Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A mitologia grega dos "Cães de Cèrbero" e o professor Ismael Gonçalves

Ismael Gonçalves, antigo padre, tornado professor de português na Escola Secundária de Mafra, foi um incansável lutador, naquilo que considerava, isto na década de 80, a obrigação do reconhecimento da vila de Mafra ao escritor José Saramago, este, que tendo publicado o "Memorial do Convento", teria colocado o nome da vila, num alto patamar de reconhecimento nacional e internacional. 
Este professor de português, que leccionava o "Memorial do Convento", aos seus alunos do 12.º ano de escolaridade, com base nos seus apontamentos e auxiliares educativos, compilados ao longo dos anos, realizou em 2005, a publicação dos seus rascunhos. Este livro, terá feito parte da exposição "A Consistência dos Sonhos".
Estes dados, que me eram, em parte conhecidos, são esplendidamente anotados e identificados por João Céu e Silva, no seu livro "Uma longa viagem com José Saramago" - (Porto Editora, páginas 184 a 189).
Aqui, é também retratada, a censura que o presidente da Câmara de Mafra, Dr. Ministro dos Santos, exerceu sobre a atribuição da Medalha de Mérito da cidade, a José Saramago. Terá ficado para a história a célebre frase, «enquanto eu for presidente Saramago nunca receberia a medalha». Fica também, a menção ao secretário de estado da Cultura, Dr. Guilherme d' Oliveira Martins, a fundamentar um despacho para a atribuição do nome do escritor à Escola Secundária.
Politiquices e caciques, sempre nortearam os desmandos deste país.
Porém, e o que aqui trago, para enquadrar a pessoa, Ismael Gonçalves, será a sua curiosidade e admiração por José Saramago, onde tem estas elogiosas palavras:
«Eu interrogo-me sempre como é que um homem que não tem formação universitária veio a ganhar a vastidão de cultura que manifesta nos seus romances, inclusive de cultura clássica! Conhece os gregos como ainda confirmei logo na primeira página de "A Jangada de Pedra", quando fala do cão Cerbero, da Eneida de Vergílio, Conhece e cita latim nas suas obras com grande rigor, nunca se encontra um erro.»

O mesmo, aqui demonstro, como é possível acumular, vasto e diverso conhecimento, para além da capacidade de o interpretar e questionar, quando assim achou necessário.
Aqui fica a menção aos Cães de Cèrbero. 


"Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se. Como se teria formado a arreigada superstição, ou convicção firme, que é, em muitos casos, a expressão alternativa paralela, ninguém hoje o recorda, embora, por obra e fortuna daquele conhecido jogo de ouvir o conto e repeti-lo com vírgula nova, usassem distrair as avós francesas a seus netinhos com a fábula de que, naquele mesmo lugar, comuna de Cerbère, departamento dos Pirenéus Orientais, ladrara, nas gregas e mitológicas eras, um cão de três cabeças que ao dito nome de Cerbère respondia, se o chamava o barqueiro Caronte, seu tratador. Outra coisa que igualmente não se sabe é por que mutações orgânicas teria passado o famoso e altissonante canídeo até chegar à mudez histórica e comprovada dos seus descendentes de uma cabeça só, degenerados. Porém, e este ponto de doutrina só raros o desconhecem, sobretudo se pertencem à geração veterana, o cão Cérbero, que assim em nossa portuguesa língua se escreve e deve dizer, guardava terrivelmente a entrada do inferno, para que dele não ousassem sair as almas, e então, quiçá por misericórdia final de deuses já moribundos, calaram-se os cães futuros para a toda restante eternidade, a ver se com o silêncio se apagava da memória a ínfera região." (...)

em, "A Jangada de Pedra"
Caminho, 6.ª edição
Páginas 9 e 10

(O monstro tricéfalo Cérbero presidindo sobre o terceiro ciclo infernal, 
aquele dos glutãos e dos epicúrios; uma aquarela do londrino William Blake (1757-1827); 
National Gallery of Victoria, Austrália.)


(...) "Para os Estados Unidos qualquer pessoa, seja emigrante ou simples turista, indiferentemente da sua actividade profissional, é um delinquente potencial que está obrigado, como em Kafka, a provar a sua inocência sem saber de que o acusam. Honra, dignidade, reputação, são palavras hilariantes para os cães cerberos que guardam as entradas do país." (...)

em, "O Caderno"
Entrada de dia 26 de Setembro de 2008, "A Prova do Algodão"
Caminho, 2.ª edição
Página 39



Informação, recolhida via Wikipédia, em http://pt.wikipedia.org/wiki/Cérbero
"Na mitologia grega, Cérbero ou Cerberus (em grego, Κέρβερος – Kerberos = "demónio do poço") era um monstruoso cão de múltiplas cabeças e pescoço que guardava a entrada do inferno(mundo inferior), o reino subterrâneo dos mortos, deixando as almas entrarem, mas jamais saírem e despedaçando os mortais que por lá se aventurassem.
Cérbero era filho de Tífon (ou Tifão) e Equídina, irmão de Ortros e da Hidra de Lerna. Da sua união com Quimera, nasceram o Leão da Nemeia e a Esfinge.
A descrição da morfologia de Cérbero nem sempre é a mesma, havendo variações. Mas uma coisa que em todas as fontes está presente é que Cérbero era um cão que guardava as portas do Tártaro, não impedindo a entrada e sim a saída. Quando alguém chegava, Cérbero fazia festa, era uma criatura adorável. Mas quando a pessoa queria ir embora, ele a impedia; tornando-se um cão feroz e temido por todos. Os únicos que conseguiram passar por Cérbero saindo vivos do submundo foram Héracles, Orfeu, Eneias e Psiquê.
Cérbero era um cão com várias cabeças, não se têm um número certo, mas na maioria das vezes é descrito como tricéfalo (três cabeças). Sua cauda também não é sempre descrita da mesma forma, às vezes como de dragão, como de cobra ou mesmo de cão. Às vezes, junto com sua cabeça são encontradas serpentes cuspidoras de fogo saindo de seu pescoço, e até mesmo de seu tronco.
Quanto à vida depois da morte, os gregos acreditavam que a morada dos mortos era o Sub-mundo, o reino de Hades, o deus do pós-morte, ao lado de Perséfone(Deusa da primavera, filha de Zeus e Deméter). Hades era irmão de Zeus. Localizava-se nos subterrâneos, rodeado de rios, que só poderiam ser atravessados pelos mortos. Os mortos conservavam a forma humana, mas não tinham corpo, não se podia tocá-los. Os mortos vagavam pelo Hades, mas também apareciam no local do sepultamento. Havia rituais cuidadosos nos enterros, e os mortos eram cultuados, principalmente pelas famílias em suas casas. Quando os homens morriam eram transportados, na barca de Caronte para a outra margem do rio Aqueronte, onde se situava a entrada do reino de Hades. O acesso se dava por uma porta de diamantes junto a qual Cérbero montava guarda.
Para acalmar a fúria de Cérbero, os mortos que residiam no submundo jogavam-lhe um bolo de farinha e mel que os seus entes queridos haviam deixado no túmulo.
Seu nome, Cérbero, vem da palavra Kroboros, que significa comedor de carne. Cérbero comia as pessoas. Um exemplo disso na mitologia é Pirítoo, que por tentar seduzir Perséfone, a esposa de Hades e filha de Deméter, deusa da fertilidade da Terra, foi entregue ao cão. Como castigo Cérbero comia o corpo dos condenados.
Cérbero, quando a dormir, está com os olhos abertos, porém, quando o mesmo está de olhos fechados, está acordado."





Recuperação da entrevista de Clara Ferreira Alves, originalmente publicada no "Expresso" (2/11/1991)



Recuperação da entrevista de Clara Ferreira Alves, originalmente publicada no jornal "Expresso", em 2/11/1991, e que agora, foi compilada numa colecção "Grandes Entrevistas da História


«No meu caso, o alvo é Deus»

Entrevista 
"Publicado esta semana, O Evangelho Segundo Jesus Cristo contém uma história que todos conhecemos. E contém cenas e afirmações que alguns séculos atrás teriam lançado o autor na fogueira, sem direito a sepulcro. O escritor toma para si liberdades que são a substância da criação, e comporta-se, na invenção do seu mundo, como Deus. Este é o evangelho segundo Saramago... 

– Achas que os teus leitores crentes podem perguntar: que direito tem um ateu confesso, um comunista, de vir reescrever a nossa religião? 
– Eu não sei se era legítimo, agora que o fiz, fiz. O que chega a parecer incrível é que, se nós imaginarmos que Jesus não é filho de Deus, a nossa civilização está assente sobre coisa nenhuma. 

– Há uma tese escondida, no romance? 
– A tese escondida é a de que eu digo, em primeiro lugar, que o cristianismo não valeu a pena; e em segundo, que se não tivesse havido cristianismo, se tivéssemos continuado com os velhos deuses, não seríamos muito diferentes daquilo que somos. 

– O livro contém afirmações que poderão causar reacções... 
– ... Nas consciências, nas consciências... 

– ... A mais forte talvez seja a do final, em que invertes a frase de Jesus, que acaba por dizer: «Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez». Jesus rebela-se contra um Deus ao qual os homens têm de perdoar. Aqui está a tese do livro. 
— Pode ser que não esteja aí, mas é aí que tudo se fecha, que tudo vai ter. Trata-se da criação de uma nova religião, que nasce do tronco do judaísmo, e de uma decisão de Deus que não está satisfeito com o pequeno espaço e o pequeno povo que governa e que pretende alargar a sua... 

— Base de apoio? 
— Base de apoio. E necessita de um sacrifício e de um mártir. E como resulta do encontro de Deus com Jesus e com o Diabo, no Mar da Galileia — e no meio de um nevoeiro que dura quarenta dias —, Jesus obriga Deus a revelar-lhe o futuro dessa religião. que vai nascer. E esse futuro é uma carnagem, sangue que corre durante vinte séculos. De facto, como o Diabo diz em certa altura, é preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue. Deus (se existisse), sendo omnipotente, tudo teria de fazer para o bem dos homens nesta única vida que temos na terra. É condição necessária do homem sofrer e fazer sofrer para receber um prémio que não se sabe qual seja, ou se se sabe, consiste na contemplação eterna da face do Senhor, o que custa rios de sangue, renúncias à vida, clausura, sacrifício. 

— Está aqui implícita uma crítica ao cristianismo e ao catolicismo. Mas não há nessas religiões nada de bom? E serão elas diferentes de outras religiões, monoteístas ou não, na sua obsessão pela culpa, o pecado e o sacrifício? 
— Eu diria que a crítica não está implícita mas explícita. No meu Evangelho, Jesus é o filho de Deus contrariado, ao contrário dos Evangelhos em que ele sabe e age como filho de Deus. 

— Este Jesus é um homem como todos os outros; e este Deus, como é que é? É Deus uma criação dos homens, e como eles ávido de sangue, ou são os homens uma imagem de Deus? O Deus do livro é o Deus da convicção religiosa, enquanto o teu Deus pessoal não passa de uma invenção humana. 
— O do livro é um Deus derivado directamente de Jeová. 

— Tu não acreditas na existência de Deus, portanto Deus não passa de uma criação humana. Mas este Deus não servia o artificio ficcional e tiveste de ir buscar o Deus dos crentes, condição sine qua non para a existência da história narrada. No fundo, uma refutação de Deus sem dele prescindir. 
— Deus é uma criação humana e, como muitas outras criações humanas, a certa altura toma o freio nos dentes e passa a condicionar os seres que criaram essa ideia. 

— Poderíamos dizer o mesmo de todas as revoluções. 
— É inevitável, as religiões, como as revoluções, devoram os seus filhos. Há nas religiões um contínuo processo de devoramento em que Deus é como um Moloch que necessitasse do sacrifício humano. Imaginando que Deus existe — e não lhe concedo o beneficio da dúvida —, Deus não pode, por boa lógica, criar seres para os destruir. O cristianismo na sua derivante católica, que é a que conhecemos melhor, é uma história de sofrimentos contínuos. 

— Insisto: nas religiões monoteístas, é uma prática comum. 
— São todas, com excepção do confucionismo, que não é bem uma religião mas um sistema de valores, uma filosofia. O que não consigo perceber é a necessidade do sofrimento do corpo para salvar a alma. Abdicações, renúncias, cilícios, tristezas, amarguras, perseguições, vale de lágrimas. Veja-se a expressão, vale de lágrimas. 

— Se Deus é uma criação humana, o pecado não será a consequência da nossa necessidade de culpa? — É uma das questões do livro. Donde vem esse sentimento de culpa? Fomos educados na ideia de um pecado original que manchou para todo o sempre a espécie humana, cristã ou não. E assim se introduz na mente das pessoas um código sobre o que se permite ou não. Assim se cria a administração das almas, os delitos e os castigos de Deus, o código penal das religiões. O sistema tem o seu equivalente na sociedade civil, na existência de códigos de comportamento. 
Não se pode desejar a mulher do próximo — a formulação é machista, não diz que não se pode desejar o homem da próxima — como não se pode circular pela esquerda. 

— Tentas aplicar a lógica à religião e à fé? É ilógico. 
— Eu podia ter escrito um livro como este, questionando todas estas coisas de um ponto de vista apenas lógico, elementar; talvez nem mereça o nome de lógica, mas de simples bom senso. 

— Nada há de bom nas religiões? Se descontarmos a arte sacra, uma óbvia vantagem estética, não terá havido casos em que as religiões permitiram a sobrevivência e a resistência de vítimas? Veja-se o judaísmo, que todos os judeus não hesitam em afirmar ter sido o cimento da sua identidade e existência como povo, e da resistência às perseguições e às tentativas de aniquilação. 
— Mas as religiões tanto servem para sobreviver às perseguições como para fazer perseguições, e os perseguidos vão por, seu turno refugiar-se noutra religião que fará outros perseguidos. É um jogo entre poderes que se debatem em circunstâncias históricas diferentes. Veja-se as cruzadas, uma crença contra outra crença, uma guerra não entre um Deus e outro, Alá, mas entre dois livros, a Bíblia e o Corão. Do ponto de vista do meu bom senso é absurdo. 

— Racionalismo «voltairiano» ou marxismo-leninismo? E aí apetece-me dizer que o comunismo teve a sua teologia e a sua fé, os seus dogmas. E teve e tem as suas vítimas e perseguições. 
— Não creio que tivesse uma teologia, para encontrar vítimas não é necessário ir ao marxismo-leninismo ou ao cristianismo. Tens vítimas na exploração colonial, onde é indiferente se o explorado ou explorador é marxista-leninista ou católico. O meu racionalismo tem uma raiz «voltairiana». Esse cepticismo, essa ironia e essa espécie de compaixão pela loucura dos homens, vêm daí. Seria mais cómodo acreditar em Deus, mas escolhi o lugar da incomodidade. Tal como entre os crentes havia e há o «non possumus», também eu posso dizer que sou agnóstico, se ateu for uma palavra demasiado dura. 

— Vou fazer de advogado do diabo: primeiro, protegeste-te com a forma do romance do facto de estares a tentar reescrever uma religião. Ser escritor dá-te uma cobertura que o ensaísta não teria. Segundo, o projecto é ambicioso e pretensioso. Terceiro, é uma operação de marketing, depois de se saber o que aconteceu ao Salman Rushdie com Os Versículos Satânicos. 
— Dizer que tentei encontrar uma protecção no facto de ter escrito um romance e não um ensaio ignora uma circunstância: não poderia, porque não saberia, escrever esse ensaio. Aqui trata-se apenas de alguém que tendo lido os Evangelhos encontrou neles outras leituras sustentadas por alguma lógica. Um teólogo não escreveria um romance e eu não escreveria senão um romance. E penso ter chegado a resultados do ponto de vista estilístico e, até, da própria capacidade de persuadir pela via do romance. Neste livro, não se trata de fazer puras afirmações provocadoras mas de criar uma situação humana concreta, aceitando as consequências do que vai acontecendo e assumindo todos os riscos, quer o narrador, quer o autor, quer as personagens. Quanto a ser pretensioso, é possível que sim, talvez haja quem diga que não cheguei onde queria, mas não é isso que eu creio, e fiz exactamente aquilo que queria. 

— Terias a coragem de escrever um livro destes dentro da religião islâmica? 
— Talvez não tivesse essa coragem e sobretudo (peço desculpa por ter de chamar a atenção para este ponto) por causa de todas as diferenças — decerto todas elas favoráveis a Salman Rushdie — entre o livro dele e o meu. Há uma essencial que é bom que fique clara desde já: no livro de Rushdie, o alvo é Maomé. No meu caso, o alvo é Deus. E tão absurdo, para mim, pensar que quando se muda de religião se deixa para trás um deus e um diabo e uns infernos e uns paraísos e se adquire em estado novo outro deus, outros demónios e outros paraísos. E cada vez que o poder de Deus se restringe ou amplia, o poder do Demónio restringe-se ou amplia-se sem que ele tenha de fazer nada. É tão absurdo! Quando uma religião desaparece — e têm desaparecido muitas —, ao desaparecerem as entidades que representavam nessa religião o Bem e o Mal, desaparecem também o bem e o mal caracterizados por essa religião? 

— O Bem e o Mal, ou, como disseste, «fazer bem aos homens»: o que é que isto significa? O comunismo não era uma doutrina do bem contra o mal do capitalismo, não queria promover o bem entre Os homens? 
— O marxismo, não creio que se tenha apresentado nunca como o Bem. Essas categorias não são úteis quando entramos em questões como o marxismo, ou a Revolução Francesa. Eu lembrava-te a História do Cerco de Lisboa, onde a certa altura se apresenta a palavra não para negar qualquer coisa que estava antes. Os instrumentos para urna transformação, como é o caso do marxismo, representam um não, o não é o que põe em causa, rejeita, questiona. O que tem acontecido sempre é que esses nãos acabam por converter-se em sins e acabam por converter-se em sins no sentido cada vez menos positivo que a palavra sim pode assumir numa certa fase. A Revolução de Outubro foi o não ao czarismo, ao poder absoluto. Houve o momento da esperança, e depois este não transformou-se em sim, o sim que leva a burocracia, ao autoritarismo, a tudo de que deu abundantes provas a abortada tentativa de estabelecer o socialismo na União Soviética. O não inicial, mesmo que já contivesse os germes do que aconteceu depois, ficou num sim, ao qual foi preciso outra vez dizer não. 

— Uma dialéctica. Houve um momento de pureza na revolução russa? 
— Claro, também houve um momento de pureza na nossa revolução do 25 de Abril.

— A pureza não te horroriza? 
— Tu é que lhe chamaste pureza. Eu diria que há momentos em que a esperança ocupa o espaço todo. 

— Na União Soviética, quem é responsável pela perversão da ideia? Os homens, que nunca sabem servir as ideias? Ou aqueles homens em particular, que se enganaram todos e enganaram muita gente? 
— Eu sou tão pessimista (que acho que a humanidade não tem remédio. Vamos de desastre em desastre e não aprendemos com os erros. Para solucionar alguns dos grandes problemas da humanidade, os meios existem e contudo não são utilizados. 

— Que meios? Uma outra utopia? Uma doutrina? Uma ideia, ainda e outra vez? Não é altura de sermos práticos e concretos? O colapso do comunismo afectou a tua crença no comunismo? 
— Não afectou, serei dos poucos. Dantes, os comunistas eram milhões e milhões e milhões e de repente parece que são algumas centenas de milhares. Podes dizer que se trata, afinal de contas — eu que estou aqui a fazer a crítica das crenças —, de qualquer coisa em que persisto em acreditar. Acredito na possibilidade de o homem ser feliz, de viver em harmonia. 

— No comunismo, tal como nas grandes religiões, há uma espera, um tempo que não é bom e que se sacrifica ao futuro, que bom será. Uma espera do paraíso, seja ele depois da morte ou os amanhãs que cantam. Há sempre uma vida depois da morte. No comunismo há ainda uma redenção... 
— Bom, eu não lhe chamaria exactamente redenção, mas aceito. Eu chamar-lhe-ia humanismo radical, permitindo a harmonia nas relações entre os homens, na sua infinita diversidade. 

— O tempo das vacas gordas vai acabar? 
— Não sou eu quem o diz, é o Governo. 

— Teriam os comunistas administrado melhor o país? Veja-se o triste exemplo do Leste, um desastre ecológico, um desastre económico, repressão ou supressão das liberdades e garantias. Como se pode defender isto? Ou os soviéticos não eram «bons» comunistas, ou não eram sequer comunistas, e por isso é que falharam? [...] São exercícios e subtilezas que me ultrapassam. E os que ainda são comunistas dizem que o comunismo é bom e os homens é que são maus? É o mesmo que dizer que Deus é bom e os homens é que são maus. 
— Não entro nesse debate de serem comunistas ou não comunistas, chego à conclusão de que não eram, mas, a posteriori, é sempre fácil fazerem-se essas verificações. O que vou dizer soa a atitude idealista, ou ,,ignifica pôr o carro à frente dos bois: não se faz socialismo sem uma mentalidade socialista. E não se faz socialismo na mentira, na falta de respeito, em situações em que a liberdade ou a falta dela é condicionada por nomenclaturas ou privilégios de uma classe que controla... 
— Sem querer entrar pelo foro íntimo, não terá havido um momento um que tu e o dr. Cunhal olharam um para o outro e concluíram que a nomenklatura que o partido apoiava era uma enorme perversão da ideia comunista? 
— Eu não sei se ele chegou a alguma conclusão, e nunca olhámos um para o outro numa situação em que devêssemos discutir isso. Para mim, isso é claro desde há anos. E, de facto, a União Soviética não é nem nunca foi, para mim, uma referência política ou ideológica. Não é nada que eu já não tenha dito, e embora estas coisas não provem mito, a verdade é que depois do 25 de Abril não corri lá, e antes disso nunca tinha saído de Portugal. A única viagem que fiz à União Soviética foi há três anos, em plena perestroika. E quando há bocado te falei da mentira não foi por acaso, mas porque tinha em mente um caso concreto. Durante a guerra de 39-45, quando foi descoberto o massacre de Katyn, dos oficiais polacos, a informação que todos tínhamos é que tinham sido assassinados pelos nazis. Recentemente, a União Soviética veio reconhecer que tinha assassinado essa gente. Não posso aceitar que me mintam desta maneira, mesmo em nome das sujidades e sujeições da política. Mas aqui é mais grave, trata-se de um país que era uma referência ideológica, o «farol do futuro». 

— O massacre de Katyn é uma gota de água nos massacres instituídos pela União Soviética. E o gulag? E a Hungria? E a Checoslováquia? 
— Claro está. Mas a gota de água continuava no segredo e só recentemente foi revelada. E há a Hungria, a Checoslováquia, o gulag e tudo isso. E há coisas mais recentes e imperdoáveis, que é o facto de a União Soviética, por necessidades internas e pelo descalabro em que o país se viu, ter abandonado países e movimentos que cresceram e se desenvolveram à sombra do apoio e auxílio da URSS. Caso de Angola, Moçambique e Cuba, entre outros. Deixou cair povos em cujas consciências pôs esperanças e algumas realizações. 

— Essas dúvidas que te assaltaram nunca te levaram, como levaram outros intelectuais, a sair de um PC que era um fiel amigo da União Soviética? Não te sentiste mal dentro do partido? 
— Se alguma vez me tivesse sentido mal, tinha saído, e se um dia me sentir mal, saio. As minhas discordâncias, que são sérias, e nalguns casos sobre pontos essenciais, não foram suficientes para abandonar o partido. Creio que por causa da força da minha própria convicção, e sem esforço. É o único partido onde a minha convicção está à vontade e tem suficiente resposta. 

— Não estarás como o homem que não ousa prescindir da ideia de Deus, ou de uma religião, porque tudo seria mais difícil? Não terás medo de ficar órfão? 
— Não, a minha convicção é compensada por um cepticismo sólido. 

— Dir-se-ia que nunca se pode levar a lucidez às últimas consequências ou o mundo tornar-se-ia um lugar insuportável? 
— Admitamos que essa minha lucidez me levava a retirar-me do partido, de certa maneira eu não tinha resolvido nada. Perguntas-me o que resolvo dentro dele e digo-te. Chego a uma relação em que, apesar das discordâncias, existe bastante harmonia entre o que penso e o que o partido, como projecto de sociedade, contém. Não tenho medo de perder a bengala, a referência, a missa laica, mas considero que o partido tem sido um agente de intervenção na vida do nosso país antes e depois de 25 de Abril, e pode ser um instrumento de transformação da sociedade portuguesa. Mas estou consciente das limitações do partido, sem falar das minhas, e das limitações que o actual estado de coisas europeu e mundial põe, a prazo, a repetir ou renovar uma tentativa que, eventualmente, poderia vir a falhar de novo. O que não posso aceitar, e isso é visceral, é que o capitalismo seja a solução dos problemas do homem. Criará grupos, estratos, camadas prósperas, e criará desfavorecidos, misérias, carências, porque vive à custa dessas misérias e carências. 

— Onde estavas no momento do golpe de Moscovo e que sentiste? Há quem diga que ficaste muito silencioso. 
— Pensei o que continuo a pensar. Eu estava longe, a 40 km de Lisboa, a terminar este livro [...]. As [minhas] declarações estão [nos] •jornais e são muito claras: condenação do golpe, desacordo total em relação à posição que o partido tomou. O que não me achei foi tão importante que viesse a Lisboa fazer declarações à imprensa, à rádio e à televisão. 

— Sendo um escritor que faz incursões no tempo, e no passado, que consciência tens do tempo, do teu tempo histórico? Não falo da passagem do tempo. 
— Sim, eu sei. Não tenho uma ideia nada científica ao dizer isto, como não a tive nas coisas que disse antes. Muitas vezes são intuições, outras são convicções, suposições... Agrada-me pensar que o tempo não é essa diacronia, essa sucessão de momentos, agrada-me pensar no tempo como uma espécie de imensa tela onde se projectam se fixam os acontecimentos. E como se eu visse os acontecimentos projetados numa superfície única, onde tudo estivesse ao lado de tudo, onde tinhas a batalha de Maratona e a chegada do homem à Lua, ou a Clara Ferreira Alves e a Lucrécia Bórgia [risos]. 

— Obrigada. O teu livro começa com uma descrição de uma gravura de Dürer da crucificação onde está contida essa ideia de que tudo está ao lado de tudo. E como se essa gravura ilustrasse a tua noção de tempo. Estás contente com o livro que escreveste, ou estás mais contente do que com outros livros? 
— Estou tão contente como o mais contente que estive e com certeza mais contente do que algumas vezes estive. Dir-te-ia mesmo que este livro me dá um contentamento maior do que qualquer dos outros. A aposta era mais alta e tenho a impressão de não a ter perdido. Não direi que a ganhei, mas acho que não a perdi. 


Excertos da entrevista de Clara Ferreira Alves a José Saramago - Via Revista Contraste (06/1986)



(Aqui, para consulta, link original da publicação, 


"Em Junho de 1986, a revista Contraste publicava uma entrevista feita por Clara Ferreira Alves a José Saramago. O escritor tinha já duas obras muito aclamadas - Memorial do Convento e Jangada de Pedra - mas encontrava-se ainda muito longe do Prémio Nobel. Estava, se assim se pode dizer (e suponho que sim) a dar os primeiros passos da caminhada que o havia de lá levar.

Já tinha 50 anos de carreira. Mas o reconhecimento tardara a surgir. Nesta entrevista, Saramago falou principalmente sobre os seus métodos e as suas convicções enquanto escritor. Pouca gente se lembra desta publicação e menos gente ainda se lembrará deste texto. Por isso mesmo pareceu-me boa ideia divulgá-lo, com a devida vénia.

Começando pelo princípio...

«Lembro-me da minha primeira obra invisível, duplamente invisível. (...) Entrávamos no cinema para ver os cartazes - coisas que dantes se faziam e hoje não! - e lembro-me de que eu "inventava" (...) as histórias dos filmes através dos cartazes, sem os ter visto.»

«Aos 25 anos publiquei um romamce. Foi o editor que sugeriu o título e chamava-se, horrorosamente, Terra de Pecado, o que estava na linha dos filmes do Royal. E não era um romance à francesa, de cento e tal páginas, não, era um romance com trezentas e tal páginas. Acabou a sua existência nas padiolas, que, naquele tempo, tiveram a sua função cultural. Você já não se lembra disso.»

Clara Ferreira Alves (C.F.A.) - E quem é que pecava? A senhora?
José Saramago (J.S.) - A senhora, é evidente! Todas as senhoras pecam, com senhores, às vezes com outras senhoras... (Risos). Não é que me envergonhe de Terra de Pecado, mas achei que o livro não tinha nada que fazer na minha lista bibliográfica.

C.F.A. - Já pensou em reescrevê-lo?
J.S - Jamais reescreveria um livro. Um livro é um livro, pertence ao tempo da pessoa que o escreveu nesse tempo. Não posso retocar a minha imagem de 1947.

(...)

C.F.A - Esteve tanto tempo parado porquê?
J.S - É difícil responder. Se quisesse compor a minha imagem diria que a primeira publicação foi precipitada, que passei esses anos entregue à tarefa de viver primeiro para escrever depois. Mas é claro que não foi nada disso, não acredito que ninguém vá viver primeiro para escrever depois, é léria. (...) Ao viver o suficiente acaba-se por se ter qualquer coisa para dizer, que acho que sou capaz de dizer. Mas toda a minha vida literária considero-a fruto de circunstãncias. Se por volta dos 39, 40 anos não tivesse tido determinado choque sentimental talvez não tivesse escrito Os Poemas Possíveis. Com outro choque sentimental, talvez não es tivesse escrito assim.

(..)

C.F.A. - Em 75, o José Saramago...
J.S. - ... era director-adjunto do Diário de Notícias, fui-o de Abril ao 25 de Novembro e o escritor que eu hoje sou também resulta muito das circunstâncias. Se não tivesse vindo o 25 de Novembro, talvez não tivesse escrito o Levantado do Chão, nem o Memorial do Convento, nem O Ano da Morte de Ricardo Reis, embora seja impossível garantir isto. O escritor que hoje sou é um produto do 25 de Novembro, que me colocou até hoje na situação de desempregado. Achei-me, naquela altura, posto na rua, sem esperanças de encontrar emprego porque o meu empenhamento no DN me tinha queimado. (...) Então disse para mim: tens uns livritos escritos, tens a necessidade de escrever certas coisas, ou continuas a procurar emprego e a ser um escritor de fim-de-semana, ou então arricas.

(...)

C.F.A - Com que idade começou a ter uma consciência política?
J.S. - Com 20 e alguns anos, perto dos 30. Claro que empresta-se a casa para uma reunião da qual nada se sabe, e depois vai-se fazendo a ligação à prática de certos actos ditos subversivos, até chegar à militância. É melhor não falar porque nestas coisas seria uma história como as outras e há sempre alguém que me poderia dar lições de modéstia e descrição.

C.F.A. - O Saramago é um escritor que conheceu um êxito raro em Portugal e lá fora, sobretudo com Memorial e repetido em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Esse êxito não ameaça a sua modéstia?
J.S - Se o êxito tivesse vindo mais cedo talvez tivesse achado que tinha muito tempo de vida para gozar a falta de modéstia. Sou tão pouco modesto como era dantes, não creio ser um exemplo de modéstia. Só que como continuo um pouco desligado das coisas, posso fazer as vezes de uma modéstia praticante, militante. Acontece que não tenho as formas óbvias de vaidade. Talvez tenha outras. O que me ajuda a equilibrar tudo isto é a consciência muito aguda da relatividade das coisas, da sua pouca importância. Por outro lado, sinto a escrita, a actividade literária, como uma espécie de exercício na corda bamba, onde depois de um êxito nos espera o falhanço. E também porque para mim o livro mais importante é sempre o último, o que está mais próximo. (...) Amanhã pode sair um livro que não seja tão bom e lá vão dizer que Perdigão perdeu a pena, depois de ter subido tão alto.

C.F.A. - Podem dizer o contrário. Como é a sua relação com a crítica literária?
J.S - Tenho íntima consciência do que faço, não toda a consciência da bondade do que faço, embora possa dizer que este livro é melhor do que aquele. Estava tão certo da minha necessidade de escrever algumas coisas que a opinião alheia só me poderia trazer ou a confirmação do que achava ou coisas que não me interessavam. Claro que gosto que me façam festas.

C.F.A. - E como criador, não tem as angustiazinhas existenciais?
J.S. - Não me vejo ao espelho a escrever e não gostaria que alguém estivesse a olhar para o espelho onde eu estivesse reflectido a escrever. Não mitifico a escrita por algumas razões. Por exemplo, gosto tanto de pintura e sou incapaz de fazer um boneco, um desenho. Não mitifico, por isso, o pintor, ou o músico. O mesmo para o escritor.

(...)

C.F.A. - Escreve à máquina?
J.S. - Numa velhíssima Hermes.

C.F.A. - Já pensou em escrever num computador?
J.S. - Já me falaram nisso mas eu preciso da minha máquina, daquela. Está tão velha que quando vai para a oficina o mecânico tem de fabricar as peças que faltam porque já ninguém as fabrica. Deve ter aí uns 40 anos. Já tem as teclas marcadas, não marca espaços...

C.F.A. - Escreve noite dentro? De manhãzinha?
J.S. - Não escrevo a altas horas, no silêncio da madrugada. Escrevo a horas normais, quando uma pessoa que tem todo o tempo para trabalhar escreve. Não faço noitadas. Tenho um método de trabalho regular e tenho a impressão de que resulta.

C.F.A. - É portanto metódico...
J.S. - Metódico e pontual.

C.F.A. - Escreve em casa, nos cafés?
J.S. - Nos cafés, nem pensar nisso! Só sei escrever em casa no ambiente da casa, com as coisas nos seus lugares, a ouvir os rumores do prédio, da rua, com a luz do dia. Em férias sou incapaz de escrever uma linha. Sento-me de manhã à máquina e não sai nada.

C.F.A. - Nunca sentiu que era incapaz de preencher a célebre página em branco?
J.S. - Insisto o meu bocado e se não resulta não insisto mais. Outra solução é ir-me deitar. Durmo um quarto de hora, meia hora, e o problema resolve-se por si enquanto estou a dormir.

(...)

C.F.A. - Durante a adolescência, tendo nascido num ambiente nos antípodas do ambiente intelectual, já tinha consciência da sua diferença?
J.S. - Isso acontece sempre na adolescência, ter consciência das diferenças de cultura, de instrução. Tem-se uma visão do mundo provisória e insubstituível. Há uma coisa que me ajuda a manter uma relação com aquilo de que me achava diferente, que é o mundo da minha infância, ligado às minhas origens, a pessoas ou coisas. Mantive com os meus avós maternos uma relação para além de todas as diferenças de ordem cultural ou intelectual. E a consciência da diferença não levou nem leva a rupturas: sempre fui deles e sempre foram meus.

(...)

Depois, a propósito do livro que preparava, A Jangada de Pedra: «em termos de projecto é tão coerente como os anteriores, mas acho que corro o risco que toda a gente corre».

C.F.A. - É como um jogo, esse risco?
J.S. - Não, que ideia... Um comprador de lotaria não corre risco nenhum, não arrisca nada, só perder o dinheiro com que a comprou. Não sou um jogador, nunca joguei nada, excepto "King" durante algumas semanas e algum xadres, quer dizer, empurrei as pedras. Fazer da criação um jogo é complicar as coisas. Isso pode ser interessante para os outros, não para mim.

C.F.A. - O Saramago, de facto, nunca se fez interessante, no mau sentido...
J.S. - Nunca me fiz interessante antes, não me faço interessante agora. Mas, agora, é mais difícil de garantir porque estando os projectores cá virados para esta lado, qualquer gesto pode ser assim interpretado. Tendo a viver com a naturalidade de sempre. Aqueles que me conhecem mais de perto sabem que sou a mesma pessoa, digo as mesmas piadas.

C.F.A. - Nos seus romances, escapa a essa moda temível do confessionalismo agudo, que deu em tantos autores portugueses deste tempo. O que pensa da mania?
J.S. - Acho um pouco tonto, a vida dos outros não me interessa nada. Interessa-me saber aquilo que é impossível saber, aquilo que falta saber. Vivemos num mundo de tal modo vertiginoso, de tamanha complexidade que, em rigor, dele dela nada sabemos. Não sabemos em que mundo vivemos.

(...)

C.F.A - Ao aliar a ficção à História acha que a ficção pode funcionar como correctivo da História?
J.S. - O que vem a ser a História? As viagens na História comparo-as com as viagens no espaço. Eu tenho aquele livro da Viagem a Portugal e agora poderia escrever outro em que teria como preocupação não passar por nenhum daqueles lugares do primeiro livro. No tempo pode e deve fazer-se a mesma coisa.

Prossegue depois falando de História, a propósito de Memorial do Convento:

J.S. - De facto, todo o romance é um romance histórico. Agora estamos aqui, neste lugar, e se daqui a 100 anosalguém escrevesse um romance que nos tomasse como personagens, aqui, com estes conflitos, estas experiências, estaria a escrever um romance histórico só porque se projectava num tempo anterior? A partir de que altura é que o passado passa a ser História? Eu não sei o que é o presente. Estamos aqui há mais de uma hora e faço a mesma diferença entre o que se passou há uma hora e o que se passou há 100 anos. Tenho idêntica dificuldade em reconstituir ambos os momentos. Quanto ao futuro, ele é apenas tempo não vivido. Agora o presente, como fixá-lo? Ele é tão fluido.

C.F.A. - Quando está a escrever um livro tem pressa de o acabar?
J.S. - Vivo em angústia, tenho mau viver. Vivo no silêncio, é um não estar cá, um modo de não estar cá.

C.F.A. - Tem dúvidas sobre o que escreve?
J.S. - Não, sou suficientemente inconsciente.

(...)

C.F.A. - Como é que pode dizer que é inconsciente? Já sabe o que vai escrever nos próximos anos... Será que essa é ainda uma maneira de não correr riscos? Ir para o Alentejo escrever, quando ficou desempregado, foi um risco? Ser militante do PC é um risco?
J.S. - Tenho pouca imaginação para correr riscos. Quanto ao risco de ser militante do PC resumo-o assim: dantes diziam: ele é bom mas é comunista. Agora dizem: ele é comunista mas é bom!"