Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Adelino Gomes e a reportagem "O nó na garganta do aprendiz" - Entrega do prémio Nobel (8/12/1998)

Reportagem sobre a entrega do prémio Nobel em 1998, realizada por Adelino Gomes e Alexandra Lucas Coelho, para o jornal Público.
Publicada em 8 de Dezembro de 1998




"O nó na garganta do aprendiz"

"O garoto da Azinhaga que "andou sempre descalço até aos 14 anos" terminou ontem a sua conferência de Nobel com a Academia a aplaudi-lo de pé: "Obrigado mestre. "A ele, que se apresentou como "aprendiz" num discurso quase íntimo por dentro da infância e dos livros. Comoveu e comoveu-se. Mas não deixou em sossego a Igreja, a Europa e os "poderosos do mundo”.
“Mestre Saramago, aqui, aqui!" Cercado de gente que assim o chama, José Saramago sorri, tentando corresponder aos acenos, às perguntas, aos pedidos de autógrafos, mãos ocupadas a assinar o seu nome de Nobel da literatura de 1998 nos livros que lhe, vão dando e nas cópias do texto que acaba de ler, emocionado perante a Academia Sueca — o discurso em que se define como aprendiz desses "mestres de vida" que foram os seus avós e, "essas dezenas de personagens de romance e de teatro", de repente vivas, a desfilar ali.

"Obrigada mestre", justamente assim lhe agradeceu Sture Allén, secretário permanente da Academia Sueca, mal Saramago terminou e a sala rompeu a aplaudi-lo, de pé. Demorou 45 minutos a comovente viagem de papel que o escritor partilhou com as centenas de pessoas que se juntaram às 17h30 (hora local) de ontem no salão de um velho palácio de Estocolmo, que já foi da Bolsa e agora é sede da Academia.

Lá fora era noite escura e nevava. Lá dentro um homem de 76 anos, em pé num pequeno estrado, rodeado de estátuas de gesso e lustres dourados, de frente para a mulher amada, Pilar, folheou uma a uma as 15 páginas de um discurso como a Academia Sueca não se lembra de ter ouvido, quase íntimo na memória da infância, quase mágico no súbito aparecimento de todas as suas personagens, como se a uma única, longa, história pertencessem, encadeadas, umas dando origem às outras, e ao que o autor foi sendo. Como se num fim de tarde de uma cidade escandinava precocemente anoitecida algo, dentro de Saramago e do que ele escreveu, se iluminasse para revelar. um sentido, um fio, um fim.

"Foi vivido." Erik Lorinroth, o mais antigo membro da Academia Sueca não encontra melhor palavra para resumir ao PÚBLICO o que acaba de ouvir, depois de 46 anos a escutar 46 prémios Nobel da Literatura, nesta mesma sala, "Foi maravilhoso. Cada discurso é muito diferente do outro, mas este baseou-se muito na própria vida do premiado.”



Expõe-se assim um romancista perante o mundo, a lembrar o tempo em que andava descalço na aldeia, "sempre descalço até aos 14 anos", em que ajudava o "avô Jerónimo nas suas andanças de pastor", e ia com a avó Josefa pela madrugada ambos "munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado", esse tempo em que "nas noites quentes de Verão, depois da ceia", seu avô dizia "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira" e iam, e "enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos" que o avô contava, "lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias" que e mantinham desperto.

José Saramago, na sua tribuna de Nobel: "Nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência mundo." Porque esse avô "deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras". E é neste momento que a voz do neto treme, tantos anos passados sobre o tempo da figueira, à beira das lágrimas numa sala solene que o escuta, em silêncio, suspensa, os 18 membros da Academia debruçados sobre a tradução sueca das palavras que ali estão a ser ditas, em português.

"Esteve quase a ir-se abaixo", comentará depois Zeferino Coelho, editor e amigo de Saramago há tempo bastante para não se enganar. Pilar del Rio, a espanhola que apareceu na vida do romancista português quando ele já "não podia esperar nada assim", confirma esse nó na garganta em que se embrulharam as palavras do Nobel, a meio da viagem entre a infância e os personagens. Pilar esteve sempre de olhos levantados para o marido, sem folhas brancas no colo porque as sabia de cor sempre de olhos levantados para o que fosse preciso. Para quando Saramago precisasse.

Gente capaz de dormir com porcos

Da Azinhaga, da "gente paz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito" e que, como o avó Jerónimo, ao pressentir a morte, se despedia "das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas chorando porque sabia que as tornaria a ver", desse mundo partiu Saramago para contar as personagens dos livros que lhe deram o Nobel.

"Ao pintar os meus pais e meus avós com tintas de literatura(..) estava, sem o perceber a traçar o caminho por onde as personagens iriam fabricar trazer-me os materiais e as ferramentas que (...) acabariam por fazer de mim a pessoa em hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei."



Ei-las a desfilar, pela mão do autor, como bonecas russas umas contendo as outras, num descendo pela sala da Academia, desenhando aos poucos uma certa forma implicada (logo, política) de ver o mundo. H, o "medíocre pintor de retratos" ("Manual de Pintura e Caligrafia) que ensinou a Saramago "a honradez elementar de reconhecer e acatar, sem ressentimento nem frustração" os seus próprios limites; "os homens e as mulheres do Alentejo" ("Levantado do Chão") que o escritor conheceu como gente "enganada por uma Igreja tão cúmplice como beneficiária do poder do Estado e dos terratenentes latifundiários, gente permanentemente vigiada pela polícia, gente, quantas e quantas vezes, vítima inocente das arbitrariedades de uma justiça falsa"; Luís Vaz de Camões ("Que Farei com Este Livro?"), "génio poético absoluto, o maior da nossa Literatura" que "regressa pobre da Índia onde muitos se iam para enriquecer", "soldado cego de um olho e golpeado na alma", "sedutor sem fortuna" que revelou a Saramago "a humildade orgulhosa" e "obstinada" de "querer saber para que irão servir amanhã os livros que andamos a escrever hoje"; Baltasar, Blimunda e Bartolomeu ("Memorial do Convento"), "três loucos portugueses do século XVIII, num tempo e num país onde florescem as superstições e as fogueiras da Inquisição" e onde habita "uma multidão de milhares e milhares de homens as mãos sujas e calosas, como corpo exausto".

E o cortejo prossegue com Ricardo Reis, "mestre de arte poética" que há-de terminar no princípio da "Jangada de Pedra", romance que foi "fruto imediato do ressentimento colectivo português pelos desdéns históricos da Europa". Aqui, o Nobel abre um parêntesis no seu discurso e corrige: "Fruto de um meu ressentimento pessoal...". E sublinha, perante a Academia, a metáfora da jangada de pedra: "Que a Europa, toda ela, deverá deslocar-se para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente como ética."

Viva a literatura

A plateia ainda o ouvirá regressar, com ironia, à Igreja, no momento em que auto-define "O Evangelho segundo Jesus Cristo" como "herético ao não ser "mais uma lenda edificante de bem-aventurados e de deuses, mas a história de uns quantos seres humanos sujeitos a um poder contra o qual lutam, mas que não podem vencer." Sobre as crenças religiosas, "essas que com tanta facilidade levam os seres humanos a matar e a deixar-se matar" repetirá, de pé na sua tribuna de Estocolmo, três vezes a palavra “intolerância".

E assim chegamos à última página (a 12, nas cópias que a assistência tem na mão, a 15 no original do autor), em que Saramago, "o aprendiz" explica que no "Ensaio sobre a Cegueira" quis recordar "que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo". Depois, "como se tentasse exorcizar os monstros", pôs-se o aprendiz a escrever "a mais simples de todas as histórias", a que contém todos os nomes", "dos vivos e dos mortos", a que foi publicada meses antes de a Academia Sueca decidir que a este aprendiz chamaria mestre.

Sem uma única vez ter pronunciado a palavra "Nobel", José Saramago fica de pé, no fim do seu discurso, no meio das palmas. 0 secretário permanente da Academia diz em francês: "Obrigado mestre, obrigado laureado, viva a literatura, o romance, Saramago!" E ele embaraçado a sorrir, dois passos adiante no pequeno estrado, cruza os braços contra o peito, agradece à esquerda, à direita, avança um passo mais e estende a mão para Pilar. Assim ficam por um segundo, só os dois no meio da sala, antes de começar o cerco."

Texto publicado na edição de 8 de Dezembro de 1998

Entrevista ao Público, por ocasião do lançamento da obra "A Viagem do Elefante" - 7/11/2008



Entrevista a Saramago, por Sílvia Souto Cunha, publicada no Público a 7 de Novembro de 2008

Aqui, em http://visao.sapo.pt/memoria-de-elefante=f497069


(Imagem da peça de teatro, baseada na obra e encenada pela ACERT)


"Memória de elefante"

"Saramago atravessou para o lado da escuridão e regressou. Tem um novo livro, A Viagem do Elefante, um filme a partir de Ensaio sobre a Cegueira, um blogue em nome próprio, dez anos cumpridos de Nobel... Um modo de ressuscitamento."

"Há talvez um voyeurismo, como se ele fosse um Lázaro. E uma homenagem sentida, este corropio de entrevistas que cerca agora o Nobel português. Cabeça de pássaro, figura magríssima, voz frágil, Saramago é, ainda e sempre, lúcido, sarcástico, atento, atirador de farpas. A vida venceu a morte, pulsa à sua volta no novo livro, no filme realizado por Fernando Meirelles, na Fundação José Saramago que se transplantará para a Casa dos Bicos, no blog pessoal (em http://josesaramago.org ), nas lágrimas que lhe rasam os olhos quando fala da cena que mais o impressionou em Ensaio sobre a cegueira: "Quando as mulheres vão para a camarata vizinhas, para a violação, e nós as vemos passar por trás de uma janela, em fila... Para mim, naquela passagem delas, de cabeça curvada, está representada a história da mulher." 
"O que tiver de ser meu às mãos me há-de vir ter'. Que presunção é essa, que consciência de importância era essa, seu rapazote?", recorda ele aos 86 anos, a frase dita aos 18. Depois do Nobel, de 41 obras, peças, diários, depois de Lanzarote, depois de Pilar del Rio. A pergunta última será interrompida por ela, atenta à agenda. Há alguma coisa que falte vir à sua mão? A resposta: "Não falta nada. A única coisa que eu quero ter ainda é vida. Vida para viver, vida para viver com quem vivo, se possível trabalhando. Se eu faço um balanço, operação bastante inútil, enfim, pois balanço feito pelo próprio é sempre suspeito. Se eu olho para trás, independentemente dos triunfos, das glórias, aquilo que eu gosto mais é encontrar um sujeito consciente, coerente. Coerente. Nunca cedi às tentações do poder, nunca me pus à venda."



Em A Viagem do Elefante, um aldeão questiona o padre sobre Jesus. É o seu habitual desmontar do aparelho teológico através de homens simples, do senso comum? 
É mais a forma como eu digo algo que já disse. O diálogo está articulado de forma natural, com a naturalidade que a literatura pode ter. E muito estimulante, porque dá a ideia de que o leitor estará a assistir, ia dizer ao despertar de uma consciência, mas ao manifestar de uma consciência. A consciência do aldeão que enfrenta o cura com uma arma: a lógica. Gosto disso. O senso comum faz-nos muita falta. Pode ser provocante, chato. Mas também pode apresentar-se como algo muito tónico que é o desmancha-prazeres. Ou, como dizem os franceses, o 'empecher de danser'."

O senso comum é, neste momento de crise, é a única arma possível dos intelectuais, das instituições, das pessoas comuns?
Não é a única arma possível. E o senso comum não é uma arma, é um modo de relacionar-se, é uma relação que se propõe um certo equilíbrio, um reconhecimento tácito de certas verdades elementares. Enfim, são aquelas coisas que, no fundo, são uma espécie de consensualidade em que muitos podemos dialogar uns com os outros, partindo de bases que são compartilhadas, e que permite um discurso - que pode não levar à concórdia. Mas uma discordância  sobre a qual se fala já é algo mais do que uma discordância. Bastaria, no caso da crise actual, um pouco de senso comum para perceber que tudo aquilo iria conduzir-nos ao maior desastre deste século e não sei de quantos séculos mais.

Senso comum ou honestidade?
Os princípios do capitalismo, os banqueiros sobretudo da Europa central, eram quase todos calvinistas com o sentido moral de existência até demasiado rígido. Enfim, era assim que eles viviam. Esse espírito resultava de uma determinada concepção religiosa, ou de uma interpretação do cristianismo que formava pessoas de códigos de regras morais que, para eles, seria inconcebível pensar em infringir. Ora bem, a banca, com a passagem do tempo, deslocou-se até se transformar naquilo que é - o seu contrário. Esperaríamos encontrar senso comum em pessoas alcandoradas, por meios próprios ou por razões de outra ordem, a situações de poder. Como os grandes banqueiros, os grandes industriais, os grandes fazedores de dinheiro sobretudo para si próprios. Aquilo que nós chamamos 'uma certa moralidade'. Que no fundo se traduz naquele preceito, tão simples, tão simples, que é: não faças aos outros aquilo que não quiseres que façam a ti'. Todo o espírito de justiça social ou justiça em geral, está contida numa frase tão de senso comum como esta. Num artigo que publiquei, aqui em Portugal e em Espanha, a que chamei de Crime financeiro contra a humanidade, apelava a esta ideia: que se está a cometer um crime que, como tal, deveria ser julgado. Esta gente devia ser julgada nos tribunais. 
Isso causou, nessa altura, reacções bastante destemperadas como se eu tivesse dito alguma enormidade. Pois já se está a falar disso! Milhões e milhões de pessoas desempregadas por efeito de acções, delitivas ou não, que têm consequências tremendas para pessoas, famílias - e que se compraziam nas delícias, autenticas ou supostas, da classe média, com o seu carro, a sua capacidade de consumo, as suas férias, e que de repente... Há pessoas aqui que há 4 ou 5 anos colaboravam em acções de ajuda humanitária, e que agora estão à espera que alguém os ajude. 

Há quem defenda aqui uma oportunidade - um castigo para justos e pecadores, quase - para que se possa renascer melhor. Um sistema melhor. O que lhe parece essa opinião?
Isso é um discurso moralista que não leva a lado nenhum. Pode ser que leve a isso, mas não por essas razões. Aí teríamos que perguntar, quem é que nos está a castigar? Deus nosso senhor, uma vez mais? Não podemos classificar-nos de cúmplices do que está a acontecer. Transformaram-nos em sujeitos passivos, dispostos a usufruir das benesses do desenvolvimento - carros para toda a gente, férias no Pacifico para todos, consumo à disposição, crédito ilimitado para criarmos dívidas que dificilmente pagaríamos mas que, no momento em que o dinheiro entra em casa, parece que o problema da felicidade pessoal e familiar ficou resolvido... E, de repente, acordámos. Isto explodiu. Temos culpas? Provavelmente sim, mas onde é que estavam as ideias capazes de organizar-nos, ideias inteligíveis e mobilizadoras das consciências e vontades para se opõr a isso? Pode levar a uma mudança, mas precisamos de ideias. Não vamos a parte nenhuma sem ideias. 

É uma forma de dizer que precisamos de uma ideologia forte? 
Ideologia, já temos. É a ideologia do consumidor.  A facilidade de consumir forma ou deforma a consciência da pessoa. Isso acaba com tudo! Porque preencheu o espaço de uma determinada ideologia, fosse ela qual fosse. Já não és um cidadão, és um consumidor, um cliente. A partir daí, a pessoa vai cumprir as obrigações inerentes a esse facto: vai comprar e comprar e comprar. Isso acaba por ocupar todo o espaço mental na sua vida. Essa situação acabou neste momento. Acontece que a esquerda não está preparada, não se preparou para esta eventualidade.  Não vamos chamar, referindo-me exclusivamente à Europa, esquerda aos governos sociais-democratas ou socialistas. O facto de terem preocupações de justiça social, não faz deles esquerda porque a justiça social não é qualquer coisa de inseparável da esquerda. Claro que uma esquerda sem justiça social não é, não deveria ser, concebível. Mas uma direita pode ter preocupações de justiça social, no interesse da estabilidade do seu poder, há que reconhecê-lo. Agora, ideias para transformar o mundo da maneira como ele se encontra, não é fácil. Onde estão os filósofos, os sociólogos? O problema é que não faltam: pegamos num jornal e não faltam as análises, as propostas. Mas nada disso tem capacidade mobilizadora, porque  as pessoas não se deixam mobilizar, ou porque as razões aduzidas não são suficientemente convincentes, e tudo avança ao pé-coxinho. 

Falta aí uma, digamos, paixão, ingrediente das religiões e dos partidos?
Repare, a paixão partidária já está muito por baixo. E a paixão religiosa fragmentou-se em seitas cada vez mais irresponsáveis, falsas, mentirosas. A facilidade com que um oportunista qualquer monta uma nova igreja, junta uns milhares de pessoas à sua volta para ouvirem aquilo que ouvem - versões ou interpretações completamente abusivas dos evangelhos. E a necessidade que as pessoas têm de ser enganadas. Seria preciso concluir que as pessoas sabem que estão a ser enganadas, e não é assim. Acreditam naquilo. O que é interessante é que acreditam mais no irracional do que numa operação de racionalização. Esta é demasiado fria, não apaixona - para usar essa terminologia. O que é necessário para atingir os seus fins é: quanto mais irrealidade tenha o discurso que congrega esses milhares, mais eficaz se revela. As pessoas gostam de ser convencidas de que 2 mais 2 são cinco. E se aparece alguém a dizer que são 4, é um herege. Ou um desmancha-prazeres. Sobretudo, um desmancha-prazeres.



O José Saramago teve sempre, e apurou até, essa imagem do desmancha-prazeres, do denunciador. Sente-se confortável nesse papel? 
Não me sinto confortável. Mas se me perguntar se me agrada esse papel, sim. É uma expressão da minha maneira de ser. Não suporto enganos. Contei isto algumas vezes: quando era rapazito, ia ao São Carlos - não porque eu tivesse dinheiro para pagar o bilhete. O meu pai, que era policia de segurança pública, conhecia os porteiros. E eu ia lá para cima, para o galinheiro. Houve aí uma alegoria que me ficou para toda a vida. Para quem estava nos camarotes, era uma coroa o que estava sob a tribuna real. Mas para nós, sentados por trás dela, víamos outras coisas: primeiro, que a coroa não estava completa. Segundo, que tinha poeira e teias de aranha dentro e uma ponta de cigarro republicana, posta ali para protestar. Aquilo ficou-me para sempre, o outro lado das coisas. O outro lado da palavra, de tudo o que nos conduz numa determinada direcção, e que é preciso iluminar para que, se não podemos resistir, pelo menos termos consciência. Que não nos levem ao engano, que é uma expressão muito portuguesa. Por exemplo, numa entrevista a um jornal argentino, há uns quatro anos, eu disse que 'a esquerda não tem puta ideia do mundo em que vivemos'. Isto causou um escândalo dos diabos. Que eu, um homem de esquerda, comunista ainda por cima, se atreva a dizer isto! O que, desgraçadamente, é uma realidade. Porque boa parte dessa esquerda vive no passado, julga que ainda pode assaltar o Palácio de Inverno e começar aí uma nova era para a humanidade. O tempo passou, as coisas aconteceram, muitas delas autênticos desastres, crimes, e é preciso rever as próprias ideias à luz desses mesmos acontecimentos. Se as ideias resistem, vamos dar-lhes uma segunda oportunidade. É quando eu digo sobre esta crise, e já me estou a repetir, que Marx nunca teve tanta razão como hoje. 

Quando fala em segunda oportunidade, abrange a via da esquerda comunista? 
Não é a razão póstuma que possa ter Marx que vai resolver os nossos problemas. Eu sou suspeito, como militante que sou. Posso ser acusado de ter uma visão deformada sobre as coisas. Admito que sim. Mas quando olho a Europa e vejo o que aconteceu aos partidos de esquerda... Como pôde este partido, num País pequeno como o nosso, sobreviver ao ponto de poder dizer-se que é o único partido comunista que sobrevive na Europa? A verdade é que o célebre capitalismo que ia resolver tudo, resolveu tão pouco que estamos numa crise e não sabemos como iremos sair dela. As pessoas movem-se mas necessitam que uma ideia as faça mover. 

Continuamos na alegoria da caverna?
Sim. Ainda não saímos daí. Os que se encontravam na caverna de Platão viam imagens no fundo e pensavam que aquela era a realidade. Mas nós estamos numa situação talvez pior. A irrealidade manifesta daquilo que a televisão mostra, é isso que nos atrai. Nós queremos viver vidas impossíveis, fabricadas no contexto da TV, da publicidade. Se juntar isto ao crédito fácil, tem aí milhões de pessoas dispostas a fazer todos os disparates que as levem a acreditar que são felizes. Essa felicidade é uma bola de sabão, que explodiu.

Fala sobre a contemporaneidade, já lhe chamaram o Nobel bloguero. O que o interessou neste Salomão? Porquê voltar atrás na História?
Eu já fiz algumas viagens assim. O Cerco de Lisboa é isso, coloca uma questão fundamental para mim que é a da verdade histórica. A Viagem não é um livro de evasão, uma história simpática e bem-humorada, para o escritor se evadir das ameaças, tristezas e agruras do mundo exterior. A história do elefante que podia ter ido de barco até Génova e subir os Alpes até chegar a Viena, mas que foi andando, andando, milhares de quilómetros, só por si podia dar uma ideia para escrever algo. Mas o que me levou a este livro foi o destino dele no sentido de que lhe cortaram as patas, depois de morto, para as pôr à entrada do palácio como lugar para deixar as bengalas, os bastões, sombrinhas. Narrado até esse ponto, não excluindo esse final, seria uma metáfora da vida humana. 

Salomão somos todos nós?
Não temos patas de elefante para andar mas alguém se aproveitará daquilo que fizemos ou fomos, para tirar daí vantagens, notícias ou até o prazer de conservar uma memória ou um trabalho. Repare, tive o cuidado de não antropomorfizar o elefante, aquilo que é muito corrente quando um autor mete um animal na sua história. A tentação é irresistível, pô-lo a pensar como nós. Eu sei lá o que é um elefante! Um elefante pensa, constipa-se, apaixona-se? Não sei. 

Deixa-se seduzir ao ponto de se ajoelhar perante uma igreja, num "milagre" encomendado...
Sim. Ensinaram-lhe isso. Ele ajoelha-se mas não sabe porque se ajoelha: a questão é essa. O que está diante dele não é a Basílica de Santo António. Ele não sabe o que isso é. Aprendeu a suportar o peso do cornaca, aprendeu outras coisas. O elefante é um dos animais mais usados  - veja-se o circo. Se este livro se dedicasse à realidade histórica, uma página chegaria. O livro tem 260 páginas, portanto 95% é pura invenção. Tive de inventar situações de que não há registo. Há que dizer que aquele caso do salvamento da criança aconteceu. O elefante agarrou-a com a tromba. Se eu tivesse inventado tal, sentir-me-ia mal, estaria a abusar da credibilidade do leitor. 


Escreveu 40 páginas, interrompeu o livro devido à doença respiratória que teve, e acabou o livro depois. A doença mudou a forma de escrever?
Não, não mudou. A questão podia ser posta dessa maneira: um escreveu o livro, e outro esteve doente. Ora acontece que o que esteve doente escreveu o livro. Em primeiro lugar, é estranho porque é que uma doença tão grave como a que tive, não deixa no livro a mais pequena marca. Pilar diz que sim, que é o episódio do homem perdido no nevoeiro. E que isso era premonitório, embora creia que foi escrito depois de ter saído do hospital. O livro conta uma espécie de fábula, feita durante um tempo em que estive entre a vida e a morte. Algumas vezes, mais perto da morte do que da vida. Podia, consciente ou inconscientemente, fazer alguma citação em que o leitor pudesse pensar 'ah, escreve isto porque tem uma relação com esse momento'. Mas não há nem uma.

Foi uma decisão consciente?
Não foi consciente como deliberação. Agora, estive consciente de que estava a fazer isso mesmo em cada página. Eu creio que, em qualquer caso, nunca escreveria nada que tentasse reconstituir algo que eu tinha vivido num estado de consciência bastante limitado. 

Como fez José Cardoso Pires, após o seu coma, no De Profundis?
Não sei que parte de ficção haverá ou não no livro do Cardoso Pires. Por outro lado, há um antecedente igualmente importante, que é o livro do José Rodrigues Miguéis, Um homem sorri à morte com meia cara. Eu creio que não o faria. Neste caso concreto, seria errado fazê-lo, porque há pouco eu disse que estive entre cá e lá... é muito difícil que eu pudesse pôr uma história, uma versão do que foi a minha situação durante estes meses. 

Mas falou já deste novo livro como um testamento.
Será inevitavelmente um testamento se eu não escrever um outro livro. Com a passagem do tempo, não acredito em testamentos literários. Mas há outras consequências. Acho que o livro é, sobretudo, uma homenagem à língua portuguesa. A minha impressão é que esta doença transtornou a ordenação desses sedimentos: alguns que estariam no profundo passaram à superfície e tornaram-se mais conscientes. Foi uma espécie de revelação, como alguém que descobre que sabia mais do que imaginava. Construções frásicas, palavras que julgava sepultadas nos sedimentos no passado, de repente deslocaram-se para o presente. É como se tivesse captado, sem esforço, algo essencial no meu idioma. Por isso, a linguagem desta Viagem é, ao mesmo tempo, moderna e arcaica. Noutro plano, há a profunda serenidade com que vivi esse momento, inclusive o período mais agudo e perigoso da doença. Amanhã morrerás. Sim.

Teve medo que as capacidades de escrita, a memória, pudessem ser alteradas?
Nunca tive medo. O chamado medo de morrer, o medo de não ser. Tive um momento em que as funções principais do corpo se suspenderam. Creio que, aí, o vencedor dessa batalha foi o coração. Tenho um coração excelente. Enquanto o resto ameaçava falhar, ele continuava a trabalhar. Saí e vivi essa parte já consciente da minha realidade com essa profunda serenidade, que sempre tive mas que se cristalizou. Hoje, surpreendo-me com ela. 86 anos. Devia estar preocupadíssimo em chegar aos 87. Mas não. Sairei da vida quando tiver de sair. Já podia ter saído, não calhou. Valeu-me a Pilar, que me deitou a mão à gola do casaco e não me deixou cair no poço. 

O criador de banda desenhada Enki Bilal, órfão de pátria, disse que 'a última ideologia que restava era a utopia do amor'. O duo Pilar-José Saramago tornou-se um exemplo, no presente e para o futuro, sobretudo se se pensar na Fundação José Saramago?
Um dos erros maiores que podemos cometer é generalizar a vida pessoal. Não sei se ele tinha razão ao dizer que todas as ideologias acabaram. É como dizer 'A arte acabou, a literatura acabou', e depois não acabam, encontram outros caminhos. E aquilo que fica como única utopia - o facto de lhe chamar utopia já é grave - seria o amor. Mas que espécie de amor? Aquele, bastante egoísta diga-se, que une duas pessoas? Ou, por exemplo, em termos amplos, o amor pela humanidade? É um amor à pátria, a isto, aquilo ou aqueloutro? Não sei. Neste caso, o que há, além do que se chama amor, afecto, tudo isso e muitíssimas coisas, é um sentimento de igualdade. Que não é discutível. Como diria o senhor Sarkozi, não sendo eu muito versado em francês, 'c'est comme ça, il n'a rien a dire'. Também há o sentido do respeito mútuo. Não o simples respeito devido, mas alguma coisa mais profunda pelo que é a identidade do outro. Que, sendo esposa ou marido, é Outro. Não há nenhum sinal de uma subalternidade, não creio que isso possa ser dito acerca de nós. Vivemos num plano de igualdade, como não é frequente. Ou mesmo sendo frequente, nem toda a gente pode exprimir estas ideias num jornal - numa entrevista por exemplo, então nota-se mais. Mas ainda bem. Se se nota e se é verdade, e eu garanto-lhe que sim, que isso sirva não de exemplo, pois não estamos na vida para dar lições a quem quer que seja. Estamos na vida para viver segundo os nosso juízos, os nossos critérios, a nossa forma de entendermos a vida.

A propósito dos dez anos do Prémio Nobel, referiu que sentia que tinha "cumprido bem o papel do ponto de vista cívico". Quer elaborar?
Pode parecer algo supérfluo que poderia ter passado na entrevista sem ser referido. O prémio Nobel é o que é, prémio esse para um escritor português, atribuído praticamente um século depois de ter sido criado. O Prémio Nobel não tem nenhuma espécie de caderno de responsabilidades. Trata-se apenas de ir lá, receber a medalha, o diploma, o dinheiro, e se quiser fica-se por aí. A academia sueca não nos pede explicações sobre como estamos a viver esse prémio. Mas pensei que as minhas obrigações iam muito além do literário. O prémio era para um escritor, para a literatura, para um certo modo de fazê-la, pensá-la, criá-la. Mas também era um prémio para Portugal. Quando disse então que "os portugueses tinham crescido três centímetros" - todos nós nos sentimos mais altos, mais fortes, mais formosos até. Só havia uma coisa a fazer: era viver e fazer viver o mais intensamente possível as consequências do prémio. Estive em aldeias portuguesas, onde me encontrei com a filarmónica, os foguetes, o rancho a dançar, as crianças, os velhinhos que nem sabiam ler mas estavam ali. Acho que fiz bem em estar ali! Quando digo que, no plano cívico, estive à altura do Nobel, não quer dizer que o prémio exigisse aquilo! Mas era importante, e não era menos importante que eu viajasse. E houve a repercussão: as distinções honoris causa que recebi, já vão em 34 ou 35, e esperam-me mais duas: da universidade de Quioto e da universidade de Budapeste. Não quer dizer que tenha andado por aí como embaixador da cultura portuguesa, há pessoas muito mais responsáveis e com mais razões que podiam assumir-se como tal. Mas fiz tudo aquilo que podia. Cansei-me, pois cansei-me. Viagens longuíssimas, cerimónias, recepções, muitos apertos de mão, muitos sorrisos, e eu sou todo ao contrario, mas compreendia que havia de engolir até ao fim. Não me estou a queixar, foi muito lisonjeiro esse reconhecimento.

A Fundação José Saramago é a expansão natural desse dever cívico?
Minha cara, eu sou suficientemente antigo (não me custa nada reconhecê-lo) para poder ser moderno quando me apeteça. Sendo eu a pessoa que sou, não tinha outra saída. Se fosse esta a maneira da maioria das pessoas participarem numa alegria que, sendo minha em primeiro lugar, também poderia sê-la para outros. Muitos deles nem me leram, talvez agora o façam com A Viagem do Elefante.

Ou talvez também o leiam devido ao filme, Ensaio sobre a Cegueira, realizado por Fernando Meirelles a partir do seu livro. De que gostou muito, disse-o já. 
Muitíssimo. Não me surpreende nada que os Estados Unidos não tenham gostado, mas no Brasil, que me interessa muito mais, já vai quase no milhão de espectadores. E segundo me disse o Fernando, há uns dias, esperavam cerca de 500 mil pessoas. Eu tinha visto uma versão do filme, no início deste ano, no São Jorge, mas a projecção foi muito má. Agora, em Alcochete, naquela sala enorme com 900 pessoas, num ecrã como nunca vi em parte nenhuma, Ensaio mostrou-se-me como aquilo que é: um grande filme. Um grande filme. Tudo aquilo que é essencial no romance é essencial no filme. E não vale a pena entrarmos nessa discussão sobre se se pode ou deve adaptar, ou não, se é melhor o livro ou o filme... Essa é uma obsessão inútil.

Disse certa vez que gostaria de ser recordado pela cena do Ensaio sobre a cegueira, em que o cão lambe as lágrimas da mulher. Gostou de a ver no ecrã?
Sim. Mas gostaria que o cão fosse um pouco maior. Porquê? Nós, os escritores, somos assim, temos de encontrar umas respostas interessantes, senão o que seria da nossa reputação? Mas isto não é uma espécie de capricho. Tem a ver com o que sinto na relação com os animais. O cão é um animal muito particular, transforma-se num elemento da família, numa plataforma de entendimento entre as pessoas. Disse isso porque presumo que não é qualquer um que é capaz de inventar um cão que lambe as lágrimas a uma pessoa para consolá-la. Claro que não sei se o cão fez isso para consolar, mas essa é a imagem que fica. Mantenho a resposta. Embora tenha dúvidas sobre se não deveria colocar, ao lado do cão, o elefante a quem mudam até o nome. 

Reconheceu-se no narrador, interpretado por Danny Glover? 
Não. O Fernando Meirelles pretendeu fazer do personagem com a pala preta uma espécie de alter ego meu. Chegou a pensar num certo tipo de participação minha, e eu disse-lhe 'nem pensar'. Porque eu não sou actor, porque não tenho nada a fazer ali. O que tinha a fazer, o livro, estava feito. A minha presença, por muito curiosa que pudesse ser, não acrescentaria nada e deslocaria o foco. O que eu quero é que o filme seja ele, o que é, como é, e para que é. E isso está conseguido. O personagem, e o actor é muito bom, evoca-me mais talvez pelo tom em que diz as coisas do que pelo que diz: um tom de sagesse... Sabedoria mas não só, as palavras não são traduzidas de uma língua a outra 100%. Como dizia alguém, uma rua não é uma calle nem uma street. Uma rua é uma realidade social particular. Então, o modo de expressar-se do actor, eu diria que talvez se aproxime bastante da minha forma de comunicar as coisas. Sou capaz de dizer as maiores enormidades no tom mais discreto.

Há ainda Julianne Moore, a heroína do filme. Uma mulher que, como quase todas as mulheres, muda estoicamente o mundo?
Tem uma interpretação exemplar. Mas vou dizer-lhe a cena que mais me impressiona no filme: Quando  as mulheres vão para a camarata vizinha, para a violação, e nós as vemos passar por trás de uma janela, em fila... Para mim, naquela passagem delas, de cabeça curvada, está representada a história da mulher.

Não há mulher alguma a conduzir o elefante Salomão...
Não. Há uma arquiduquesa feita para parir filhos, porque para isso está, para isso a fizeram nascer e nada mais. Quando eu dizia que este livro não é um romance, é um conto - embora pela dimensão não o pareça e as pessoas decidem as coisas pela aparência que estas têm - é, no fundo, isso mesmo. A história da viagem de um elefante que vai para Viena (por Figueira de Castelo Rodrigo, Valladolid, Rosas e Génova) não pode ser um romance. Não há nenhuma Blimunda pelo caminho nem uma mulher do médico nem nenhuma das minhas heroínas - como existiam em Manual de Pintura e Caligrafia ou como a própria Morte em As Intermitências da Morte.  Aliás, este último livro teve uma critica extraordinária no The New Yorker, que me fez pensar como é que um dos melhores analistas literários dos EUA perdeu todo este tempo comigo.

Essa espécie de modéstia não será algo deslocada?
Não é modéstia, é a consciência das coisas. Habituamo-nos durante tanto tempo a não ser considerados... Aliás, a ser ignorados. E, de repente, uma obra literária de um autor português entra nos Estados Unidos da América. Eu não fiz nada para isso, não andei a visitar editores de revistas e jornais. Apercebi-me que, desde o início, a critica norte-americana foi simpática e compreensiva comigo - e eles são habitualmente implacáveis.  Não o foram de uma forma entusiástica mas, nos últimos anos, renderam-se às minhas virtudes e tal, quer se queira quer não, continua a surpreender-me. Não é modéstia. Não sei se sou modesto. Creio que sou natural, o orgulho não faz parte do meu carácter. Mas um ensaio como aquele, feito com aquela inteligência, é obra. 

Sente falta desse tipo de atenção em Portugal?Há outra gente aqui. Eu não tive quem em ajudasse, fui fazendo, livro após livro, escritos bastante tarde quando outro escritor já teria obra feita. O resultado foi este: entregam-me o Nobel, venderam-se milhares de livros. Felizmente para mim, nada disso me subiu à cabeça. 

Já antes dissera que sabia que isto estava no seu destino.
Quando eu tinha 18 anos, em conversa com amigos, disse uma frase que ainda hoje me surpreende. "O que tiver de ser meu às mãos me há-de vir ter". Que presunção é essa, que consciência de importância era essa, seu rapazote?. Mas não era presunção. Era simplesmente a consciência de que, fosse o que fosse, estava iminente. E eu não sou um espírito fatalista. A minha vida demonstra-o. 

Há algo que ainda falte vir à sua mão?
Não falta nada. A única coisa que eu quero ter ainda é vida. Vida para viver, vida para viver com quem vivo, se possível trabalhando. Se eu faço um balanço, operação bastante inútil, enfim, pois balanço feito pelo próprio é sempre suspeito... Se eu olho para trás, independentemente dos triunfos, das glórias, aquilo que eu gosto mais é de encontrar um sujeito consciente, coerente. Coerente. Nunca cedi às tentações do poder, nunca me pus à venda. No fundo, fui e sou uma pessoa totalmente desprovida de ambição. 

Livro
A grandeza de Salomão
Saramago diz que não é um romance, mas sim um conto, para estranheza dos que lhe tomam o peso. As 260 páginas de A Viagem do Elefante (Caminho) que chega às bancas hoje, quinta-feira, 6, tem mistérios mais interessantes do que a sua classificação formal. A viagem do paquiderme indiano da Lisboa de 1551 à Viena de Aústria, à pata por terra e Alpes, mercê da vontade de dom joão III em ofertar coisa digna ao primo arquiduque maximiliano (assim, em minúsculas), parte de um facto histórico para a ficção plena. Caminha por parágrafos mais sincopados do que é costume, mas revela as provocações habituais: o interpelar do leitor, a fina ironia, a denúncia da pequenez humana, o questionamento da religião. E a poesia dos instantes em que homens e bestas, às vezes sem se saber qual é qual, se superam. 
O princípio, soube-o Saramago `a mesa de um restaurante. O fim, duvidou se chegaria - Pilar del Rio confessou ter pensado pedir aos médicos que conseguissem mais três meses de vida para o marido acabar o manuscrito. A dedicatória é para ela: "A Pilar, que não deixou que eu morresse". Ao elefante Salomão, olharão como ovni e como deus - uns aldeões confundem-no até com o deus-elefante indiano Ganesha (e um deles aproveita e questiona o padre sobre a eficácia do exorcismo dos 2 mil porcos na Galileia bíblica: "(...) nunca me pareceu uma boa maneira de Jesus acabar o trabalho"). Salomão será também salvador, barrindo para um homem perdido no nevoeiro, como um Dom Sebastião qualquer. Ou como um homem a morrer. A literatura também salva...

Vida nova
A Viagem do Elefante inaugura um grafismo vivo (da autoria de Rui Garrido) que, mais tarde, funcionará como sobrecapa à linha clara dos anteriores livros, ideia que agrada a Saramago: "Gosto daquela simplicidade tipográfica", diz.


Citador #12 - Visão da concepção simultaneísta do tempo


A concepção simultaneísta do tempo...

em "A Estátua e a Pedra"
Página 47, FJS

(...) «Uma ideia minha, que expresso de maneira nada científica, é que o tempo não é uma sucessão diacrónica, em que um acontecimento vem atrás do outro. O que acontece projecta-se numa imensa tela e tudo fica ao lado de tudo. Como se o homem de Cro-magnon estive colocado nessa tela ao lago do David de Miguel Ângelo. Para o autor não há passado nem futuro. O que vai ser já está a acontecer. Para este autor, ao escrever os livros, as coisas passam-se assim..»

Na visão de Fernando Gómez Aguillera, faz aqui um paralelo com Benedetto Croce.

«Com efeito para Saramago, tal como para Benedetto Crocce, «Toda a história é História contemporânea» e, partindo dessa orientação, alojou o romance na memória do passado: com o empenho de desentranhar a sua circunstância concreta.» (...)

"Benedetto Croce (Pescasseroli, 25 de fevereiro de 1866 - Nápoles, 20 de novembro de 1952) foi um historiador, escritor, filósofo e político italiano. Os seus escritos giram em torno de um largo espectro temático, sobretudo estética e teoria/filosofia da história. É considerado uma das personalidades mais importantes do liberalismo italiano no século XX."