Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Domenico Scarlatti - Sonata in G - K108 ...Il maestro e as lições de musica


(...) por nascer uma criança em Lisboa levanta-se em Mafra um montanhão de pedra e vem de Londres contratado Domenico Scarlatti. À lição assistem as majestades, em pequeno estado, umas trinta pessoas, se tanto, contando os camaristas de semana dele e dela, aias, açafatas várias, mais o padre Bartolomeu de Gusmão, lá para trás, e outros eclesiásticos. Il maestro vai corrigindo a digitação fá lá dó, fá dó lá, sua alteza apura-se muito, morde o beicinho, nisto não se distingue de qualquer criança, em paço nascida, ou noutras passagens, a mãe disfarça uma certa impaciência, o pai está real e severo, só as mulheres, tenros corações, se deixam embalar pela música, e pela menina, mesmo tocando ela tão mal, nem admira, que esperaria D. Maria Ana, milagres, ainda agora está no princípio, il signor Scarlatti só chegou há poucos meses, e por que hão-de estes estrangeiros tornar os nomes difíceis, se tão pouco custa descobrir que é Escarlate o nome deste, e bem lhe fica, homem de completa figura, rosto comprido, boca larga e firme, olhos afastados, não sei que têm os italianos, e então este, em Nápoles nascido há trinta e cinco anos, É a força da vida, mana. Terminou a lição, desfez-se a companhia, rei para um lado, rainha para outro, infanta não sei para onde, todos observando precedências e preceitos, cometendo plurais vénias, enfim, afastou-se a restolhada dos guarda-infantes e dos calções de fitas, e no salão de música apenas ficaram Domenico Scarlatti e o padre Bartolomeu de Gusmão. O italiano dedilhou o cravo, primeiro sem destino, depois como se estivesse à procura de um tema ou quisesse emendar os ecos, e de repente pareceu fechado dentro da música que tocava, corriam-lhe as mãos sobre o teclado como uma barca florida na corrente, demorada aqui e além pelos ramos que das margens se inclinam, logo velocíssima, depois pairando nas águas agitadas de um lago profundo, baía luminosa de Nápoles, secretos e sonoros canais de Veneza, luz refulgente e nova do Tejo, já lá vai el-rei, resguardou-se a rainha na sua câmara, a infanta debruça-se para o bastidor, de pequenina se aprende, e a música é um rosário profano de sons, mãe nossa que na terra estais. Senhor Scarlatti, disse o padre quando o improviso terminou e todos os ecos ficaram corrigidos, senhor Scarlatti, não me gabo de saber dessa arte, mas estou que até um índio da minha terra, que dela sabe ainda menos do que eu, haveria de sentir-se arrebatado por essas harmonias celestes, Porventura não, respondeu o músico, porque bem sabido é que há-de o ouvido ser educado se quer estimar os sons musicais, como os olhos têm de aprender a orientar-se no valor das letras e sua conjunção de leitura, e os próprios ouvidos no entendimento da fala, São palavras ponderadas, essas, que emendam as levianas minhas, é um defeito comum nos homens, mais facilmente dizerem o que julgam querer ser ouvido por outrem do que cingirem-se à verdade, Porém, para que os homens possam cingir-se à verdade, terão primeiramente de conhecer os erros, E praticá-los, Não saberei responder à pergunta com um simples sim ou um simples não, mas acredito na necessidade do erro." (...)  

em, "Memorial do Convento"
Caminho, 20.ª edição
Páginas 160 a 162

Sem comentários:

Enviar um comentário