Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Arranjo de Soares Feitosa sobre excerto de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" - "Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora!"

José Saramago "Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora!"

Arranjo de Soares Feitosa

Link para consulta, 
em http://www.jornaldepoesia.jor.br/1saramago8.html


"Versificação", a partir do ritmo cardíaco e do batimento respiratório (uma "viagem", como se, entre os olhos e o ouvido médio) de um texto de Saramago, in O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Companhia das Letras, 31ª reimpressão, páginas 398/399, sem nenhuma alteração a mais ou a menos que a mera arrumação em versos e estrofes. Nem preciso mencionar que este texto em Saramago (aliás, o Evangelho inteiro) é um bloco compacto, com mínimas "cesuras" por vírgulas e nada mais.
Prosa e poesia seriam, assim sem mais nem menos, a 2001 mesma coisa? Sim e não, aliás, sim... desde quê. E por favor bote muitos desdes-quês nessa história. De fato, é possível "metrificar" Euclices da Cunha, Guimarães Rosa, José de Alencar, Clarice Lispector e não muito mais que uns cinco gatos pingados. Da mesma forma, excelente "prosa" em... Álvaro de Campos. É só tentar... desde quê."

Soares Feitosa
Fortaleza, CE, noite alta, 5.5.2003


"Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora!"

"Vem aqui, Tomé,
vem comigo até a borda da água,
vem ver-me fazer uns pássaros
com esta lama que colho...

Repara como é tão fácil,
formo e modelo o corpo
e as asas;
afeiçoo a forma da cabeça
e do bico; engasto estas pedrinhas
que são os olhos;
ajeito as penas compridas
da cauda;
equilibro-lhes as pernas e os dedos
e tendo feito
este, faço mais onze;
aqui os tens, um dois, três
quatro, cinco, seis, sete, oito,
nove, dez, onze, doze pássaros
de lama...

Imagina, até, se quiseres,
dar-lhes nomes: este é Simão,
este é Tiago, este é André, este é João, e este,
se não te importas, chamar-se-á
Tomé.

Quanto aos outros vamos esperar
que os nomes apareçam;
os nomes, muitas vezes, atrasam-se
no caminho, chegam
mais tarde...

E agora vê como faço — lanço esta rede
por cima das avezinhas
para que elas não possam fugir, os pássaros..., se
não temos cuidado.

Queres dizer-me que se esta rede
for levantada os pássaros fogem?
Esta é a prova com que querias
convencer-me?

Sim e não!

Como, sim e não?

A melhor prova, mas essa
não é de mim que depende, seria
não levantares tu a rede e acreditares
que os pássaros fugiriam se a levantasses.

São de barro, não podem fugir.

Experimenta! Também Adão,
nosso primeiro pai, foi de barro e tu
descendes dele.

A Adão deu-lhe vida Deus!

Não duvides mais, Tomé! Levanta a rede, eu sou
o Filho de Deus.

Assim o quiseste, assim o terás,
estes pássaros não voarão!

Com um movimento
rápido, Tomé levantou
a rede, e os pássaros,
livres, levantaram vôo, chilreando,
duas voltas
sobre a multidão maravilhada
e desapareceram no espaço.

Disse Jesus:
Olha, Tomé, o teu pássaro
foi-se embora.

E Tomé respondeu:
Não. Senhor, está aqui ajoelhado a teus pés,
sou eu." 



"O sagrado e o romance em O evangelho segundo Jesus Cristo" - Ensaio da autoria de João Vianney Cavalcanti Nuto

Este ensaio é mencionado por João Céu e Silva, em "Uma longa viagem com José Saramago" - Porto Editora, página 258, a propósito da temática constante na obra "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", onde o "belo" se entrecruza e caminha em paralelo com as "heresias".
O ensaio de João Vianney Nuto, é um interessante exercício sobre esta temática.

Albrecht Dürer, Crucifixion 
Imagem retratada em "O Evangelho Segundo Jesus Cristo"

Aqui, via Wikipédia, link para consulta do artista

"Albrecht Dürer (Nuremberga, 21 de Maio de 1471 — Nuremberga, 6 de Abril de 1528) foi um gravador, pintor, ilustrador, matemático e teórico de arte alemão e, provavelmente, o mais famoso artista do Renascimento nórdico, tendo influenciado artistas do século XVI no seu país e nos Países Baixos. A sua maestria como pintor foi o resultado de um trabalho árduo e, no campo das artes gráficas, não tinha rival. As suas xilogravuras, consideradas revolucionárias são ainda marcadas pelo estilo gótico. É considerado como o primeiro grande mestre da técnica da aguarela, principalmente no que diz respeito à representação de paisagens. Os seus interesses, no espírito humanista do Renascimento, abrangiam ainda outros campos, como a geografia, a arquitectura, a geometria e a fortificação.
Conseguiu chamar a atenção do imperador Maximiliano I para o seu trabalho, tendo sido por ele nomeado pintor da corte em 1512. Viveu, provavelmente, duas vezes na Itália em adulto. Em 1520, depois da morte do imperador, partiu para os Países Baixos, visitou muitas das cidades do norte e conheceu pintores e homens de letras, como Erasmo de Roterdão. Nos seus últimos anos, em Nuremberga, partindo de estudos de teoria da Arte italianos de autores que o antecederam, ocupou-se principalmente com a elaboração de tratados sobre a medida e proporções humanas, perspectiva e geometria como elementos estruturantes da obra de arte.
Chegou até nós uma quantidade apreciável de documentos pessoais e autobiográficos, como cartas, textos e desenhos acompanhados de anotações minuciosas que permitem uma boa compreensão da sua obra. Esta documentação é ainda enriquecida por diversas fontes que derivam da fama conquistada por Dürer numa idade relativamente jovem."



Ensaio da autoria de João Vianney Cavalcanti Nuto

Aqui, link para consulta geral, em http://www.jornaldepoesia.jor.br/joaovianney2.html

O sagrado e o romance em "O evangelho segundo Jesus Cristo"

O evangelho segundo Jesus Cristo, ao contrário dos romances “históricos” de Saramago, não se baseia propriamente na historiografia, mas no texto bíblico. Contudo não se pode negar que a relação entre o texto bíblico e a obra de José Saramago aborda problemas semelhantes àqueles apresentados pelo texto historiográfico em Memorial do Convento e História do Cerco de Lisboa. Que semelhanças pode haver entre um texto historiográfico e um texto religioso, como é o caso da Bíblia? Outra questão diz respeito aos traços estilísticos-ideológicos próprios de um discurso épico, no sentido de heróico, que é parodiado tanto no Memorial do convento como em História do cerco de Lisboa. Também encontramos esse tipo de paródia de certa concepção de herói em O evangelho segundo Jesus Cristo. Pretendemos, neste ensaio, analisar as semelhanças entre a abordagem do texto bíblico e do texto historiográfico por Saramago – e também a paródia do discurso heróico. Para isto, verificaremos as possíveis relações entre a Bíblia, a História e a epopéia, para, então, analisarmos os processos de estilização e paródia contidos no romance.
A primeira questão diz respeito à noção de verdade e de como alcançá-la, sendo a obra de Saramago bastante crítica quanto à noção de verdade absoluta. Antes de tudo, é preciso distinguir a concepção a relação da História e da memória com a verdade. A Bíblia não é um texto historiográfico; mas, assim como a epopéia, é um texto que tem função de memória. Assim como a História, na concepção de Aristóteles, a Bíblia conta “o que aconteceu”[1] , a verdade, ou mais precisamente, aquilo que é aceito como verdade pelos fiéis. Aqui encontramos tanto a semelhança como a diferença em relação à História. Se a História pretende contar “o que aconteceu” – ou pelo menos a reconstituição, ou interpretação, possível –, essa verdade, no ofício do historiador, precisa ser investigada[2]. Já no mito, no texto sacro e na epopéia (pelo menos em seus primórdios) a verdade é revelada. No caso do texto religioso a verdade é tanto mais verdadeira porque sagrada.
Lembremos, a propósito, que a narrativa bíblica, por ser um texto religioso, incorpora diversos mitos, dentre eles, a criação do mundo e do homem, a origem do mal, da dor e da morte; e o mito, como diz Eliade, é uma historia verdadeira. Somente quando temos consciência da formação do cânone bíblico, com exclusão dos chamados evangelhos apócrifos[3] , somente quando conhecemos os trabalhos de tradução e exegese por parte dos teólogos da Igreja, é que a Bíblia adquire um sentido histórico: o sentido de uma pesquisa sobre o passado; ou seja: somente quando pesquisamos é que a Bíblia se torna histórica. Não é esta, porém, a leitura que se faz da Bíblia pelos crentes, que é uma leitura de fé. Vista desta maneira, a narrativa bíblica não é história no sentido estrito do termo, mas, assim como o relato do cerco de Lisboa, não deixa de ser fonte de uma verdade com a qual Saramago polemiza.
Em O evangelho segundo Jesus Cristo, a noção de verdade absoluta é constantemente questionada e criticada, desde a interpretação da gravura de Albrecht Dürer, descrita na abertura do romance: “Lá atrás no mesmo campo onde os cavaleiros executam um último volteio, um homem afasta-se, virando ainda a cabeça para este lado. (...). Este homem, um dia, e depois para sempre, será vítima de uma calúnia, a de, por malícia ou escárnio, ter dado vinagre a Jesus ao pedir ele água, quando o certo foi ter-lhe dado da mistura que traz, vinagre e água, refresco dos mais soberanos para matar a sede, como ao tempo se sabia e praticava.”[4] O narrador faz questão de frisar que a Bíblia também não oferece os fatos “como eles foram”, mas versões, como naquela resposta ríspida de Jesus a Maria: “Um filho não trata desta maneira a mãe que lhe deu o ser, farão que o tempo, as distâncias e as vontades busquem para elas traduções, interpretações, versões, matizes que mitiguem a brutalidade e, se tal é possível, dêem o dito por não dito ou ponham a dizer o seu contrário, assim se escreverá no futuro que Jesus disse, (...) Deixa-me proceder, não é preciso que mo peças. (...).”[5] Mas, ao criticar as versões, tampouco se oferece o romance como um portador da verdade absoluta, pois, como acontece nos outros romances de Saramago, o próprio narrador questiona a fala que atribui ao personagem: “(...) razão por que, faltando o seu testemunho, seja lícito duvidar da autenticidade da filosófica reflexão, que quanto ao fundo quer quanto à forma, tendo em conta a mais do que óbvia contradição entre a notável propriedade dos conceitos e a ínfima condição social de quem os teria produzido”. [6]
Ora, questionar uma verdade sacra, mesmo sem querer substitui-la por outra verdade inquestionável, por si só já é uma heresia. E a heresia perpassa todo romance, ao oferecer versões que questionam, ou mesmo contrariam, certos dogmas da Igreja Católica como a virgindade de Maria, o papel do Diabo, a natureza de Deus e sua relação com Cristo. Neste processo tudo o que é sagrado é submetido à crítica, sendo, portanto, dessacralizado. Contudo essa dessacralização não resulta em uma sátira, pois não é intenção do romance zombar do sagrado, mas torná-lo mais humano. Exemplo disto é o questionamento da idealização de Maria. Em O evangelho segundo Jesus Cristo, Maria é uma mulher comum, oprimida como as demais da Judéia. Um pouco tola, não tem a aquela doce majestade de suas imagens nas igrejas. No entanto, sentimos por certa ternura por aquela mãe adolescente, perplexa com os acontecimentos estranhos relacionados com nascimento do primogênito; e pela mulher madura que custa a compreender e aceitar o destino do filho. Os sucessivos estados de gravidez de Maria subvertem aquela imagem de virgem imaculada, conforme negação explícita dessa pureza idealizada, no trecho que se segue: “Maria está outra vez limpa, de verdadeira pureza não se fala, evidentemente, que a tanto não poderão aspirar os seres humanos e as mulheres em particular (...)”.[7] Nem mesmo é dado a Maria o privilégio de ter sido a escolhida do Senhor: “Então, o Senhor não me escolheu, Qual quê, o Senhor só ia a passar, quem estivesse a olhar tê-lo-ia percebido pela cor do céu, mas reparou que tu e José eram gente robusta e saudável, e então, se ainda lembras de como estas necessidades manifestavam apeteceu-lhe, o resultado foi, nove meses depois, Jesus.”[8] Encontramos aqui um efeito de ironia que advém não somente da informação, como também pelo estilo, completamente prosaico, com que o anjo informa a Maria o desígnio divino, em total desacordo com o tom solene do texto bíblico.
Outras heresias, em O evangelho segundo Jesus Cristo, são a natureza e função do Diabo e de Deus, bem como o conflito entre Deus e Jesus. No início, percebemos vagos indícios, que depois se confirmam, de que o anjo que veio anunciar a concepção de Maria é o próprio Diabo. Esta identificação não surpreende se atentarmos para a origem de uma das palavras usadas para identificar o Diabo: demônio. O termo vem do grego daimon, que, na mitologia pagã, era “um espírito mediador entre deuses e homens, muitas vezes o espírito de um herói morto”.[9] Informa Luther Link que “dáimon e daimônion também significavam um espírito perverso, dominador, tendo sido esta a única acepção desenvolvida no Novo Testamento e por muitos dos primeiros padres. Os apologistas alexandrinos helenizados dos séculos II e III, por exemplo, interpretaram os demônios platônicos – que não eram particularmente bons nem maus – como anjos caídos perversos”.[10] Como observa Luther Link, a caracterização maligna dos demônios era uma forma de combater o paganismo: “Assim fizeram com vistas a formar uma nova equação: deuses pagãos = demônios maus = diabos. Tal equação justificava condenar a adoração de deuses pagãos. ‘A coisas que os gentios sacrificam, é aos diabos que sacrificam’, escreveu Paulo”. [11]
Contudo, a maior heresia, em O evangelho segundo Jesus Cristo, consiste no papel ambíguo do Diabo, um dilema que muito preocupou a teologia cristã. Se o Diabo tem como papel supliciar os pecadores e os hereges, então o Diabo colabora com a ordem imposta por Deus: incube-se, no além, do mesmo serviço sujo dos torturadores da Inquisição aqui na terra.[12] Mas o Diabo é também o adversário de Deus. É exatamente este o significado da palavra satan, em hebraico.[13] A interpretação que prevaleceu é a de que o Diabo era inicialmente um anjo, Lúcifer, que, por seu orgulho, rebelou-se contra Deus e tenta arrastar a humanidade para o Inferno. Em O evangelho segundo Jesus Cristo, o Diabo é um colaborador, mas também é um adversário, pois colabora contrariado, já que é o próprio que Deus rejeita a proposta do Diabo de acabar com o Mal: “quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal (...) Que não se diga que o Diabo não tentou um dia a Deus.”[14] Assim, o narrador de O evangelho segundo Jesus Cristo, concordando com Orígenes e Santo Agostinho, entre outros teólogos, mostra que o Mal não existiu sempre: passou a existir com a revolta de Satã. Entretanto, o narrador discorda de toda da ortodoxia católica, ao mostrar que o Mal permanece não apenas porque Deus permite sua existência provisória, mas porque ele assim o exige. É ambíguo também o papel do Diabo, como tentador de Cristo, já que os anos que passa com Jesus no deserto são também anos de aprendizado, em que Jesus, tendo o Diabo como mestre, é confrontado com questões perturbadoras que contribuem para o seu amadurecimento. Este caráter ambíguo do Diabo torna-o menos terrível que a aquela figura criada pelo imaginário medieval. O Diabo de Saramago é uma entidade até mesmo simpática, que orienta Jesus nos seus anos de formação; e uma figura prometeica diante de um Deus despótico. Por isto é que o Diabo, que, segundo Dante, “já foi belo e hoje é feio”, não tem aparência grotesca consagrada pela iconografia medieval[15] : suas aparições, apesar de impressionantes, nada têm de pavorosas.
A imagem de Deus, por outro lado, assusta não pela sua aparência, que, aliás, é bastante convencional: “É um homem grande e velho, de barbas fluviais espalhadas sobre o peito, a cabeça descoberta, cabelo solto, a cara larga e forte, a boca espessa, que falará sem que os lábios pareçam mover-se”.[16] Mas Deus assusta por sua onipotência e despotismo. Como afirma Maria de Magdala, “Deus é medonho”[17] ; e Jesus recorda-se dos seus contatos com Deus: “Jesus viu o deserto, a ovelha morta, o sangue na areia, ouviu a coluna de fumo suspirando de satisfação, e disse, Talvez, talvez, porém uma coisa é ouvi-lo em sonho, outra será vivê-lo em vida.”[18] Diante desse Deus, ambicioso e autoritário, que não hesita em sacrificar seu próprio filho para poder expandir o culto a sua pessoa, é que se revela o verdadeiro cálice amargo de Jesus: a lista de mártires do catolicismo, com seus respectivos suplícios, pois, assim como em Memorial do convento, encontramos, em O evangelho segundo Jesus Cristo, o traço épico do catálogo dos heróis, transformado em um catálogo de mártires[19] . Tão herético quanto surpreendente é o desfecho do romance, quando Jesus se rebela, decidindo enganar o pai, substituindo sua condição de filho de Deus, pela de um simples rebelde contra Roma: “(...) mas, se no lugar dele puséssemos um simples homem, já não poderia Deus sacrificar o Filho (...) Um simples homem, sim, mas um homem que se tivesse proclamado o mesmo rei dos Judeus, que andasse a levantar o povo para derrubar Herodes do trono e expulsar os romanos, isto é que vos peço, que corra um de vós ao Templo a dizer que eu sou esse homem”.[20] Nesse contexto, muda também o papel de Judas de Iscariote, que, de traidor, passa a ser colaborador de Jesus: “Foi então que se ouviu, clara, distinta, por cima do alvoroço, a voz de Judas de Iscariote, Eu vou, se assim o queres”.[21] Naturalmente toda esta versão implica questionamentos perturbadores para os crentes, que estão acostumados a somente repetir verdades tidas como absolutas, e, em sua maioria, ignoram os expurgos realizados na formação do cânone bíblico: o textos apócrifos, com suas versões alternativas. Há, portanto, certa afinidade entre os evangelhos apócrifos –banidos do cânone bíblico por serem considerados heréticos – e O evangelho segundo Jesus Cristo. Mas este, até mesmo por assumir sua condição de ficção, não pretende, de maneira alguma, substituir uma verdade inquestionável por outra.


A atenuação da superioridade de Jesus: 
uma profanação delicada

Em Memorial do convento e O evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago incorpora elementos estilísticos-ideológicos próprios da epopéia, os quais critica através da polêmica e da paródia. Haveria também esses elementos na Bíblia? Assim como a epopéia, o texto religioso é narrado em tom solene – com pouco clima para a introdução do cômico – e tem função de memória, transmitindo uma verdade sagrada. Incorporando mitos, apresenta o maravilhoso (os milagres), tem como protagonistas pessoas superiores a nós (Deus, os anjos, os profetas, o messias), e também apresenta cenas bélicas, como a batalha de Jericó, ou de grande mobilização nacional, como a travessia do Mar Vermelho. Lembremos, contudo, que O evangelho segundo Jesus Cristo tem como principal fonte os evangelhos – o que não descarta a possibilidade de Saramago ter consultado outras fontes, como os evangelhos apócrifos, o Velho Testamento e livros sobre a história da Igreja Católica. E os evangelhos parecem bem mais afastados da epopéia que as narrativas do Velho Testamento.
A primeira é diferença é estilística: os versos heróicos na epopéia; os versículos nos evangelhos. Contudo, também os evangelhos apresentam o tom solene, próprio para falar de coisas grandiosas e divinas acontecidas “naquele tempo” (“in illo tempore”). Mas mesmo esse tempo não é tão recuado quanto o da epopéia, pois os apóstolos – a quem é atribuída a autoria dos evangelhos – teriam conhecido Jesus pessoalmente. Nem são bélicas as ações do messias. Vejamos, então, em o que os evangelhos teriam em comum com a epopéia, no que diz respeito ao critério aristotélico dos objetos de imitação. Diz Aristóteles que a epopéia tem como protagonistas pessoas superiores a nós. Ocorreria o mesmo nos evangelhos? A resposta só pode ser afirmativa se tivermos em mente uma outra concepção de superioridade, radicalmente diferente do heroísmo clássico, pois como afirma Harold Bloom “nenhum estudioso foi capaz de realizar uma comparação convincente do pensamento grego e da psicologia hebraica, no mínimo porque os dois modos parecem irreconciliáveis”.[22] Se Aquiles e Ulisses são guerreiros e de classe superior; Jesus é um messias, filho de um humilde carpinteiro. Mas tem Jesus muito em comum com os protagonistas da epopéia e da tragédia, por ser, assim como Aquiles e Édipo, aquele cujas decisões determinam o destino do seu povo; como Moisés, Jesus é um líder supremo, “o caminho, a verdade e a vida”.
Outro traço que Jesus tem em comum com os heróis clássicos é o fato de ter sido concebido pelo próprio Deus; portanto, Jesus continua a tradição clássica dos semideuses – embora o dogma da Santíssima Trindade o tenha feito confundir-se com o próprio Deus, o que não acontece com os heróis e outros seres da mitologia pagã. É o próprio Deus, no romance de Saramago, quem confirma essa tradição: “Como não tinha nenhum [filho] no céu, tive de arranjá-lo na terra, não é original, até em religiões com deuses e deusas que podiam fazer filhos uns com os outros, tem-se visto vir um deles à terra, para variar, suponho, de caminho melhorando um pouco uma parte do género humano pela criação de heróis e outros fenómenos (...)”.[23] Na epopéia clássica, o caráter semidivino dos heróis lhes confere qualidades extraordinárias, como força, coragem e inteligência excepcionais –havendo até mesmo uma espécie de superioridade do erro ou do defeito, a hybris, que, pelas conseqüências não apenas individuais como coletivas estaria na origem da noção de trágico. Nos evangelhos, Jesus, por ser filho de Deus, também tem qualidades excepcionais de inteligência e liderança, mas não empunha armas; comanda multidões, mas não exércitos[24] . Na epopéia clássica a epopéia clássica, os vencedores são premiados com as suas conquistas – embora o sentido do trágico dos gregos não permita que essas conquistas sejam fácil e longamente fruídas, sempre se enfatiza a fragilidade do ser humano, mesmo dos semideuses. Jesus, apesar de condenado e executado, apesar de não ser imperador na terra, também é recompensado, mas seu reino “não é deste mundo”. Seu maior heroísmo consiste em ser sacrificado na terra, para reinar ao lado de Deus.
“Nem sequer devia ser concebível uma santidade que não conhecesse a força dos homens e a fraqueza que às vezes nessa força há”, diz o narrador do Memorial do convento. A tensão dominante em O evangelho segundo Jesus Cristo, em relação à Bíblia, reside justamente na atenuação da superioridade de Jesus Cristo. Esta atenuação não chega a atingir rebaixamento grotesco – como o caracteriza Bakhtin –, que encontramos somente na descrição de Herodes, quando o narrador se refere aos “vermes que infestam os órgãos genitais da real pessoa e que, esses sim, a estão devorando em vida”.[25] E também ao mostrar Herodes “arrastando um corpo que fede de putrefacção, apesar dos perfumes de que leva embebidas as roupas e ungidos os cabelos pintados, a Herodes só o mantém vivo a fúria”.[26] Este tipo de rebaixamento jamais acontece na descrição de Jesus, nem da sagrada família, que não são, de maneira alguma, satirizados. Contudo, tampouco apresenta aquela aura veneranda própria de tudo que é sagrado: o Jesus de Saramago é dessacralizado, tornando-se, pela exposição de suas dúvidas e fraquezas, um homem mais próximo de nós. Podemos afirmar, parafraseando o título de um romance de Sérgio Sant’Anna [27], que Saramago realiza uma profanação delicada – embora muitos fiéis não concordem o adjetivo –, que atinge não somente a figura de Jesus, como também toda a sagrada família –(como já vimos a respeito de Maria). Isto torna o Jesus de Saramago mais humano que o Jesus da Bíblia, que é plenamente seguro de si e de sua missão. Como o costuma acontecer com os heróis clássicos, quase nada sabemos sobre a infância e adolescência do Jesus da Bíblia – exceto aquele episódio em que Jesus discute com os doutores. Mas, ao contrário do que acontece na epopéia, a Bíblia não faz a mínima referência à vida amorosa de Jesus, pois entre as virtudes do messias está a castidade – virtude que será preservada nos heróis das canções de gesta, guerreiros, porém castos.
A primeira diferença, em nível diegético, entre o Jesus da Bíblia e o de Saramago está no fato de que grande parte do romance abrange a adolescência de Jesus: o seu período de formação. O Jesus bebê é uma criança como as outras, sem nada que revele a sua origem divina: “Jesus, mas ele ainda não pode saber que é este o seu nome, por enquanto não passa de um pequeno ser natural, como o pinto duma galinha, o cachorro duma cadela, o cordeiro duma ovelha (...)”.[28] Inicialmente, Jesus, que ignora sua condição de filho de Deus, também é um adolescente como os outros, embora bem mais esperto, como comenta o narrador: “(...) a juventude é assim, egoísta, presunçosa, e Jesus, que ele saiba, não tem motivos para ser diferente dos da sua idade”.[29] Contudo, para a ortodoxia católica, com sua valorização da ascese, a profanação mais grave é a descrição da vida amorosa de Jesus, que, como faz questão de mostrar o narrador do romance, sente desejo sexual, como qualquer homem: “O corpo de Jesus deu um sinal, inchou no que tinha entre as pernas, como acontece a todos os homens e a todos os animais, o sangue correu veloz a um mesmo sítio, a ponto de se lhe secarem subitamente as feridas (...)”.[30] Mais adiante, Jesus é iniciado sexualmente pela prostituta Maria de Magdala, que se torna sua companheira. Não deixa de ser irônico que o erotismo, tão reprimido pela Igreja, seja descrito aqui, em belos termos do Velho Testamento, pela estilização das palavras do rei Salomão: “As curvas dos teus quadris são como jóias, o teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho perfumado, o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios, os teus seios são como dois filhinhos gêmeos de uma gazela (...)”.[31] Daí por diante, encontramos Jesus vivendo “em concubinato” assumido com Maria de Magdala. E é esse encontro com Maria de Magdala, assim como o primeiro encontro com Deus, que marca a passagem para a maioridade de Jesus. E nessa relação de Jesus com Maria de Magdala prossegue a celebração, já ocorrida nos romances anteriores, dos relacionamentos amorosos ilegítimos, porém autênticos e fortes. É a partir do encontro com Deus e com Maria Magdala que Jesus conhece não somente sua condição divina, como também as terríveis conseqüências desse privilégio. E é a partir daí que Jesus torna-se mais seguro de si. Mas essa segurança é resultado de um amadurecimento gradual, em que acompanhamos todas as dúvidas e hesitações, assim como o remorso, herdado do pai, José, que não avisara aos pais das outras crianças de Belém que seus filhos iriam ser assassinados.
Vemos, então, em O evangelho segundo Jesus Cristo, um José e um Jesus que não estão acima das fraquezas dos homens, mas dois homens, que, sendo santos, nem por isto são imaculados. Vemos também, no Jesus de Saramago, a sua inexperiência, que o narrador relata com leve ironia, primeiro no episódio da mulher adúltera, em que Jesus recomenda que só atire a primeira pedra aquele que não tiver pecado: “Arriscou-se muito o nosso Jesus porque podia ter acontecido que um ou mais dos apedrejadores, por serem de coração endurecido e estarem empedernidos nas práticas do pecado em geral, dessem ouvidos de mercador à admoestação e prosseguissem no apedrejamento, sem medo, eles próprios, à lei que estavam aplicando, por ser destinada às mulheres”.[32] A ironia torna-se um humor mais explícito no episódio do exorcismo, em que os espíritos malignos são autorizados a ocuparem os porcos, cujo resultado foi inesperado: “Os porqueiros, furiosos, atiravam de longe pedras a Jesus e a quem estava com ele, e já vinham a correr aí com o propósito, justíssimo, de exigir responsabilidades ao causador do prejuízo, um x por cabeça, a multiplicar por dois mil, as contas são fáceis de se fazer. Mas não de pagar”.[33]
As inquietações de Jesus revelam, desde o início, pelo menos um traço de superioridade: sua inteligência e seu espírito indagador. Ironicamente é uma qualidade perturbadora, que torna o Jesus de Saramago também um herege, não só em relação à tradição bíblica mais antiga, como também em relação aos próprios evangelhos. E, para exercitar esse espírito questionador seja plenamente realizado por Jesus, o narrador lhe empresta estilemas do um gênero apropriado para destronar as verdades absolutas: o diálogo socrático[34] , pois Jesus discute com seus oponentes “como se na cartilha socrática tivesse aprendido as artes da maiêutica analítica”.[35] Contudo, ao contrário dos sofistas, Jesus não tem como objetivo somente convencer os adversários, mas conhecer melhor a si mesmo, a Deus e aos homens: “(...) O que quero saber é sobre a culpa, Falas de uma culpa tua, falo de culpa em geral, mas também da culpa que eu tenha mesmo não tendo pecado directamente (...)”.[36] Com ironia, Saramago apresenta o próprio Jesus como primeiro questionador da verdade absoluta dos evangelhos. Por este e outros procedimento O evangelho segundo Jesus Cristo confronta a verdade oficial da bíblia com as versões marginais: as heresias. 


Notas:

[1] ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, s.d. p. 115.

[2] Segundo Huizinga, storia, no dialeto jônico de Heródoto, significa “aquilo que se consegue saber através de inquérito”. Opõe-se, portanto, à noção de revelação divina. Cf. HUIZINGA, J. Über eine Definition des Begriffs Geschichte. In: ______ . Geschichte und Kultur: gesammelte Aufsätze. Tradução de Werner Kaegi. Stuttgart: Alfred Kröner Verlag, 1954. p. 6.

[3] Salma Ferraz observa que “[alguns dos evangelhos apócrifos (Proto-evangelho de Tiago, Evangelho pseudo-Tomé, Evangelho árabe da infância, Evangelho apócrifo segundo Felipe, Evangelho apócrifo de Nicodemus) são citados em diversas vezes para preencherem os chamados ‘vazios’ da narrativa bíblica, ou seja, aqueles momentos em que o texto bíblico se cala sobre determinado período de tempo, como, por exemplo, o que teria acontecido com Cristo dos doze aos trinta anos.” FERRAZ, S. O quinto evangelista: o (des)evangelho segundo José Saramago. Brasília: Editora da UnB, 1998. p. 35.

[4] SARAMAGO, J. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p.18.

[5] Ibid. p. 346. 

[6] Ibid. p. 108.

[7] Ibid. p. 101.

[8] Ibid. p. 311-312.

[9] LINK, L. O Diabo: a máscara sem rosto. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 25.

[10] Id. 

[11] Id. 

[12] Mas, no mosaico de Torcello, esse trabalho é realizado pelos próprios anjos (cf. LINK, Op. cit. p. 123). Luther Link observa também que os instrumentos utilizados pelos diabos, na iconografia medieval, são os mesmos utilizados pela Inquisição. 

[13] LINK, L. Op. cit. p. 24.

[14] SARAMAGO, J. Op. cit. p. 392-393.

[15] Exceto naquele momento em que nada em direção a Jesus e Deus, quando por um breve vislumbre de Jesus, lembra um porco resfolegando. Mas aqui parece que a intenção é mostrar que o Diabo não tem a mesma onipotência do Senhor: “(...) à distância era outra vez como um porco com as orelhas espetadas, ouviam-se resfolgos bestiais, mas um ouvido fino não teria dificuldade de perceber que havia também ali um som de medo, não de afogar-se, que ideia, o Diabo, acabámos de sabê-lo mesmo agora, não acaba, mas de ter de existir para sempre. (O Evangelho segundo Jesus Cristo. p. 393.) 

[16] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 364.

[17] Ibid. p. 309.

[18] Id.

[19] Ibid. p. 381-385.

[20] Ibid. p. 436.

[21] Ibid. p. 437.

[22] BLOOM, H. Abaixo as verdades sagradas: poesia e crença desde a Bíblia até nossos dias. Tradução: Alípio Correa de Franca Neto, Heitor Ferreira da Costa. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 41.

[23] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 366.

[24] Posteriormente, já na Europa cristã da Idade Média, os heróis reúnem as qualidades do guerreiro e do santo (ex: Rolando, Joana D’Arc).

[25] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 86. 

[26] Id. 

[27] Um crime delicado.

[28] Ibid. p. 89.

[29] Ibid. p. 222.

[30] Ibid. p. 270.

[31] Ibid. p. 282.

[32] Ibid. p. 352

[33] Ibid. p. 356.

[34] Lembremos que o diálogo socrático, segundo Bakhtin, é um dos gêneros que originaram o romance. (Cf. Bakhtin, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora UNESP/HUCITEC, 1990. passim).

[35] SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 231.

[36] Ibid. p. 211.


Bibliografia:

BLOOM, H. Abaixo as verdades sagradas: poesia e crença desde a Bíblia até nossos dias. Tradução: Alípio Correa de Franca Neto, Heitor Ferreira da Costa. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
FERRAZ, S. O quinto evangelista: o (des)evangelho segundo José Saramago. Brasília: Editora da UnB, 1998.
LINK, L. O Diabo: a máscara sem rosto. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
BRIDI, M. V. O evangelho de Saramago: a Paixão de Cristo em perspectiva. In: LOPONDO, L. (org.). Saramago segundo terceiros. São Paulo: Humanitas/FFLHCH/USP, 1998. p. 111-130.
SARAMAGO, J. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
SEGOLIN, F. O evangelho às avessas de Saramago ou o divino demasiado humano ou o Deus que não sabe o que faz. CADERNOS CESPUC DE PESQUISA. José Saramago: um nobel para as literaturas de língua portuguesa. Belo Horizonte: CESPUC, 1999. p. 13-19.
SILVA, T. C. C. O evangelho segundo Jesus Cristo ou a consagração do sacrilégio. CADERNOS CESPUC DE PESQUISA. José Saramago: um nobel para as literaturas de língua portuguesa. Belo Horizonte: CESPUC, 1999. p. 50-60."

Domenico Scarlatti - Sonata in G - K108 ...Il maestro e as lições de musica


(...) por nascer uma criança em Lisboa levanta-se em Mafra um montanhão de pedra e vem de Londres contratado Domenico Scarlatti. À lição assistem as majestades, em pequeno estado, umas trinta pessoas, se tanto, contando os camaristas de semana dele e dela, aias, açafatas várias, mais o padre Bartolomeu de Gusmão, lá para trás, e outros eclesiásticos. Il maestro vai corrigindo a digitação fá lá dó, fá dó lá, sua alteza apura-se muito, morde o beicinho, nisto não se distingue de qualquer criança, em paço nascida, ou noutras passagens, a mãe disfarça uma certa impaciência, o pai está real e severo, só as mulheres, tenros corações, se deixam embalar pela música, e pela menina, mesmo tocando ela tão mal, nem admira, que esperaria D. Maria Ana, milagres, ainda agora está no princípio, il signor Scarlatti só chegou há poucos meses, e por que hão-de estes estrangeiros tornar os nomes difíceis, se tão pouco custa descobrir que é Escarlate o nome deste, e bem lhe fica, homem de completa figura, rosto comprido, boca larga e firme, olhos afastados, não sei que têm os italianos, e então este, em Nápoles nascido há trinta e cinco anos, É a força da vida, mana. Terminou a lição, desfez-se a companhia, rei para um lado, rainha para outro, infanta não sei para onde, todos observando precedências e preceitos, cometendo plurais vénias, enfim, afastou-se a restolhada dos guarda-infantes e dos calções de fitas, e no salão de música apenas ficaram Domenico Scarlatti e o padre Bartolomeu de Gusmão. O italiano dedilhou o cravo, primeiro sem destino, depois como se estivesse à procura de um tema ou quisesse emendar os ecos, e de repente pareceu fechado dentro da música que tocava, corriam-lhe as mãos sobre o teclado como uma barca florida na corrente, demorada aqui e além pelos ramos que das margens se inclinam, logo velocíssima, depois pairando nas águas agitadas de um lago profundo, baía luminosa de Nápoles, secretos e sonoros canais de Veneza, luz refulgente e nova do Tejo, já lá vai el-rei, resguardou-se a rainha na sua câmara, a infanta debruça-se para o bastidor, de pequenina se aprende, e a música é um rosário profano de sons, mãe nossa que na terra estais. Senhor Scarlatti, disse o padre quando o improviso terminou e todos os ecos ficaram corrigidos, senhor Scarlatti, não me gabo de saber dessa arte, mas estou que até um índio da minha terra, que dela sabe ainda menos do que eu, haveria de sentir-se arrebatado por essas harmonias celestes, Porventura não, respondeu o músico, porque bem sabido é que há-de o ouvido ser educado se quer estimar os sons musicais, como os olhos têm de aprender a orientar-se no valor das letras e sua conjunção de leitura, e os próprios ouvidos no entendimento da fala, São palavras ponderadas, essas, que emendam as levianas minhas, é um defeito comum nos homens, mais facilmente dizerem o que julgam querer ser ouvido por outrem do que cingirem-se à verdade, Porém, para que os homens possam cingir-se à verdade, terão primeiramente de conhecer os erros, E praticá-los, Não saberei responder à pergunta com um simples sim ou um simples não, mas acredito na necessidade do erro." (...)  

em, "Memorial do Convento"
Caminho, 20.ª edição
Páginas 160 a 162

Blimunda "Nunca te olharei por dentro"...

"Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltazar, sobre o coração..."



(...) "Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bater de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue.
Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão, de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, E disse, Nunca te olharei por dentro. (...)

em, "Memorial do Convento"
Caminho, 20.ª edição, página 57

Terramoto no Haiti - 4 anos - "Uma Jangada de Pedra - A Caminho do Haiti"

Passam 4 anos, do terramoto no Haiti.
Os números são assustadores. Todos os números.
Evoco as palavras de José Saramago e Pilar del Río, e a iniciativa realizada com a reedição de "Uma Jangada de Pedra - A Caminho do Haiti"


"El 12 de enero de 2010, a las 16:53:09 hora local, Haití se vio sacudido por un terremoto de 7,2 grados." - El Diario





"El papel del intelectual en las crisis"

"José Saramago no podía permanecer al margen de la tragedia que sufrían miles de personas que, siendo tan humanas como él, estaban condenadas a sufrir los mayores rigores de la vida y, en tantos casos, acabar en la muerte más atroz. No podía hacer, desde su casa de Lanzarote, nada más que poner en evidencia las contradicciones de un mundo que manda aparatos a Marte a la vez que ignora el estado de pobreza e indefensión en que viven millones de personas. O sí podía intervenir más: pensó, e inmediatamente se dirigió a sus editores, proponiéndoles realizar algo más concreto que unas palabras de solidaridad, les sugirió la reedición de un libro -La basa de piedra- con un un subtitulo bien claro: "Camino de Haití" y ceder todos los derechos de ese libro para, tal vez, reconstruir una escuela y hacerlo con los cimientos suficientes para que en el próximo terremoto no se desplome aplastando a los alumnos, los niños que estén dentro tratando de aprender o refutar lo que los mayores enseñamos, tan poco ejemplar a veces. La iniciativa tuvo una acogida mediana, porque es en la medianía donde estamos instalados. En cualquier caso, José Saramago dio el paso adelante y tal vez al hacerlo nos demostró que nuestra sensibilidad dura lo que duran las imágenes de un telediario, eso cuando no apartamos la cabeza para no verlas... Somos ciegos que viendo no vemos, escribió José Saramago. Así nos va."

Pilar del Río

(13 de enero de 2010. 
Se estima que el sismo afectó a más de tres millones de personas y más de 300.000 fallecimientos. 
Escuela Nacional de Cité Soleil, Puerto Príncipe. 
Fotografía: Stefano Zannini)

Mensagem de José Saramago, publicada em "O Caderno II"
Post inserido em 8 de Fevereiro de 2010
Aqui, para consulta em http://caderno.josesaramago.org/62662.html

"Quantos Haitis?"
"No Dia de Todos os Santos de 1755 Lisboa foi Haiti. A terra tremeu quando faltavam poucos minutos para as dez da manhã. As igrejas estavam repletas de fiéis, os sermões e as missas no auge… Depois do primeiro abalo, cuja magnitude os geólogos calculam hoje ter atingido o grau 9 na escala de Richter, as réplicas, também elas de grande potência destrutiva, prolongaram-se pela eternidade de duas horas e meia, deixando 85% das construções da cidade reduzidas a escombros. Segundo testemunhos da época, a altura da vaga do tsunami resultante do sismo foi de vinte metros, causando 600 vítimas mortais entre a multidão que havia sido atraída pelo insólito espectáculo do fundo do rio juncado de destroços dos navios ali afundados ao longo do tempo. Os incêndios durariam cinco dias. Os grandes edifícios, palácios, conventos, recheados de riquezas artísticas, bibliotecas, galerias de pinturas, o teatro da ópera recentemente inaugurado, que, melhor ou pior, haviam aguentado os primeiros embates do terramoto, foram devorados pelo fogo. Dos 275 mil habitantes que Lisboa tinha então, crê-se que morreram 90 mil. Conta-se que à pergunta inevitável “E agora, que fazer?”, o secretário de Estrangeiros Sebastião José de Carvalho e Melo, que mais tarde viria a ser nomeado primeiro-ministro, teria respondido “Enterrar os mortos e cuidar dos vivos”. Estas palavras, que logo entraram na História, foram efectivamente pronunciadas, mas não por ele. Disse-as um oficial superior do exército, desta maneira espoliado do seu haver, como tantas vezes acontece, em favor de alguém mais poderoso.

A enterrar os seus cento e vinte mil ou mais mortos anda agora o Haiti, enquanto a comunidade internacional se esforça por acudir aos vivos, no meio do caos e da desorganização múltipla de um país que mesmo antes do sismo, desde gerações, já se encontrava em estado de catástrofe lenta, de calamidade permanente. Lisboa foi reconstruída, o Haiti também o será. A questão, no que toca ao Haiti, reside em como se há-de reconstruir eficazmente a comunidade do seu povo, reduzido não só à mais extrema das pobrezas como historicamente alheio a um sentimento de consciência nacional que lhe permitisse alcançar por si mesmo, com tempo e com trabalho, um grau razoável de homogeneidade social. De todo o mundo, de distintas proveniências, milhões e milhões de euros e de dólares estão sendo encaminhados para o Haiti. Os abastecimentos começaram a chegar a uma ilha onde tudo faltava, fosse porque se perdeu no terramoto, fosse porque nunca lá existiu. Como por acção de uma divindade particular, os bairros ricos, em comparação com o resto da cidade de Porto Príncipe, foram pouco afectados pelo sismo. Diz-se, e à vista do que aconteceu no Haiti parece certo, que os desígnios de Deus são inescrutáveis. Em Lisboa as orações dos fiéis não puderam impedir que o tecto e e os muros das igrejas lhes caíssem em cima e os esmagassem. No Haiti, nem mesmo a simples gratidão por haverem salvo vidas e bens sem nada terem feito para isso, moveu os corações dos ricos a acudir à desgraça de milhões de homens e mulheres que não podem sequer presumir do nome unificador de compatriotas porque pertencem ao mais ínfimo da escala social, aos não-ser, aos vivos que sempre estiveram mortos porque a vida plena lhes foi negada, escravos que foram de senhores, escravos que são da necessidade. Não há notícia de que um único haitiano rico tenha aberto os cordões ou aliviado as suas contas bancárias para socorrer os sinistrados. O coração do rico é a chave do seu cofre-forte.

Haverá outros terramotos, outras inundações, outras catástrofes dessas a que chamamos naturais. Temos aí o aquecimento global com as suas secas e as suas inundações, as emissões de CO2 que só forçados pela opinião pública os governos se resignarão a reduzir, e talvez tenhamos já no horizonte algo em que parece ninguém querer pensar, a possibilidade de uma coincidência dos fenómenos causados pelo aquecimento com a aproximação de uma nova era glacial que cobriria de gelo metade da Europa e agora estaria dando os primeiros e ainda benignos sinais. Não será para amanhã, podemos viver e morrer tranquilos. Mas, di-lo quem sabe, as sete eras glaciais por que o planeta passou até hoje não foram as únicas, outras haverá. Entretanto, olhemos para este Haiti e para os outros mil Haitis que existem no mundo, não só para aqueles que praticamente estão sentados em cima de instáveis falhas tectónicas para as quais não se vê solução possível, mas também para os que vivem no fio da navalha da fome, da falta de assistência sanitária, da ausência de uma instrução pública satisfatória, onde os factores propícios ao desenvolvimento são praticamente nulos e os conflitos armados, as guerras entre etnias separadas por diferenças religiosas ou por rancores históricos cuja origem acabou por se perder da memória em muitos casos, mas que os interesses de agora se obstinam em alimentar. O antigo colonialismo não desapareceu, multiplicou-se numa diversidade de versões locais, e não são poucos os casos em que os seus herdeiros imediatos foram as próprias elites locais, antigos guerrilheiros transformados em novos exploradores do seu povo, a mesma cobiça, a crueldade de sempre. Esses são os Haitis que há que salvar. Há quem diga que a crise económica veio corrigir o rumo suicida da humanidade. Não estou muito certo disso, mas ao menos que a lição do Haiti possa aproveitar-nos a todos. Os mortos de Porto Príncipe foram fazer companhia aos mortos de Lisboa. Já não podemos fazer nada por eles. Agora, como sempre, a nossa obrigação é cuidar dos vivos."

José Saramago