3 de Outubro (de 1996)
Prefácio para um livro:
Antes de construir o primeiro barco, o homem sentou-se na praia a olhar o mar. Ali esteve todo um dia e toda uma noite, a ver como subia e baixava a maré, a ver levantarem-se ao largo as ondas, a ouvir o fragor delas quando se desfaziam na linha de rebentação, e depois o suspiro delicado da espuma ao ser sorvida pela areia. A necessidade o trouxera. O alimento que a terra tantas vezes lhe negou, pródiga de secas, pestes e dilúvios, o mar lho oferecia sem medida, não pedindo, em troca, mais do que a simples moeda da coragem. E também o dom da invenção e a aventura do conhecimento. Juntar umas tábuas, tecer uma rede, moldar um anzol, impelir o barco para a água, de pouco iria servir-lhe sem a lição das correntes e dos ventos, das mudanças do céu, do passo das nuvens, do estremecimento dos cardumes. Para tanto, um homem sozinho não bastaria. Outros homens chegaram, e mulheres, e crianças, o estrondo contínuo das vagas e os silvos do ar amedrontaram a alguns e fizeram-nos recuar para as terras do interior, mas esses, um dia, vindo olhar de cima das falésias a aldeia que se formara na franja de areia, deram com o mesmo mar, sereno agora, brilhando ao sol como uma dança de cristais, as ondas apenas sussurrando sob o voo das gaivotas. Então desceram. Fugir da morte pode tornar-se num modo de fugir da vida.
As personagens que povoam José, o romance de Armando Palacio Valdés, são descendentes daqueles homens que diante do mar temeram e ousaram, aqueles que fizeram o barco e lançaram a rede, que arrancaram o peixe às sombras submarinas, que quantas vezes se afundaram nelas, de olhos abertos e com os pulmões cheios de água. Então o pranto humano teve de soar mais forte na natureza que todos os tufões nascidos dela, simplesmente porque o homem é o único animal capaz de chorar. E de sorrir. É diante do mar - do mar de Rodillero, do mar do mundo - que o riso e a lágrima assumem uma importância absoluta. Dir-se-á que mais profundamente a assumiriam diante do universo, mas esse, digo eu, está demasiado longe, fora do alcance duma compreensão comum. O mar é o universo perto de nós.
in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, página 230 e 231 (03/10/1996)