Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

"Saramago na parede" por José Castello - Sobre a obra inacabada “Alabardas, alarbardas, epingardas, espingardas” (25/10/2014)

A artigo pode ser recuperado e consultado aqui
em http://blogs.oglobo.globo.com/jose-castello/post/saramago-na-parede-553229.html

"Saramago na parede", de José Castello (25/10/2014)

"Toda ficção tem seus pontos de atrito. Núcleos explosivos, eles, em geral, desvelam grandes impasses. Resumem, assim, aqueles impulsos essenciais que se derramam ao longo de todo o relato. Já no primeiro capítulo de “Alabardas, alarbardas, epingardas, espingardas”, último e inacabado romance de José Saramago (Companhia das Letras, ilustrações de Gunter Grass), encontro aquele ponto de convergência — espécie de caroço — que resume o próprio livro. Funcionário de uma indústria de armamentos, a Belona SA, o protagonista Artur Paz Semedo orgulha-se de seu trabalho. Esse orgulho é, ao mesmo tempo, a causa de sua solidão. Depois de um longo casamento, sua mulher Felícia, uma militante pacifista, não suporta a contradição que traz em sua vida doméstica, e o abandona.

Apaixonado pela perfeição das armas que ajuda a produzir, Semedo é também um admirador dos filmes de guerra. Um dia, assiste a “A esperança”, obra sobre a guerra civil espanhola, rodada no fim dos anos 1930 e inspirada no romance homônimo de André Malraux. Não é um entusiasta da leitura, mas, estimulado pelo filme, decide ler o romance. “Mal sabia ele, pobre coitado, o que o esperava”. Uma brevíssima passagem o detém. “O comissário da nova companhia pôs-se de pé: ‘Aos operários fuzilados em Milão por terem sabotado obuses, hurra’”. Ali, onde não esperava, Semedo prova o gosto áspero do paradoxo. Primeiro é invadido por um incontrolável sentimento de piedade pelos sabotadores fuzilados. Ao mesmo tempo, é devastado pela repulsa à sabotagem, expressa em uma frase que diz sem pensar: “Não se podem queixar, tiveram o que procuraram, quem semeia ventos colhe furacões”. A piedade difusa se transmuta em irritação. É um funcionário “tão afeiçoado a instrumentos bélicos que não podia suportar a simples idéia de que alguém se atrevesse a sabotá-los”.

A cisão vem à tona, áspera ferida, rasgando a precária estabilidade da vida de Artur Semedo. Nesse momento, o personagem de José Saramago se aproxima do humano. Toma a sabotagem como uma ofensa pessoal. Isso se mistura à misericórdia pelos operários. Semedo descobre, nesse momento, que tem dois corações, e pior: que eles, em vez de se complementarem, se negam e repudiam. Também o leitor de Saramago — eu mesmo — nesse momento se vê diante de um impasse. Já não pode se identificar com o personagem, porque não sabe, ao certo, quem ele é. Não pode negá-lo — porque, provavelmente, com ele divide sentimentos parecidos. Mas não pode nele se espelhar — porque a imagem em que se reflete vem despedaçada.

“O sentir humano é uma espécie de caleidoscópio instável”, relata Saramago. “A realidade do que aconteceu na cabeça de Artur Paz Semedo foi diferente, a comiseração, a falta de piedade e a irritação, ainda que centradas em si mesmas, tinham aparecido misturadas”. Alguém se torna humano não quando corresponde, ponto a ponto, aos modelos “naturais”, mas, ao contrário, quando deles se desvia. O caleidoscópio — artefato óptico em que o jogo de imagens se produz por reflexo — resume, de modo preciso, mas ameaçador, a mente humana. A turbulência dos sentimentos o engolfa. “Foram eles que levaram Artur Paz Semedo a não continuar a ler o livro de Malraux”. De nada serve ler ingenuamente. Há sempre o momento em que tropeçamos em um impasse. Momento em que toda esperança de explicação e ordem se desfaz.

O próprio Semedo se encarrega de telefonar para a mulher para admitir que está “com o espírito confuso”. Recorda, então, que, já perto do fim do livro de Malraux, há uma referência a uns operários que foram fuzilados em Milão por terem sabotado obuses. Comenta Felícia que foi um ato justo, “já que estavam contra a guerra”. Com o interior aos frangalhos, Semedo, ainda assim, reage. A mulher reclama de sua “falsa virtude ofendida”. Ele rebate dizendo que “o que faço é defender o meu trabalho”. Não é fácil para um homem admitir que faz aquilo que, embora se orgulhe, também o repugna. Semedo está em um impasse: é contra o fuzilamento, mas também contra a sabotagem. A incoerência de seus pensamentos o asfixia.

Livros são iscas — e, nesse ponto, evocam a realidade, que sempre nos encosta contra a parede. Lembro-me do dia em que Saramago me acompanhou em um passeio pelo parque dos vulcões de Timanfaya, no coração da ilha de Lanzarote, Canárias, onde vivia. O parque, com seu terreno ressecado e cinzento, evoca a face da Lua. Mas não de um satélite morto como o nosso, e sim de uma Lua viva, sobre a qual ardem milhares de pequenos vulcões. Turistas usam algumas dessas bocas de fogo para assar seus churrascos. O ato, banal, não serve para esconder o horror que nelas se guarda. Saramago me disse: “o sentimento mais forte nesse parque é a estranheza”. De fato, a mistura de relaxamento e medo, de acolhimento e ataque, essa incompatibilidade de sensações, é algo inesquecível. Nela o parque se afirma. Ali o real expõe, enfim, sua ferida. Da brutalidade — uma terra em fogo — tira-se não o horror, mas o prazer. E, contudo, a ilha queima e lateja. Aquilo não é só uma ficção.

Também as narrativas, como os escritores, chegam a um momento em que o impasse formal se cristaliza em subjetividade. Em uma antiga entrevista a Ángel Crespo, Saramago nos diz: “O que ocorre é que, talvez, há um momento chave no qual o sujeito se aceita a si mesmo”. E mais para frente, recordando o momento em que se encontrou como escritor: “Eu me dei conta de que o melhor para mim era ser o que era. Foi quando aceitei meus limites, todos os meus limites, e quando compreendi que a única solução que me restava era me aprofundar no espaço de meus limites, e não pensar em ir além”. O ser é não uma soma — uma síntese —, mas, ao contrário, a cristalização de um paradoxo. Não se trata, portanto, de um momento de solução — talvez, ao contrário, seja um momento de dissolução. Decomposição de ideais e de projetos de perfeição. É um momento que também o leitor, desamparado, experimenta. Nele, os sentimentos, em vez de clarear, se obscurecem. As partes, em vez de se completarem, entram em conflito. E o personagem, enfim, deixa de ser uma síntese morta para se tornar vivo."

"Baltasar Garzón 2" - Revisitar "Outros Cadernos de Saramago" (12/12/2008)

Revisitar "Outros Cadernos de Saramago"
http://caderno.josesaramago.org/16449.html

Sexta-feira, 12 de Dezembro de 2008

"Baltasar Garzón, 2"
"O juiz Baltasar Garzón deixou em Lisboa uma lição do que é ou deve ser o Direito. A verdade é que, em sentido estrito, do que se falou no acto organizado pela Fundação foi de Justiça. E de sentido comum: dos delitos que não podem ficar impunes, das vítimas a quem tem de ser dada satisfação, dos tribunais que têm de levantar alcatifas para ver o que há por baixo do horror. Porque muitas vezes, por baixo do horror, há interesses económicos, delitos claramente identificados perpetrados por pessoas e grupos concretos que não podem ser ignorados em Estados que se proclaman de direito. Quem sabe se os responsáveis dos crimes contra a humanidade, que de outra forma não posso chamar a esta crise financeira e económica internacional, não acabarão processados, como o foram Pinochet ou Videla ou outros ditadores terríveis que tanta dor espalharam? Quem sabe?
O juiz Baltasar Garzón fez-nos compreender a importância de não cair na vileza uma vez para não ficar para sempre vil. Quem conculca uma vez os direitos humanos, em Guantánamo, por exemplo, atira pela borda fora anos de direito e de legalidade. Não se pode ser cúmplice do caos internacional com que a administração Bush infectou meio mundo. Nem os governos, nem os cidadãos.
Um auditório multitudinário e atento seguiu as intervenções do juiz com respeito e consideração. E aplaudiu como quem ouve não verdades reveladas, mas sim a voz efectiva de que o mundo necessita para não cair em na permissividade da abjecção.
A Fundação está contente: fizemos o que pudemos para recordar que há uma Declaração de Direitos Humanos, que estes não são respeitados e que os cidadãos têm de exigir que não se tornem em letra morta. Baltasar Garzón cumpriu a sua parte e tê-lo posto a claro esta tarde em Lisboa só pode fazer com que nos felicitemos."