"O que é a fé? A fé é uma renúncia, renúncia ao saber."
Mas é fato que ainda não encontramos nenhuma civilização capaz de prescindir, livre e completamente, do desejo da existência de Deus. Há quem diga que, se eliminarmos as guerras e as religiões dos livros de história, não sobrará nada, que se poderiam queimar os livros.
É pior que isso, porque muitas das guerras foram, e continuam a ser, guerras de religião. Se começarmos a pensar nisso, veremos que as religiões dificilmente unem a humanidade, ao contrário, no mais das vezes a dividem. Há coisas imperdoáveis, como as chamadas descobertas de novos povos. Lá iam as caravelas em busca de terras onde havia outros povos, e que é o que faz o padre quando chega ao outro mundo? Diz-lhes: "Vossos deuses são falsos, eu trago comigo o verdadeiro". Isso é um pecado, e recorro agora à teologia, isso é um pecado de soberba, porque é imperdoável que alguém tenha a ousadia, o descaramento de dizer: "Trago comigo o verdadeiro Deus". Isso significa que os deuses que eles tinham deveriam ser eliminados, e a melhor forma de eliminar um deus é eliminar a pessoa que acredita nesse deus. E mais. Vamos imaginar que Deus existe: se existe Deus, não há mais que um deus; se há Deus, só pode existir um deus; então, todas as formas de adorá-lo são válidas, são todas iguais, tanto faz que se diga que é Jesus crucifica-do, o sol, a montanha, um animal ou uma flor. Para Deus, se Deus existe, dá no mesmo que a expressão física, material, se se quiser, dessa essência que seria Deus seja a montanha, o sol ou lá o que for. Por isso volto ao que dizia antes: que, para poder negar Deus, é preciso que eu o tenha aqui, na cabeça, como tenho o diabo, o mal e o bem.
Mas você não acha que, com os mesmos argumentos com que você o nega, alguém pode dizer o contrário, quer dizer, que sente no seu interior a consciência de que ele pode existir?
A chamada fé é algo que eu não entendo. O que é a fé? A fé é uma renúncia, renúncia ao saber.
in, "José Saramago: O Amor Possível"
de Juan Arias
Manati, edição de 2003
Traduzido por Rubia Prates Goldoni
Páginas 101 e 102