Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Revisitar os "Cadernos" - "Palavras para uma Cidade", dia 15 de Setembro de 1998

(Realização Miguel Gonçalves Mendes)

Aqui, link via blog "Cadernos", em http://caderno.josesaramago.org/1253.html


"Palavras para uma cidade"
"Mexendo nuns quantos papéis que já perderam a frescura da novidade, encontrei um artigo sobre Lisboa escrito há uns quantos anos, e, não me envergonho de confessá-lo, emocionei-me. Talvez porque não se trate realmente de um artigo, mas de uma carta de amor, de amor a Lisboa. Decidi então partilhá-la com os meus leitores e amigos tornando-a outra vez pública, agora na página infinita de internet e com ela inaugurar o meu espaço pessoal neste blog.Palavras para uma cidadeTempo houve em que Lisboa não tinha esse nome. Chamavam-lhe Olisipo quando os Romanos ali chegaram, Olissibona quando a tomaram os Mouros, que logo deram em dizer Aschbouna, talvez porque não soubessem pronunciar a bárbara palavra. Quando, em 1147, depois de um cerco de três meses, os Mouros foram vencidos, o nome da cidade não mudou logo na hora seguinte: se aquele que iria ser o nosso primeiro rei enviou à família uma carta a anunciar o feito, o mais provável é que tenha escrito ao alto Aschbouna, 24 de Outubro, ou Olissibona, mas nunca Lisboa. Quando começou Lisboa a ser Lisboa de facto e de direito? Pelo menos alguns anos tiveram de passar antes que o novo nome nascesse, tal como para que os conquistadores Galegos começassem a tornar-se Portugueses…Estas miudezas históricas interessam pouco, dir-se-á, mas a mim interessar-me-ia muito, não só saber, mas ver, no exacto sentido da palavra, como veio mudando Lisboa desde aqueles dias. Se o cinema já existisse então, se os velhos cronistas fossem operadores de câmara, se as mil e uma mudanças por que Lisboa passou ao longo dos séculos tivessem sido registadas, poderíamos ver essa Lisboa de oito séculos crescer e mover-se como um ser vivo, como aquelas flores que a televisão nos mostra, abrindo-se em poucos segundos, desde o botão ainda fechado ao esplendor final das formas e das cores. Creio que amaria a essa Lisboa por cima de todas as cousas.Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço continuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo. Esse filme de Lisboa, comprimindo o tempo e expandindo o espaço, seria a memória perfeita da cidade.O que sabemos dos lugares é coincidirmos com eles durante um certo tempo no espaço que são. O lugar estava ali, a pessoa apareceu, depois a pessoa partiu, o lugar continuou, o lugar tinha feito a pessoa, a pessoa havia transformado o lugar. Quando tive de recriar o espaço e o tempo de Lisboa onde Ricardo Reis viveria o seu último ano, sabia de antemão que não seriam coincidentes as duas noções do tempo e do lugar: a do adolescente tímido que fui, fechado na sua condição social, e a do poeta lúcido e genial que frequentava as mais altas regiões do espírito. A minha Lisboa foi sempre a dos bairros pobres, e quando, muito mais tarde, as circunstâncias me levaram a viver noutros ambientes, a memória que preferi guardar foi a da Lisboa dos meus primeiros anos, a Lisboa da gente de pouco ter e de muito sentir, ainda rural nos costumes e na compreensão do mundo.Talvez não seja possível falar de uma cidade sem citar umas quantas datas notáveis da sua existência histórica. Aqui, falando de Lisboa, foi mencionada uma só, a do seu começo português: não será particularmente grave o pecado de glorificação… Sê-lo-ia, sim, ceder àquela espécie de exaltação patriótica que, à falta de inimigos reais sobre que fazer cair o seu suposto poder, procura os estímulos fáceis da evocação retórica. As retóricas comemorativas, não sendo forçosamente um mal, comportam no entanto um sentimento de auto-complacência que leva a confundir as palavras com os actos, quando as não coloca no lugar que só a eles competiria.Naquele dia de Outubro, o então ainda mal iniciado Portugal deu um largo passo em frente, e tão firme foi ele que não voltou Lisboa a ser perdida. Mas não nos permitamos a napoleónica vaidade de exclamar: “Do alto daquele castelo oitocentos anos nos contemplam” – e aplaudir-nos depois uns aos outros por termos durado tanto… Pensemos antes que do sangue derramado por um e outro lados está feito o sangue que levamos nas veias, nós, os herdeiros desta cidade, filhos de cristãos e de mouros, de pretos e de judeus, de índios e de amarelos, enfim, de todas as raças e credos que se dizem bons, de todos os credos e raças a que chamam maus. Deixemos na irónica paz dos túmulos aquelas mentes transviadas que, num passado não distante, inventaram para os Portugueses um “dia da raça”, e reivindiquemos a magnífica mestiçagem, não apenas de sangues, mas sobretudo de culturas, que fundou Portugal e o fez durar até hoje.Lisboa tem-se transformado nos últimos anos, foi capaz de acordar na consciência dos seus cidadãos o renovo de forças que a arrancou do marasmo em que caíra. Em nome da modernização levantam-se muros de betão sobre as pedras antigas, transtornam-se os perfis das colinas, alteram-se os panoramas, modificam-se os ângulos de visão. Mas o espírito de Lisboa sobrevive, e é o espírito que faz eternas as cidades. Arrebatado por aquele louco amor e aquele divino entusiasmo que moram nos poetas, Camões escreveu um dia, falando de Lisboa: “…cidade que facilmente das outras é princesa”. Perdoemos-lhe o exagero. Basta que Lisboa seja simplesmente o que deve ser: culta, moderna, limpa, organizada – sem perder nada da sua alma. E se todas estas bondades acabarem por fazer dela uma rainha, pois que o seja. Na república que nós somos serão sempre bem-vindas rainhas assim."

José Saramago

Hoje, tal como ontem, há 16 anos atrás...


José Saramago - Discursos Estocolmo - Português

Publicado por Fundação José Saramago
Discursos proferidos por José Saramago a 7 e a 10 de Dezembro de 1998, por altura da entrega do Prémio Nobel de Literatura, pela primeira vez atribuído a um escritor de língua portuguesa.


(Artista Bo Larsson
Caligrafista Annika Rücker)

“O Mago que era Mestre” a minha homenagem ao Mestre José Saramago - Evocação dos 16 anos da entrega do Prémio Nobel

Texto poema, escrito para assinalar o 16.º aniversário
Da cerimónia de entrega do prémio Nobel
Na Academia Sueca



“O Mago que era Mestre”

Não roubei palavras, as palavras nunca têm dono
Todos somos donos de todas as palavras
Uso-as como retratos do meu ser
Às vezes peço-as emprestadas
Outras vezes são-me oferecidas
Um dia, lá longe, tão longe, tão longínquo
Que da memória apenas guardo um afago
Um mago bateu à minha porta
Deixei-me abrir, abri a porta, como teria aberto antes
Abrirei se assim voltar a acontecer
Estupidamente não perguntei quem era, como que já o esperasse
Estupidamente não perguntei ao que vinha
Deixei-me abrir assim a porta, como quem abre o coração da sua casa
Ele não estava, estando, não estava
Não bateu só à minha porta
Não iria bater só à minha porta
O mago seguia o seu caminho
Por cada porta que passava, batia três vezes
Três vezes, como os antigos carteiros faziam para anunciar as novas que traziam
Quando abri a porta, o mago já ia longe
Percebi-lhe a sombra, caminhava, seguia
Percebi que a sombra de um homem é tão grande, quanto ele a possa imaginar
A sua sombra caminhava e crescia 
O mago seguia o seu caminho, caminhava, caminhando
Deixava as suas palavras
Colocava-as à beira de cada porta com cuidado
Não eram peças que pudessem ser arremessadas
Algumas portas estavam fechadas, numa eternidade enclausurada,
Eternamente cerradas em si
Nem toda ou qualquer pessoa está precisada de palavras
Nem toda a gente, debaixo da sua própria sombra, procura palavras
Muitas portas ficam fechadas
Muitas portas ignoram
Muitas portas procuram ficar fechadas para sempre, com suas janelas quais com olhos fechados
Janelas fechadas com mentes inertes, imóveis e estanques no que são
Alguns vêm à porta, escutar se os passos já foram, ignorando que as palavras podem ser mudas
Outros abrem a medo o postigo
Não raros, entreabrem a porta presa por uma corrente, não vão as palavras assaltar sem avisar e invadir esses antros receosos
Incautos e surpreendidos, muitos barram passagem à espuma das palavras
Essas, que de umas, trazem companhia, outras e mais outras, e mais e mais que se aproveitam
Ouvem-se portas bater
Que batam, quem das palavras não aprouver necessidade
Que batam, quem medo tenha de novas palavras
Que batam, por deseducação
Que batam, porque sim, e por distracção 
Ouvem-se portas bater
Confusos por não estar ninguém, que estando, deixava cuidadosamente as suas palavras
Uns que ainda as aproveitavam, outros nem tanto
Tantas palavras que assim esmoreciam e esfumavam, regressariam ao caminhante, talvez
Aqui e ali, pelo caminho fora, observa-se que muitos,
Muitos, mas muitos, tantos, mais do que o mago previra ou iria algum dia vir a prever 
Seguem o mesmo caminho
Colhendo-as, como que, quais pardais que esmiúçam as migalhas do chão

Tantos que seguem esse caminho
Também existem homens e mulheres, que com palavras dadas procuram outros significados
Mais significados para as respostas já dadas
Mais significados, que descobrem novas perguntas
Que buscam mais certezas para avolumar às suas incertezas primeiras
Que dos pesadelos das terras áridas buscam novos sonhos
Mas que mago será este, será mesmo um mago?
Se as suas palavras entregues a quem as aprouver não têm respostas
Não dará um mago a resposta a todas as perguntas?
Se as suas palavras depositadas mais perguntas levantam
Dizem que ouviram perguntar – para quê e o porquê de mais perguntas?
Não bastava já as que os idos tempos ainda não tinham resolvido
Mas que mago será este?
Quando os que abriram as portas, que das entranhas sopram urgência de respostas
Quando os que desorientados procuram novos sentidos e indicações que façam sentido
Um dia, lá longe, de tão longe, tão longínquo
Que das memórias guardo apenas um afago
 Tive a sorte de me baterem à porta
Tive a necessidade de procurar palavras
Muitos de nós tivemos a sorte de nos bateram à porta
Terríveis palavras, tormentas e atormentados
Cruas verdades, para os que se levantam do chão e das suas terras
Mais palavras para os que tentam construir “empresas” maiores que as suas capacidades,
Recordando de igual forma, os tempos dos caminhantes marítimos que empreendiam viagens longínquas
Viagens quem prometiam descobrir novos horizontes promissores 
O mago caminha, vai caminhando, altruísta, o caminho que o escolhia para que seus passos o seguissem
Não pedia que o seguissem
Não assobiava para se anunciar
Não havia qualquer murmúrio de chamamento
Não há memória que alguém testemunhasse 
O mago será mago?

Estranhamente o mago não era mago, que o sendo, não era
Não era feiticeiro, nem paladino, nem profeta de outras causas gastas
O mago que não era mago, abominava as outras palavras, as palavras que anunciavam as certezas
Seguia o seu caminho
Seguia… não carregava paus, cruzes e amuletos,
Seguia…  tocava às portas, e não estando para quem as abrisse, estava
Ouviram dizer muitos murmúrios sobre o mago
Ouviram dizer que o mago procurava que as pessoas saíssem debaixo da própria sombra e se libertassem
Abandonassem a caverna dos sentidos ensombrados onde se permitiram mergulhar
Sabe-se lá quantos são, os amarrados e mergulhados nesse assombro
Ouviram dizer, que alguns tinham visto um belo sol, tão belo, quanto aquele sol que se vê pela primeira vez
Outros tinham sentido um sol tão forte, como aquele que nos aquece a alma
Ou que o sol luminoso, tão luminoso como aquele que nos obriga a tapar o olhos com os dedos entreabertos 
Quanto sol seria necessário existir para que as pessoas o pudessem vislumbrar por cima das suas sombras
Houvera também quem tivesse dito que o vento que varre as folhas das árvores
Esses ventos fortes, tão fortes, poderiam não ser suficientes para abanar as consciências nubladas
Eólo poderia soprar eternamente, mas poderia não bastar para esta gesta
Mas o mago não trazia nenhum sol
Mas o mago não colocava nenhum floco de luz ao lado das palavras depositadas
O mago não deixava correr nenhum vento, maior que aquele que soprava na rua
Iluminava a alma de muitos sem anunciar a luz
Soprava a consciência de outros tantos sem lhes soprar 
Tocava à porta três vezes como os carteiros ainda fazem para anunciar as novas
Deixava as palavras a quem as procurava
Deixava palavras a quem por assombro as pudesse recolher
Deixava um trilho já caminhado a quem procura um novo sol
Que das sombras das casas fechadas, as janelas pudessem ser finalmente abertas de par em par
O mago batia às portas e seguia
As mentes que se agigantavam de novo, agora maiores que a sua própria sombra
Os medos que não desapareciam, mas que eram enfrentados
As consciências que subiam das cavernas
As sombras que subiam chaminés e trepavam muros intransponíveis
As sombras que eram obrigadas a desvanecer e a criar corpo
O mago, que mago será este?
Aqui e ali ia trazendo pessoas a uma nova luz a um novo sol
Sem querer ia destapando buracos de onde emergiam sombras
Outros que iam somando a mais alguns
Havia palavras havia luz
Havia perturbação havia inquietação
Inquietos que procuravam novas palavras
Iluminados que assumiam novas inquietudes
Qual legião de desassossegados brotavam das suas almas
Um dia, depois de muitas portas ter batido
Regressou, regressou… o caminho devolveu-lhe o regresso
O caminho conduziu-o pela tal encosta acima
O mago que não era mago, foi obrigado a pausar o seu passo de caminhante
O mago que não era mago, conduzido, regressou ao seu espaço
Sentou-se numa pedra, perto da sua Oliveira, ainda apanhando um pouco da sua sombra
Sua que não sendo, porque as árvores são como as pedras, e as pedras não são de ninguém 
Mas o mago pedia este espaço emprestado e dele ser servia
Os seus olhos apontavam o horizonte, para lá, muito para lá, 
Um horizonte, para lá de onde os nossos olhos alcançam
Aí é o horizonte, o lugar para onde enviamos a nossa mente quando buscamos um local para pensar
As pernas cansadas, de tanto percorrer caminhos
Os pés, doridos de tantos sulcos terem cavado pelas terras que pisaram
As mãos, essas pobres coitadas, poderiam estar esvaídas em sangue de a tantas portas terem batido
A sua Oliveira, porto de abrigo, como se de uma jangada tratasse
A sua Oliveira, que tão torcida estava, abria largas pernadas disformes
Desde tempos, que o tempo deste mago desconhecia, que já as suas raízes tinham cavado as terras fundas
Cada vez que o mago, aqui tornava
Cada vez que o mago por aqui passava
Aproximava-se da Oliveira e abraçava-a
Era assim que o mago pensava sentir o mundo, o pulsar das gentes e das terras
Seria aqui, que o mago que não era mago, vinha buscar mais palavras?
A árvore que sempre esperava o seu abraço, mesmo que o não pudesse esperar
Por um momento, tudo se fundia num só sentido, num sentir diferente
O homem, a sua árvore, a sua pedra… todos seus e uns dos outros
 As raízes da Oliveira, que sentem o pulsar do sangue bombeado
Os braços do mago que asfixiam o tronco, se mais pudessem, para sentir a seiva desta raiz profunda
Assim era desde que há memória, e que alguém estivesse presente para agora testemunhar
Mal o mago se pôs a caminho, que assim passou a ser
Desta vez, o mago pausou antes, a urgência impunha que se sentasse na pedra
Desta vez a árvore não foi abraçada
Este homem que habitualmente aqui passava para abraçar a Oliveira, desta vez, sentou-se
Simplesmente, unicamente, sem mais olhares para mascarar o remorso
Foi a pedra, cuja face estava enterrada no chão, sentiu a urgência de quem lhe chegava
A urgência tem um sentir diferente, o frio marmóreo 
Nada vibrava, nada tremia, faltava a energia, faltava a pressa de quem se lhe apoiava para descansar entre jornadas
Desta vez, aqui chegado, o mago que não era mago, não tinha urgência de seguir
Teria perdido a impaciência de retomar caminho
Naquela rua, naquela qualquer rua, o mago não bateu três vezes à porta
Naquela rua, lá longe, a gigante sombra do caminhante não está seguindo
Naquela rua, onde os cães não ladram, agora poisam as suas cabeças em cima das patas
Naquela rua, ali mesmo, os cães deixam cair lágrimas
Ali, como em todas as outras ruas, onde alguns tinha aberto a porta
Onde alguns recolheram palavras depositadas
Onde alguns, espalhados por todas as ruas
Abriram as suas portas e janelas, deixando entrar a luz que de lá de fora aprouvera existir
E desta vez, o mago que não era mago, não pôde testemunhar
Não testemunhou as portas e janelas abrindo, como se fossem peças de dominó, caindo, umas atrás das outras
A luz que entrava pelas portas dentro, a luz que servia para iluminar as palavras depositadas
Hoje as palavras não foram deixadas
Hoje alguns não recolheram as palavras
Não foram depositadas palavras emprestadas, para novas perguntas fazer amanhecer
Hoje, alguns, os que sentiram necessidade de abrir a porta,
Os outros, que entretanto, chegando e aproximando aos poucos, destes alguns
Largaram um suspiro ao vento
Largaram ao sopro do vento, uma força para que pelas terras pudesse empurrar novos ventos
Largaram um suspiro que levantasse todas as palavras semeadas
Palavras ditas, agora murmuradas entre lábios fechados, sussurrando pelos caminhos da sombra do mago
Um murmúrio silencioso e abafado ecoava
Tal não é a força do som do silêncio
O mago que não era mago, sentiu ao longe, tão longe, os murmúrios que ecoavam
A aragem que não era uma brisa, deixou de ser aragem
A brisa que não era vento, deixou de ser uma brisa
O vento que não era vento, era outra coisa
O mago que não era mago, adivinhava a chegada, sentia um regresso
Regressou, chegava até si…
Lá em baixo, os juncos e as canas oscilavam e adornavam junto ao riacho
Regressou, subia até si…

Era a hora, tinha chegado a hora
O mago que não era mago, levantou-se, ergue-se sobre si
Dos seus pés nascia uma sombra, uma sombra que o acompanhava, sua companheira
A sombra com que muitos homens e mulheres se sentiam encaminhados
Esta sombra que nascia dos seus pés, regressava também
A sua sombra que sempre abriu caminho para novas palavras
A sua sombra que sempre abriu novos caminhos a outras perguntas
Regressava agora ao tamanho do seu mundo
O mago que não era mago, que não o sendo, era
Erguido sobre a sua sombra que o ampara
Da algibeira retirou o coto, aquele que ontem teria sido o lápis com que ia depositando as palavras
Este coto depositado em cima da pedra, que aqui ainda se agiganta através da sua sombra
Da mesma pedra sentinela, de onde se contemplava o horizonte
Agora esta pedra, que deixará de observar o ali, lá longe, será guardiã do lápis que teria oferecido palavras
A sombra regressou ao tamanho do homem
O seu a seu dono, o lápis e a réstia de grafite em cima da pedra
A sombra regressada, fraca e assustada com a finitude do caminhante
O seu a seu dono, o mago que não era mago, era tornado mestre,
De mestre vestiu tal pele durante a vida
O mago que era mago, pela força da sua sombra que abraçava os homens e mulheres que escolhiam abrir as suas portas
O mago que caminhava, e que a sua sombra tantos caminhos teria desbravado para novas perguntas 
O mago que batia três vezes à porta, depositava cuidadosamente as palavras e seguia a sua sombra
O mago que se sentia mestre
O mestre erguido, dobrou-se e apanhou com as duas mãos um punhado de terra negra
Terra que é o princípio e o seu fim
A terra, a mãe original de todos nós e onde acabamos por ficar
Levantou as mãos e lançou ao ar o punhado de terra negra
Lançou ao vento, ao vento que era a força das vontades, estes grãos de terra
O vento carregado de murmúrios e de palavras ditas em silêncio
As palavras empurradas pelo vento, abraçavam agora cada grão de terra
Os ventos aqui chegados, com suas línguas melancólicas, deixaram cair lágrimas
Cada lágrima caída, cada palavra abraçada, cada gota entornada como uma troca
O mestre que terra mãe tinha acabado de lançar
O mestre que erguido sobre a sua sombra, sentia tocar sobre si o afago de todos os homens e mulheres
O mestre que de pé, sentia as gotas abraçadas e entrelaçadas com palavras dentro,
Sabia da urgência que o tinha feito sentar naquela pedra onde jaz o coto do lápis
Os ventos que ali depositaram as nossas gotas sofridas de tantas perguntas
Os ventos que ali descarregaram as nossas lágrimas 
Estes ventos retornaram os mesmos caminhos
Os ventos regressaram com estas novas
O carteiro que também era companheiro deste mestre, que mago não era
Regressou depois de passar os ventos
Regressou à sua gesta de todos os dias, todos os dias batia três vezes a cada porta
Tinha chegado a hora,
Chegava o tempo em que a urgência esmorecia a sua pressa
O mestre aproximou-se da sua Oliveira, e abraçou-a
Abraçou esta sua amiga, abraçou o seu tronco nodoso 
Apertou sobre o seu peito, apertou e entrelaçou os seus dedos
Encostou a face, e deixou-a descair
Tanto para a Oliveira como para o mestre foram segundos de eternidade
Foi um tempo sem fim
Foi um momento em que as raízes sentiram o lento pulsar do mestre
Foi um momento em que o mestre sentiu a paz em que esta Oliveira sempre viveu
A eternidade estava de regresso 
A eternidade tinha poisado sobre este mestre
A eternidade tinha poisado sobre o mestre, discípulo da pedra e da Oliveira
A Oliveira enraizada e entranhada na terra mãe, que sempre espera o nosso regresso
O outro enraizado sobre a sua Oliveira, donde todas as palavras tinham sido colhidas
Sentado à sua beira
Desta vez não depositou palavras
Desta vez, simplesmente se despediu…

Um dia um menino, subiu este monte, e ao lado da Oliveira colheu uma flor
Disse … sentiu dentro de si…, disse estas palavras
Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam

(Escrito por Miguel de Azevedo)

Texto poema, escrito para assinalar o 16.º aniversário
Da cerimónia de entrega do prémio Nobel
Na Academia Sueca

16 anos da cerimónia de entrega do prémio Nobel...


... é como se fosse hoje