Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 3 de janeiro de 2015

"In Nomine Dei", de José Saramago, Sevilha, 2007

"O Senhor deteve no ar a mão da Sua justiça e a Sua voz disse: «Apressai-vos porque o tempo do sangue é chegado, já se ouve a lâmina do cutelo rangendo na pedra de amolar, o terror faz correr os animais condenados, mas o Meu braço os alcançará onde quer que se acolham, nem antes nem depois da hora marcada por Mim no princípio dos tempos»."

Voz de Matthys, apóstolo anabaptista
Segundo acto, quadro 1
"In Nomine Dei", Caminho, 3.ª edição, página 63

"Vídeo de apresentação da peça de teatro "In Nomine Dei", 
representada no Centro Andaluz de Teatro - Sevilha, em Dezembro de 2007.
Direcção de José Carlos Plaza, em colaboração com o Teatro Nacional Dona Maria II.
Link da apresentação, na voz de José Saramago, 

"In Nomine Dei" é uma peça de teatro de José Saramago, lançada em 1993. A acção decorre na cidade alemã de Münster, entre maio de 1532 e Junho de 1535. Retrata a história, baseada em factos reais, das lutas entre Protestantes e Católicos. Neste peça, Saramago expõe todo o seu potencial enquanto romancista, levando ao limite a linguagem das personagens, numa acção intensa capaz de prender o leitor do inicio ao fim. "


Sinopse da obra "In Nomine Dei"
Caminho, 3.ª edição, página 9

«”Entre o homem, com a sua razão, e os animais, com o seu instinto, quem, afinal, estará mais bem dotado para o governo da vida?” Não faz sentido? “Se os cães tivessem inventado um Deus, brigariam por diferenças de opinião quanto ao nome a dar-lhe, Perdigueiro fosse, ou Lobo-d’Alsácia? E no caso de estarem de acordo quanto ao apelativo, andariam, gerações após gerações, a morder-se mutuamente por causa da forma das orelhas ou do tufado do seu canino Deus? “Estas considerações podiam ser tomadas como ofensivas, mas José Saramago trata de se defender: “Não é culpa minha nem do meu discreto ateísmo se em Münster, no século XVI, como em tantos outros tempos e lugares, católicos e protestantes andaram a trucidar-se uns aos outros em nome de Deus – “In Nomine Dei” – para virem a alcançar, na eternidade, o mesmo Paraíso.” “Os acontecimentos descritos nesta peça representam, tão só, um trágico capítulo da longa e, pelos vistos, irremediável história da intolerância humana”, explica o autor. “Que o leiam assim, e assim o entendam, crentes e não crentes, e farão, talvez, um favor a si próprios. Os animais, claro está, não precisam.”»

Discurso de José Saramago contra a "Guerra do Iraque" (Porta do Sol, Madrid, a 16 de Março de 2003)

Dulce Chacón e Saramago, discursam contra a "Guerra do Iraque", Dezembro de 2003


"Dez anos e 122 mil mortos depois da invasão norte-americana que marcou o início da guerra do Iraque, recordamos o manifesto que José Saramago escreveu e que leu pessoalmente perante centenas de milhares de manifestantes, na Porta do Sol, em Madrid, a 16 de Março de 2003"


Para ler, na revista digital "Blimunda", n.º 28 (Setembro de 2014)

"Eles pensavam que nos havíamos cansado de protestar, que os tínhamos deixado à solta para prosseguirem na sua alucinada corrida para a guerra. Equivocaram-se. Nós, estes que hoje nos estamos manifestando, aqui e em todo o mundo, somos como aquela pequena mosca que volta obstinadamente uma vez e outra a cravar o aguilhão nas partes sensíveis da besta. Somos, em palavras populares, claras e precisas para que melhor se entendam, a “mosca cojonera” do poder.

Eles querem a guerra, mas nós não os vamos deixar em paz. Ao nosso compromisso, ponderado nas consciências e proclamado nas ruas, não lhe farão perder vigência e autoridade (também nós temos autoridade...) nem a primeira bomba nem a última que venham a cair sobre Iraque.

Que não continuem os senhores e as senhoras do poder a dizer que nos manifestamos para salvar a vida e o regime de Sadam Hussein. Mentem com todos os dentes que têm na boca. Manifestamo-nos, isso sim, pelo direito e pela justiça. Manifestamo-nos contra a lei da selva que os Estados Unidos e os seus acólitos antigos e modernos pretendem impor ao mundo. Manifestamo-nos pela vontade de paz da gente honesta e contra os caprichos belicistas de políticos a quem sobeja a ambição e a quem vai faltando a inteligência e a sensibilidade. Manifestamo-nos contra o concubinato dos Estados com os super-poderes económicos de todo o tipo que governam o mundo. A terra pertence aos povos que a habitam, não àqueles que, servindo-se de uma representação democrática descaradamente pervertida, os exploram, manipulam e enganam. Manifestamo-nos para salvar a democracia em perigo.

Até agora a humanidade foi sempre educada para a guerra, nunca para a paz. Constantemente nos aturdem os ouvidos com a afirmação de que se queremos a paz amanhã não teremos mais remédio que fazer a guerra hoje.. Não somos ingénuos ao ponto de acreditarmos numa paz eterna e universal, mas se os seres humanos foram capazes de criar, ao longo da História, belezas e maravilhas que a todos nos dignificam e engrandecem, então é tempo de deitar mãos à mais maravilhosa e formosa de todas as tarefas: a incessante construção da paz. Que essa paz, porém, seja a paz da dignidade e do respeito humano, não a paz de uma submissão e de uma humilhação quantas vezes disfarçadas sob a máscara de uma falsa amizade protectora.

Já é hora de que as razões da força deixem de prevalecer sobre a força da razão. Já é hora de que o espírito positivo da humanidade se dedique, de uma vez, a sanar as inúmeras misérias do mundo. Esssa é a sua vocação e a sua promessa, não a de pactuar com supostos ou autênticos “eixos do mal”...

(Amenamente estavam Bush, Blair e Aznar conversando sobre o divino e o desumano, seguros e tranquilos no seu papel de poderosos feiticeiros, peritos em truques de batota e conhecedores eméritos de todos os enredos da propaganda mentirosa e da falsidade sistemática, quando no gabinete oval onde se encontravam reunidos irrompeu a terrível notícia de que os Estados Unidos de América do Norte tinham deixado de ser a única grande potência mundial. Antes de que Bush pudesse desferir o primeiro soco na mesa, o vosso presidente José María Aznar apressou-se a declarar que essa nova grande potência não era Espanha. “Juro que não é, George”, disse. “O meu Reino Unido também não”, acrescentou Blair rapidamente para cortar a nascente desconfiança de Bush. “Se não és tu e tu não és, quem é então?”, perguntou Bush. Foi Colin Powell, mal acreditando no que a sua própria boca pronunciava, quem disse: “A opinião pública, senhor presidente”.)

Todos tereis percebido que esta historieta é uma simples invenção minha. Peço-vos, portanto, que não lhe deis demasiada importância. Tem-na, porém, e muita, o que já se tornou numa evidência para todos, a mais exaltante e feliz evidência destes conturbados tempos: os feiticeiros Bush, Blair e Aznar, sem o quererem, sem que o tivessem proposto, nada mais que pelas suas malas artes e ainda piores intenções, fizeram surgir, espontâneo e irresistível, um gigantesco, um imenso movimento de opinião pública. Um novo grito de “Não passarão”, com as palavras “Não à guerra”, percorre o mundo.

Não há exagero em dizer que a opinião pública mundial contra a guerra se converteu numa potência com a qual o poder vai ter de contar. Enfrentamo-nos deliberadamente aos que querem a guerra, dizemos-lhes “NÃO”, e se, ainda assim, persistirem no sua demencial acção e  desencadearem uma vez mais os cavalos do apocalipse, então desde aqui os avisamos de que esta manifestação não será a última, de que estes protestos continuarão durante todo o tempo que a guerra durar, e mesmo mais além, porque a partir de hoje não se tratará simplesmente de dizer “Não à guerra”, mas sim de lutar todos os dias e em todas as instâncias para que a paz seja uma realidade, para que a paz deixe de ser manipulada como um elemento de chantagem emocional e sentimental com que se pretende justificar guerras.

Sem paz, sem uma paz autêntica, justa e respeitosa, não haverá direitos humanos. E sem direitos humanos – todos eles, um por um – a democracia nunca será mais que um sarcasmo, uma ofensa à razão, uma despudorada mentira. Nós, que aqui estamos, somos uma parte da nova potência mundial. Assumimos as nossas responsabilidades. Vamos lutar com o cérebro e o coração, com a vontade e o sonho. Sabemos que os seres humanos são capazes do melhor e do pior. Eles (não é necessário dizer agora os seus nomes) escolheram o pior. Nós escolhemos o melhor."

(Imagem da célebre conferência, realizada nos Açores, 
sob o patrocínio dos EUA, Reino Unido, Espanha e Portugal) 


Mais um texto de José Saramago sobre a Guerra do Iraque:

"Sabemos como se mobiliza para a guerra. Criado o foco de conflito, inicia-se o processo mobilizador com apelos patrióticos, manifestações, hinos, discursos, sons atroadores, imagens multiplicadas. Ainda o primeiro tiro não foi disparado e a  guerra já é santa, já é justa, já é necessária. Ultimamente, a arte de mobilizar para a guerra aperfeiçoou os métodos, potenciando a autoridade compulsiva dos governos e a influência dos condicionantes pessoais e colectivos. A persuasão tem na mobilização bélica uma expressão perfeita. O homem é mais facilmente mobilizável para a guerra que para a paz.

A humanidade tem sido levada a aceitar a guerra como único meio eficaz de resolução de conflitos, e os governos sempre se serviram dos períodos de paz para prepararem a guerra seguinte. Mas foi sempre em nome de uma paz futura que as guerras foram declaradas, é sempre para que amanhã os filhos vivam pacificamente que hoje se sacrificam os pais. Quem isto hipocritamente proclama sabe que o ser humano, apesar de historicamente educado para a guerra, transporta no seu espírito um perene anseio de paz. O homem compreende que o que lhe conferirá humanidade plena não é um desenvolvimento científico e tecnológico orientado para a agressão, mas a paz. Daí que esta seja usada como meio de chantagem moral por quem tem interesse na guerra: ninguém ousaria confessar que faz a guerra pela guerra, afirma-se, sim, que se faz a guerra pela paz.

O que ontem foi verdade continua a sê-lo hoje. Contra o que pretende a máquina propagandística norte-americana, Sadam Husein, sendo sem discussão um criminoso, não representa um perigo para a paz mundial. Iraque, simplesmente, é, neste momento, o alvo petrolífero mais fácil. Esse é um dos motivos da obsessão bélica dos Estados Unidos. O outro talvez possa ser encontrado no projecto imperial e neo-colonial de Washington, que, para poder penetrar na Ásia, necessita controlar o Médio Oriente..."

José Saramago

Dulce Chacón e Saramago, discursam contra a "Guerra do Iraque", Dezembro de 2003


"Um homem nunca sabe quando a guerra acaba. Diz, Olha, acabou, e de repente não se acabou, recomeça, e vem diferente, a puta, ainda ontem eram floreios de espada e hoje são arrombações de pelouro, ainda ontem se derrubavam muralhas e hoje se desmoronam cidades, ainda ontem se exterminavam países e hoje se rebentam mundos."
José Saramago, em "Memorial do Convento"

Retirado da revista digital "Blimunda", n.º 26 (Julho de 2014),