A referência ao pintor Andrea Mantegna é despertada de forma atenta, após a leitura da obra "Manual de Pintura e Caligrafia".
Confesso que foi uma obra difícil, ao contrário das investidas e incursões sobre a generalidade das obras, esta foi a que se me apresentou mais complexa.
O tempo e a cadência da linha escrita que o pintor frustrado impõe no desenrolar da obra, obrigou-me a reflectir de maneira intencionalmente interrompida. Momentos de ascensão referentes à descoberta da escrita em contraponto com o reconhecimento que o retratista da classe burguesa assume o seu fracasso.
No compasso em que decorre a obra, Saramago dá a conhecer a necessidade de uma nova ética social. A ruptura com a pintura (do retratista) consentida pela classe burguesa que suporta Salazar e Marcelo (com 2 ll como é referido) evolui para o experimentalismo da escrita com a estética comentada e questionada num pequeno roteiro por algumas cidades de Itália.
O retratista renasce como um homem novo, ao romper com a estética usada em mais de vinte anos de molduras pintadas, num momento em que a escrita, o amor e a chegada do 25 de abril abre as janelas para uma nova esperança.
Referência Andrea Mantegna na Wikipédia
http://pt.wikipedia.org/wiki/Andrea_Mantegna
Retirado via
Créditos:
http://josesaramago.blogs.sapo.pt/112126.html
"Mantegna: Uma ética, uma estética
Num romance publicado há quinze anos, com o título enigmático de Manual de Pintura e Caligrafia, e cuja história é narrada na primeira pessoa, imaginei que a minha personagem principal, um medíocre pintor de retratos, em viagem por Itália, entrou um dia na Capela Scrovegni, em Pádua, vindo depois a deixar constância do que viu nas páginas de um diário de que o narrador, por assim dizer, se apropriou, talvez para reforçar aquela ilusão de verosimilhança que os romancistas incansavelmente perseguem, mais do que a própria verdade. Depois de sugerir, com não pouca pretensão e complacência judicativa, que às pinturas de Pádua faltaria a frescura descritiva do ciclo da Vida de S. Francisco, em Assis, pintada pelo mesmo Giotto, a minha personagem, não tendo que demonstrar outras sabedorias, passa, simplesmente, ao que sentiu e ao que pensou, para tal se servindo, escusado seria dizê-lo, do que pensou e sentiu o autor do romance, este que vos fala, quando a Itália foi e em Pádua esteve. Escreve o meu pintor de retratos, designado no livro pela simples letra H: «As figuras mostram-se reservadas, algumas vezes hieráticas, pertencem a um mundo ideal, premonitório para Giotto. Num mundo assim descrito, o divino alastra serenamente sobre as coisas e as vicissitudes terrestres, como uma predestinação ou uma fatalidade. Ninguém sabe ali sorrir com os lábios talvez por incapacidade expressiva do pintor. Mas os olhos, fendidos, de pálpebras longas e pesadas, são muitas vezes rebrilhantes de espírito e há neles uma sageza calma e benigna que faz pairar as figuras acima e além dos dramas que os frescos relatam. Enquanto percorria uma vez, e outra, e outra ainda, a capela, seguindo pela ordem os três ciclos, surpreendi-me com um pensamento que ainda agora não consigo desdobrar e examinar. Mais ainda que um pensamento, foi um voto: poder dormir uma noite ali dentro, no meio da capela, acordar antes do amanhecer e ver surgirem da escuridão, pouco a pouco, como fantasmas, os grupos processionais, os gestos, os rostos, aquela cor azul de iluminura que é com certeza um segredo de Giotto, porque não existe noutro pintor. Ou não existe enquanto o olho a ele. Não se vá cuidar que haja em mim um apelo religioso que deste modo se denunciaria. Trata-se, antes, e muito terrenalmente, de querer saber como pode nascer um mundo.»
Citar-se a si próprio é um acto narcísico de que os autores sempre tentam desculpar-se, ora alegando uma suposta ou manifesta impossibilidade momentânea de dizer melhor ora insinuando que a citação contém tudo o que sobre o tema poderia ser dito, sem necessidade, portanto, de ir procurar, mais longe, mais exactidão. Neste caso de agora os objectivos são outros. Em primeiro lugar, situar-me logo de entrada, graças a um recurso literário elementar, na mesma cidade de Pádua aonde terei de levar-vos. Em segundo lugar, deixar no vosso espírito uma ideia propiciadora e benévola: a de que, tendo eu escrito há quinze anos um romance em que pintura e pintores vivem e se mostram abundantemente em todas as páginas, talvez seja hoje capaz, aqui, de falar-vos da vida de um desses pintores – Andrea Mantegna –, falando-vos também um pouco da obra dessa vida, não com a autoridade que me falta, mas, se tal palavra tem cabimento aqui, com o amor que me sobra. Que idade tinha Andrea Mantegna quando viu, também ele, pela primeira vez, os frescos de Giotto? Criança era, pois sabemos que ainda não completara onze anos quando foi trabalhar para a oficina do pintor Francesco Squarcione, em Pádua. Antes disso, a sua vida fora a de pastor, guardando carneiros por conta, provavelmente, de algum senhor ou proprietário rural da aldeia onde vivia com a família – Isola di Carturo –, então pertencente ao território de Vincenza, e onde teria nascido, em 1431. Como é que Francesco Squarcione, pintor, empreiteiro de obras, coleccionador e negociante de objectos de arte clássica, com uma loja frequentada pelos humanistas da Universidade de Pádua, conheceu o pequeno Andrea, filho do carpinteiro Biggio Mantegna, não se sabe, como também não se sabe que surpreendentes sinais de vocação e precocidade artística foram os manifestados pelo rapazinho para que Squarcione resolvesse levá-lo consigo. Outro mistério é o dos motivos que fizeram com que o pai de Andrea, ou por sua própria iniciativa, ou por proposta de Squarcione, renunciasse expressamente à paternidade, pois é como filho adoptivo de Squarcione que Andrea deixa a aldeia natal e vai viver, até aos dezassete anos, em casa daquele que será o seu pai e o seu mestre. O aclaramento destes pontos obscuros da biografia de Mantegna talvez não viesse a ter especial importância para o estudo da obra do pintor, mas ajudar-nos-ia, certamente, a compreender melhor o homem que ele foi. Sabemos hoje, em todo o caso, que a entrada de uma criança de tão pouca idade numa oficina de pintura nada tinha de excepcional, e era, até, naquele tempo, prática comum. Assim como no século XIX viriam a investir-se tantos e tão vultuosos capitais na investigação científica e tecnológica, algo de muito semelhante, ponderadas todas as diferenças de objectivos e de métodos, foi feito no século XV no domínio da actividade artística. A procura de pintores, escultores, arquitectos, gravadores, atraiu para a carreira das artes muita gente que, em outras circunstâncias, nunca em tal teria pensado. Um filho de camponeses ou mesteirais que mostrasse algum talento tinha muitas possibilidades de ser notado e estimulado por um senhor ou por um mercador rico da vizinhança. Claro está que o recrutamento se tornava muito mais fácil entre as famílias de artesãos – ourives, joalheiros, pintores, decoradores, ferreiros – que possuíam já as suas tradições profissionais e ofereciam aos filhos a vantagem duma aprendizagem precoce. Até essa época, só a Igreja fora buscar os seus artistas às mais diversas camadas sociais, só ela fora capaz de reunir no seu seio uma variedade tão grande de tipos humanos. O facto de esta prática se ampliar agora à sociedade civil, em particular ao mundo dos nobres e dos grandes senhores do comércio, teria de ter, como realmente teve, um fecundo efeito na expressão artística.
Acompanhando seu pai (os carpinteiros daquele tempo tinham, certamente, uma costela de artista), ou por ocasião daquilo a que hoje chamaríamos uma visita guiada (Squarcione dando lição magistral aos aprendizes da sua oficina), Andrea entrou um dia na Capela Scrovegni e viu os frescos de Giotto. Ao vê-los, permita-se-me a repetição da hipérbole, viu o mundo que o pintor do meu romance queria ver nascer, e a mim apraz-me agora imaginar que, antes que o viesse a proferir Rafael diante da Santa Cecília de Correggio, o nosso pequeno pastor, ainda cheirando ao fartum das ovelhas que apascentara, disse baixinho à sua alma: Anchio sonpittore. Sê-lo-á, bem o sabemos, mas terá ainda de passar, durante sete anos, pela minuciosa e dura experiência da aprendizagem do ofício, que irá desde o domínio total do desenho e da perspectiva à preparação das tintas e ao conhecimento íntimo, por meio de calcos e cópias, da escultura e da pintura da antiguidade clássica, que, como já vimos, constituía a maior parte do recheio da oficina de Francesco Squarcione. Este Squarcione, cuja obra praticamente se perdeu (somente se conhecem dele, assinados, uma Madona no Museu de Berlim e um quadro de altar no Museu de Pádua), ocupa, apesar disso, um lugar de excepcional importância na história da pintura do quattrocento, pois formou mais de cento e trinta pintores na sua oficina, nessa oficina onde se considera, com toda a plausibilidade, ter nascido o estilo dito paduano, que irá culminar em Mantegna e se espalhará pelo Norte da Itália. Anos depois, já depois do rompimento entre o mestre e o discípulo, ainda Squarcione dizia aos seus alunos mais rebeldes: frio fatto un uomo de Andrea Mantegna come faró di te. Ora, se é verdade que foi com Squarcione que Mantegna se fez homem, o mínimo que se pode observar é que Squarcione, tendo em conta as diferenças de carácter, não fez dele o homem que provavelmente quereria ter feito. E, quanto ao pintor, bastar-nos-á acrescentar que a Mantegna o fez o seu próprio génio.
O génio, sim, mas também a Itália. Quando o filho do carpinteiro Biggio nasceu, viviam na terra italiana artistas que se chamavam Brunelleschi, Ghiberti, Donatello, Fra Angelico, Alberti, Piero della Francesca, e quase se poderá incluir também, entre eles, Masaccio, que morrera apenas três anos antes. A Itália é então um estaleiro imenso e uma imensa oficina onde todas as artes florescem com um vigor talvez irrepetido, porque este foi por excelência o tempo da invenção do novo a partir de fragmentos e reminiscências do antigo, quando o próprio reencontro com a arte clássica e o seu estudo provocavam a ruptura que iria conduzir à modernidade. Aos ombros daqueles homens, de Andrea Mantegna e da sua geração é que subirão, chegada a sua hora, os Leonardos, os Rafaéis e os Buonarrotis do futuro.
Fosse o tema da conferência esse, e para tanto dessem os dados biográficos de que dispomos actualmente, confesso que ocuparia de bom grado todo o tempo que aqui me é concedido na descrição dos sete anos de aprendizagem de Mantegna. Devo notar, no entanto, que sobejam motivos para crer que esse largo período não foi de todo pacífico no que toca à relação entre aluno e mestre: não precisaríamos melhores provas que a frase já citada de Squarcione. Muitas e duras batalhas, surdas ou declaradas, se terão travado naquela oficina habitada por tão nobres vestígios da antiguidade, ao princípio causadas pelo choque natural entre um carácter autoritário, o de Squarcione, e uma personalidade orgulhosa, a do jovem Andrea. Porém, não é abusivo imaginar que o amadurecimento artístico e criativo de Mantegna, servido por uma intuição verdadeiramente extraordinária, depressa tivesse vindo a constituir-se como novo factor de contradição, não apenas na sua relação como homens, mas no seu confronto como pintores. O adolescente que aos dezasseis anos acompanha a Veneza o seu mestre, é já um pintor completo que se prepara para assumir o seu destino pessoal, sem servidões nem dependências, salvo as que resultam do estatuto social de um artista naqueles tempos, estatuto esse, aliás, em curso de transformação, e que ele não se resignará nunca a aceitar de cabeça baixa. E é no princípio do ano seguinte, 1448, que Mantegna dá o primeiro dos passos que o farão entrar numa vida adulta e responsável: deixa a casa de Squarcione e vai morar para outro bairro de Pádua, a contrada de Santa Lúcia, assinando com Squarcione um acordo segundo o qual, tendo-se tornado independente, podia guardar para si todo o dinheiro que viesse a ganhar. O primeiro desse dinheiro terá sido, provavelmente, o que lhe pagaram pelo políptico, hoje perdido, que, por essa mesma altura, pintava para a Igreja de Santa Sofia.
Chegados a este ponto, e para louvor e honra da instituição familiar, e também pela graça da sempre prestável imaginação, deveríamos introduzir aqui um episódio edificante: a visita dos pais de Andrea à nova casa do seu filho, durante a qual o carpinteiro Biggio não deixaria de congratular-se com os resultados da sua renúncia ao poder pessoal. Talvez então conhecêssemos algo mais dos sentimentos de Andrea, o balanço que ele próprio faria de sete anos passados a servir e a aprender. Nada saberemos, contudo. Quando Andrea, sozinho em casa, porque vem ainda longe o tempo de ter oficina e discípulos seus, der por terminada a tarefa de hoje, pode ser que vá visitar essa outra sua família que são os frescos de Giotto, antepassados de há século e meio, ou ir bater à porta de um homem de quase sessenta anos, chamado Donatello, em Pádua há cinco anos e que ali permanecerá por mais cinco, para vê-lo trabalhar no altar da Basílica de Santo António em que são representados milagres do santo, se é que, enfim, não acabará Andrea por aproveitar esta última luz da tarde para ir olhar uma vez mais a estátua equestre do Qattamelata, recentemente assentada. A visão de Mantegna é a de um mundo de relevos, que os olhos palpam e rodeiam como se fossem mãos e que as mãos reconhecem e identificam como se fossem olhos. O desenho e o modelado do claro-escuro ensinaram-no a criar na superfície dum muro ou duma tábua a impressão visual do volume, mas Mantegna parecerá perseguir sempre aquilo a que poderíamos chamar um grau supremo da ilusão, uma imagem plana que as mãos se negassem a tocar, com medo de atravessarem a superfície que a razão ainda afirma estar ali, mas que os olhos já romperam para seguir adiante: é nosso o olhar que nos contempla do fundo duma perspectiva ou desse outro muro, intangível e irrefragável, que está por trás das estátuas que a pintura fingiu. A lição de Squarcione havia imposto aos seus alunos, como modelos a seguir, os restos notáveis duma antiguidade clássica ressuscitada, mas eu penso que não forçarei demasiado a verosimilhança imaginando que a personalidade e a obra de Donatello, chegado a Pádua dois anos depois de Andrea ter começado a trabalhar com Squarcione, se terão constituído como um poderosíssimo foco de atracção para o jovem aprendiz.
Ora, no momento preciso em que Andrea, já sábio de ofício e livre de tutela, se apresenta ao mercado de trabalho, aconteceu que uma ilustre dama paduana, Imperatrice Ovetari, decidiu mandar construir para si uma capela na igreja dos Eremitani, que está a pouca distância da capela Scrovegni. Já se sabe que, naquele tempo, quem dizia capela, dizia pintura, por isso, tendo acabada os pedreiros a sua parte da obra, entraram os pintores. Foram eles, com o encargo de decorarem metade da capela, Antonio Vivarini e o seu sócio Giovanni d’Allemagna, venezianos, que em Veneza possuíam uma oficina, não menos conhecida que a dos Bellini. Para se ocuparem da outra metade da capela foram contratados os dois melhores discípulos de Squarcione, isto é, Andrea Mantegna e Niccolò Pizzolo, este dez anos mais velho que o colega. (Cabe aqui, de passagem, uma reflexão que, de algum modo, relativizará aquilo que tem vindo a ser dito sobre as más relações, por outro lado abundantemente documentadas, entre Mantegna e Squarcione. É que, sendo pouco crível que, por si mesma, tivesse Imperatrice Ovetari um conhecimento tão completo do trabalho de Mantegna que a levasse, confiada, a entregar à responsabilidade de um pintor jovem uma parte tão importante da decoração da sua capela, o mais provável é que tenha sido o próprio Squarcione, para o efeito consultado, a indicar os seus dois alunos mais capazes. Não esqueçamos que a importância de Squarcione na Pádua do tempo não se limitava ao domínio das artes, era também social.) O que o século XV fez, desfê-lo o século XX. No dia 11 de Março de 1944 vieram os aviões lançar bombas sobre Pádua, a igreja dos Eremitani foi atingida, parte dos frescos de Mantegna ficou destruída e sepultada nos escombros. Eis como o meu pintor do Manual registou a sua impressão de visitante: «A igreja dos Eremitani ficou destruída quase por completo; assim desapareceram ou foram danificados os frescos de Mantegna sobre a história de Santiago (o pintor tinha dezassete anos quando se achou, com as suas tintas e os seus pincéis, diante da superfície nua da parede). Olho o que resta do mundo pictórico de Mantegna, as arquitecturas monumentais, as figuras amplas e robustas como paisagens rochosas. Estou sozinho na igreja. Ouço os rumores da cidade que esqueceu a guerra, o zumbido dos aviões, o estrondo das bombas. Quando me decido a sair, entra um casal de velhos ingleses, altos, secos, enrugados, iguais. Como quem está em casa conhecida, dirigem-se à capela Ovetari, a de Mantegna, e ficam a olhar.» Pergunto-me, agora, que é que me terá levado a escrever que os ingleses, homem e mulher, se dirigiram à capela Ovetari «como quem está em casa conhecida». A razão lógica seria a de que já ali tinham estado antes, pertencerem, por exemplo, àquela categoria de viajantes ilustrados que voltam sempre ao que já conhecem porque mantêm viva a esperança de virem a conhecê-lo melhor. Mas uma outra explicação me ocorre hoje, decerto mais romanesca, sobretudo mais reconfortante, porque admite a possibilidade de arrepender-se uma pessoa do mal que fez e ser capaz de ir reconhecer a sua falta ao lugar da ofensa: fora aquele inglês velho quem tripulara, trinta anos antes, o bombardeiro destruidor, e que, com o polegar da sua mão direita, premira o botão para descarregar as bombas. Dir-me-eis que é demasiada a coincidência, e eu responderei que a vida é, toda ela, uma pura coincidência. Terei, contudo, de admitir que estou errado, se os aviões que naquele dia bombardearam Pádua não foram, afinal, ingleses, mas americanos...
O homem, felizmente, inventou primeiro a fotografia, e só depois os bombardeamentos aéreos. Graças a essa previsão, as imagens desaparecidas deixaram as suas sombras entre nós, agora que, quase cinquenta anos depois, a sua memória real se vai esfumando na memória dos sobreviventes, antes de se apagar, definitivamente, com o último. Todo o Mantegna está já aqui, um estilo de solenidade teatral mas austera, o sentido da mineralidade intrínseca do mundo, a necessidade de equilibrar esta irredutível dureza pelo apelo aos frutos e às flores, às grinaldas, às graças duma natureza ocasionalmente dadivosa. Sumiram-se em estrondo e em furor, em pó e em fogo, os enormes frescos de Santiago (quase três metros e meio de base cada um deles) que descreviam passos da vida do santo, a vocação, a pregação aos demónios, o baptismo de Hermógenes, o julgamento, o caminho do martírio, a morte por lapidação. Além de Mantegna e Pizoio, de Vivarini e D’Allemagna, trabalharam na capela Ovetari outros pintores, como Ansuíno da Forlì e Sono da Ferrara: tantos e tantos metros quadrados de paredes não podiam estar nas mãos de um só pintor, ou então a piedosa alma de imperatrice Ovetari não chegaria a experimentar a alegria arrebatada e consoladora de orar na sua capela, toda envolvida pelas cores e representações das vidas dos seus santos predilectos, Santiago e S. Cristóvão, este último pintado mais tarde, já depois do breve período veneziano de Mantegna, e que teve bem melhor sorte, pois veio a escapar ao bombardeamento. Mais, talvez, que os frescos de Santiago, o Martírio e Enterro de São Cristóvão exibe de uma maneira soberba toda a ciência perspectiva de Mantegna, e pode, neste particular aspecto, ser colocado a par da Flagelação de Cristo, de Piero della Francesca, pintado por esta mesma altura.
Apesar de todas as participações e ajudas, o trabalho dos Eremitani levará sete anos a chegar ao seu termo. Este Andrea que passeia os olhos pelos frescos enfim acabados da Capela Ovetari é agora a principal figura da pintura paduana e uma das mais importantes de todo o Norte da Itália. A última pincelada tê-la-á dado certamente ele: em 1451, falecido no ano anterior Giovanni d’Allemagna, Antonio Vivarini conclui a pintura do arco com os evangelistas e regressa a Veneza; em 1453 é a vez de desaparecer Niccoló Pizzolo, assassinado quando regressava, à noite, do seu trabalho na capela. Vasari diz que ele foi «afrontato e morto a tradimento», mas é mais provável ter-se tratado duma briga de espadas e punhais, como tantas outras em que o mesmo Pizzolo se envolveu na sua vida, pois era de temperamento colérico e assomadiço. Em brigas como esta, com a mesma violência e o mesmo ardor, entrou e entrará também não poucas vezes Mantegna, que não ficava atrás de Niccoló em questões de honra e precedência. Pouco dotados da virtude cristã da paciência, estes artistas do Renascimento punham facilmente em risco as suas obras-primas futuras: a cutilada que lhes cortasse o fio da vida, mataria também as cores e formas que estavam por nascer. A mão que, manchada ainda das tintas duma crucificação, ia lançar a estocada assassina, podia, por sua vez, não voltar mais a segurar num pincel: eles sabiam-no, e apesar disso não viravam a cara à morte, roubadora da vida e verdugo da arte.
É já para o fim do trabalho nos Eremitani que, para escapar à guerra que lhe declarara um Squarcione a quem os triunfos do antigo discípulo já faziam sombra, Mantegna resolve afastar-se de Pádua, indo viver para Veneza, onde os Bellini, grandes pintores, no dizer de Vasari, e homens de cultura, o acolhem como um igual. Os dois filhos de Jacopo Bellini, Giovanni e Gentile, fazem pouca diferença de Andrea na idade, mas é Andrea, mais novo, quem virá a deixar sinais de fortíssima influência na pintura dos irmãos Bellini, em particular, e por muitos anos, na de Giovanni: o quadro Jesus Orando no Horto, pintado por Giovanni Bellini em 1465 e que se encontra na National Gallery de Londres, evoca, irresistivelmente, a pintura de Mantegna, sobre idêntico tema, que no mesmo museu se encontra.
Foi também na família Bellini que Mantegna encontrou aquela que seria sua mulher, a filha de Jacopo, Nicolosa, de quem virá a ter cinco filhos, todos eles pintores, porém medíocres, um dos quais, Francesco, lhe dará, lá para o fim da vida, graves desgostos, pois será expulso de Mântua em consequência do seu indesejável comportamento. Esses dias de amarga tristeza ainda vêm longe, agora Andrea trabalha na oficina dos seus novos parentes, o sogro que o estima, os cunhados que o admiram, e, soltando-nos um pouco as travas à imaginação, poderemos ver daqui Nicolosa que se aproxima por trás do noivo para vê-lo pintar, enquanto não vão dar o passeio pelas ruas e pelos canais de Veneza que ele lhe prometeu e em que ela será o guia.
O casamento de Mantegna com a filha de Jacopo Bellini agravou ainda mais a inimizade que o opunha a Squarcione. Despeitado, o velho mestre passou a desprezar o que, de alguma maneira, era também obra sua: o estilo do discípulo. Eis, por exemplo, o comentário que fez aos frescos da Capela Ovetari: «As suas figuras têm sempre a dureza das pedras e nunca a tenra suavidade e macieza que têm as carnes e as coisas naturais. Teria feito melhor se pintasse mármores, que isto de vivo nada tem.» Mantegna, cujo carácter era tão duro como as pedras que assim lhe eram imputadas e que não suportava facilmente as críticas, decide demonstrar a sua capacidade de pintar figuras verdadeiras e povoa uma das cenas da Capela Ovetari com vivíssimos retratos das personagens da elite cultural paduana, atribuindo-lhes funções diversas como protagonistas do martírio de S. Cristóvão. Vingativo, representa também Squarcione, mas na figura do miserável, gordo e estúpido guerreiro que se encontra por trás do Santo: não se trata, porém, de um retrato, mas de uma caricatura. Mantegna voltará a ridicularizar outras vezes o velho mestre, em gravuras como Bacanal com Sileno e, sobretudo, na atroz alegoria que é Mercúrio e a Ignorância. Estas más relações explicam que no final de 1455 Mantegna tenha apresentado queixa no tribunal de Pádua para que lhe fossem pagas por Squarcione as pinturas executadas durante os anos em que com ele trabalhou. Durante o período de Veneza, Mantegna pintara um cartão sobre a Morte da Virgem para o mosaico da Capela Mascoli, na Basílica de São Marcos. Em Pádua, simultaneamente com o Martírio de S. Cristóvão, executou, para a Igreja de São Zeno, em Verona, onde ainda se encontra, um políptico com A Virgem e o Menino e Santos, que, sendo a sua primeira grande afirmação pictórica fora da prática do fresco, denota ainda a pertinaz influência de Donatello, neste caso o altar de Santo António, em Pádua, do qual Mantegna recebeu, e ali aplicou, a lição donatelliana sobre o modo de dispor e articular, plasticamente, as massas e as figuras.
Já antes, em 1456, Ludovico III de Gonzaga, marquês de Mântua, havia convidado Mantegna a trabalhar na sua corte, mas é só três anos depois, em 1459, a uma nova instância do senhor mantuano, que o pintor se decide a aceitar o convite. Oferecem-lhe os Gonzagas «quinze ducados de provisão por mês, alojamento para ele e para a família, cereal para seis pessoas, além de toda a lenha de que precise, e mais ainda». As condições económicas são favoráveis, e o ambiente afectivo e cultural que vai rodear Mantegna será a causa de ele não voltar mais a Pádua, salvo por um breve período em 1461. Em Mântua, com os Gonzagas, Mantegna será admirado e respeitado muito mais como um amigo do que como um pintor de corte, e esses sentimentos, de que Ludovico de Gonzaga é primeira expressão, serão igualmente partilhados e demonstrados tanto pela marquesa, Bárbara de Brandeburgo, como pelos dez filhos do casal. O encontro entre este príncipe e este pintor constitui, sem dúvida, um dos acontecimentos artísticos e humanos mais extraordinários e comovedores do Renascimento italiano.
Com a mudança para Mântua inicia Mantegna um novo e fecundo período do trabalho criador. O tríptico, hoje nos Uffizzi, que representa a Adoração dos Magos, a Ascensão e a Circuncisão, foi executado nesta primeira fase da actividade mantuana. Também desta época o Cristo no Horto, que tão claramente exemplifica o interesse do artista por uma representação de tipo cenográfico, em diversos níveis narrativos, com uma evidente preocupação de historicidade. É a Morte de Maria, que o Prado se orgulha de ter à sua guarda, provavelmente também deste período, embora não falte quem afirme que Mantegna só a pintou em 1492, no regresso da viagem que por essa altura fez a Roma. Seja como for, é Mântua que está representada ao fundo do quadro, com as suas torres e as suas muralhas, os lagos, a Ponte de São Jorge, uma das que Ludovico de Gonzaga fez construir sobre os pântanos que então rodeavam a cidade.
Pintor da corte de Mântua, Mantegna é solicitado a viajar para outros lugares. Com o consentimento dos Gonzagas, vai a Florença dar conselhos acerca do coro da Santissima Annunziata, a Pisa pintar uma parede no Camposanto, irá mais tarde a Roma, mas, onde quer que esteja, sempre estará suspirando por voltar à sua cidade de Mântua, onde o estimam e indulgentemente desculpam as exigências e excentricidades do seu carácter, que o correr dos anos tem vindo a acentuar. Nada o enfurece mais do que o apropriamento indevido dos frutos do seu trabalho. Ao descobrir que o gravador Zoan Andrea, que trabalhava na sua oficina, gravava e vendia, sem autorização, desenhos seus, expulsou-o e obrigou-o, parece que por violência, a entregar-lhe as «estampas e as chapas». Mais tarde, ao ter conhecimento de que o mesmo Zoan Andrea passara a utilizar, com idêntico fim, os serviços de um outro gravador, Simone Ardizzonni, de Heggio Emilia, a sua ira voltou-se contra este, ao princípio com ameaças, depois com perseguições, ao ponto de o dito Simone ter escrito ao marquês Ludovico de Gonzaga uma carta em que dizia: «Como o endemoninhado Andrea Mantegna soube que eu andava a refazer as estampas, mandou ameaçar-me por um florentino, jurando que eu havia de pagar-lhas. E, como se não bastasse, fui assaltado uma noite pelo sobrinho de Carlo de Moltone e mais dez homens armados, Zoan Andrea e eu, para nos matarem...» Mortes não chegou a haver, que se saiba, mas as violências só terminaram quando o abuso cessou. E a resposta que Ludovico de Gonzaga mandou dar a este Simone Ardizzoni foi a mesma, mais palavra menos palavra, que dera, tempos atrás, a um hortelão que lhe fora fazer queixa de pretensas prepotências de Mantegna: «Quero mais à ponta do pé desse Andrea do que a mil poltrões como tu.» Porém, não se pense que só em casos que envolvessem gente de pouco é que o marquês Ludovico de Gonzaga tomava a defesa de Mantegna: não foi mais receptivo às denúncias de súbditos importantes que iam protestar junto dele contra o áspero carácter do mestre.
Como homem e como artista, Andrea está na sua plena maturidade no dia em que Ludovico de Gonzaga o encarrega de executar, no andar nobre do torreão norte do Castelo de São Jorge, as grandes decorações murais a que chamamos Camera degli Sposi. Outras decorações realizadas por Mantegna nessa mesma altura desapareceram, mas aquilo que chegou aos nossos dias, de uma tarefa que facilmente podemos imaginar imensa, constitui uma das obras mais belas e perfeitas de toda a história da pintura, sem distinção de tempo e de lugar. Discute-se ainda hoje a data do início do trabalho, que, de qualquer modo, se crê ter sido entre 1465 e 1473, mas sobre o que parece não haver dúvidas, a fazer fé na dedicatória pintada sobre a porta de saída da Camera, é sobre a data da sua conclusão, que terá sido 1474, ainda que alguns estudiosos afirmem terem-se prolongado os trabalhos até 1484, e mesmo 1488.
Pode-se compreender melhor, diante dos frescos da Camera degli Sposi, como diz Giovanni Paccagnini, «o significado interno que teria para Mantegna a sistemática busca de perfeição formal sempre presente em cada uma da suas obras, busca essa que não respondia a um formalismo exterior, mas a uma severa concepção ética da expressão como conquista que só a virtude industriosa pode alcançar mediante um assíduo e fatigante exercício». O poderoso retrato histórico que Mantegna figurou na Camera degli Sposi é o fruto mais alto dessa assídua e ardente busca de valores universais, que refuta a temporalidade dos sentimentos pela ansiosa aspiração, em nós nunca inteiramente desvanecida, a uma expressão fixada em relações imutáveis, subtraída ao perene fluir do tempo. Não são muitas as figuras, quer pintadas quer esculpidas, povoadoras da História da Arte, que tão irresistivelmente convoquem no nosso espírito a designação de eternas.
Ludovico III morre em 1478, mas as relações entre Mantegna e os Gonzagas não sofrem qualquer modificação. Mantegna encontra junto do sucessor da casa dos Gonzagas, Federico, um favor igual ao que gozara até aí. É quando um filho do pintor, em 1480, adoece gravemente, o novo marquês recomenda-o a um médico então célebre, Gerardo da Verona, que, contudo, não o pôde salvar. É depois deste acontecimento, e quem sabe se por causa dele, que Mantegna pinta o S. Sebastião que se encontra hoje no Louvre e que, na altura, foi levado por Chiara Gonzaga, filha de Ludovico III, para Aigueperse, na sequência do casamento com o conde Montpensier. Por duas vezes ainda, Mantegna retomará o tema sebástico: logo pouco tempo depois, na pequena tábua que se pode ver no Museu de Viena, e, perto do fim da vida, no dramático painel, actualmente no Ca’ d’Oro, em Veneza, exemplo, segundo Fiocco, «da mais abstracta metafísica linear».
Ainda as tintas da Camera degli Sposi mal tinham secado e já Andrea Mantegna se lançava, satisfazendo o pedido de Federico de Gonzaga, à gigantesca tarefa de pintar sobre tela o Triunfo de César, um conjunto de cinco quadros de grandes dimensões (no total 27 metros por 5), destinados a decorar uma sala onde se faziam representações teatrais. Estas telas, para além do seu evidente mérito artístico e decorativo, podem também ser olhadas como um esplendoroso inventário dos múltiplos saberes de Mantegna acerca das antiguidades romanas, desde o vestuário e insígnias às armas e objectos, mas sobretudo é possível captar nelas algo a que, sem excessivo erro de generalização, poderíamos chamar espírito da romanidade. Em 1489, de Roma, para onde tinha ido, a pedido do papa Inocêncio VIII, com a missão de pintar os frescos duma capela no Belvedere do Vaticano, Mantegna escreve ao marquês Gonzaga a recomendar-lhe a conservação das telas terminadas do Triunfo, ao mesmo tempo que exprime a esperança de continuar e completar a obra. Mas em Dezembro desse mesmo ano é Francesco de Gonzaga, neto de Ludovico III, quem, estando próximo o seu casamento com Isabella dEste, escreve ao papa a pedir-lhe que autorize o regresso de Mantegna a Mântua, para os preparativos da boda. Muito doente, Mantegna não poderá fazer a viagem, e só regressará a Mântua quase um ano depois, sendo certo que, nesse meio tempo, concluiu a decoração da capela do Belvedere, que veio a ser destruída em 1780. Em Abril de 1492 ainda faltarão dois elementos do Triunfo de César, mas Mantegna não terminará a obra.
Da representação do triunfo autêntico de um imperador, Mantegna vai passar, em 1495, à comemoração do triunfo de Francesco de Gonzaga contra Carlos VIII de França na batalha de Fornovo – vitória aliás bastante contestável, pois Carlos VIII pôde retirar-se com quase todo o seu exército, menos numeroso, de resto, que o do vencedor, e sofreu menos perdas do que este. No ano seguinte, a Madonna della Vittoria, hoje no Museu do Louvre, é exposta, em Mântua, com grande solenidade, numa capela de propósito construída para esse fim.
A vida de Mantegna vai chegando ao seu termo. Conhecido, amado e respeitado por todos, visitam-no em sua casa as personagens mais importantes do tempo, como Ercole d’Este, duque de Ferrara, e o próprio Lorenzo de Medici, il Magnifico. Doente, amargurado pelos desgostos, Mantegna continuará a pintar até se lhe acabarem as forças. Quando, finalmente, no dia 13 de Setembro de 1506 fecha os olhos para não mais os abrir, tem em sua casa o S. Sebastião (Ca’ d’Oro, Veneza) e o Cristo Morto (Brera, Milão), duas trágicas figurações dos intermináveis sofrimentos da humanidade, duas representações, também, da superior dignidade do ser humano.
Élie Faure disse um dia que os pintores primitivos punham sempre nas suas obras tudo quanto sabiam. Na sua pintura, Mantegna não pôs só tudo quanto sabia, pôs também o que definitivamente era: um homem inteiro na sua dureza e na sua sensibilidade, como uma pedra que fosse capaz de chorar.
José Saramago"