eliminá-lo. E é assim que se desencadeia um processo de ruptura violenta entre o poder político e o povo, cujos interesses aquele deve supostamente servir e não afrontar.Ensaio sobre a Lucidez, o romance mais recente de José Saramago, constitui uma representação realista e dramática da grande questão das democracias no mundo de hoje: serão elas verdadeiramente democráticas? Representarão nelas os cidadãos, os eleitores, um papel real, e não apenas meramente formal?