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Notas sobre o "Ensaio sobre a Cegueira"
Em 1993, algumas semanas depois de se ter mudado para a ilha de Lanzarote, José Saramago deu início a um projeto que já orbitava sobre a sua cabeça: um romance sobre uma cegueira branca que ataca os habitantes de uma cidade. Durante pouco mais de dois anos, o escritor trabalhou na escrita
de Ensaio sobre a Cegueira, publicado em 1995. “No fundo, o que o livro quis expressar é muito simples: se somos assim, que cada um se pergunte porquê”, disse o autor uns anos depois, numa conferência.
Nos últimos meses, com a pandemia de um super-vírus que nos obriga ao confinamento em casa e levanta questões sobre a nossa capacidade de vivermos em coletividade, o romance de José Saramago passou a ser muito citado e recordado.
Durante os meses em que esteve envolvido no projeto, José Saramago deixou anotadas no seu diário as dificuldades e aflições com que se deparou ao escrever o romance, assim como as descobertas e aprendizagens que ele trouxe. A Blimunda deste mês recupera algumas notas do diário do escritor que fazem referência ao Ensaio sobre a Cegueira e que podem servir para os interessados em ler ou reler o romance.
Cadernos de Lanzarote I (1993)
20 de abril
Esta manhã, quando acordei, veio-me à ideia o Ensaio sobre a Cegueira, e durante uns minutos tudo me pareceu claro — exceto que do tema possa vir a sair alguma vez um romance, no sentido mais ou menos consensual da palavra e do objeto. Por exemplo: como meter no relato personagens que durem o dilatadíssimo lapso de tempo narrativo de que vou necessitar? Quantos anos serão precisos para que se encontrem substituídas, por outras, todas as pessoas vivas num momento dado? Um século, digamos que um pouco mais, creio que será bastante. Mas, neste meu Ensaio, todos os videntes terão de ser substituídos por cegos, e estes, todos, outra vez, por videntes… As pessoas, todas elas, vão começar por nascer cegas, viverão e morrerão cegas, a seguir virão outras que serão sãs da vista e assim vão permanecer até à morte. Quanto tempo requer isto? Penso que poderia utilizar, adaptando-o a esta época, o modelo «clássico» do «conto filosófico», inserindo nele, para servir as diferentes situações, personagens temporárias, rapidamente substituíveis por outras no caso de não apresentarem consistência suficiente para uma duração maior na história que estiver a ser contada.
21 de abril
Chegou uma cópia da segunda edição de In Nomine Dei. Mais cinco mil exemplares, que se vão juntar aos dez mil da edição inicial. Pergunto: que se passa, para que uma peça de teatro atraia tanta gente? Já não é só o romance que interessa aos leitores? Terá isto que ver, apenas, com a simples fidelidade de quem se habituou a ler-me? Ou será que, neste tempo de violência e frivolidade, as «questões grandes» continuam a roer a alma, ou o espírito, ou a inteligência («moer o juízo» é uma expressão com muito mais força) daqueles que não querem conformar-se? Se assim é, espero que venham a sentir-se bem servidos com o Ensaio sobre a Cegueira…
21 de junho
[…] Dificuldade resolvida. Não é preciso que as personagens do Ensaio sobre a Cegueira tenham de ir nascendo cegas, uma após outra, até substituírem, por completo, as que têm visão: podem cegar em qualquer momento. Desta maneira fica encurtado o tempo narrativo.
2 de agosto
Escrevi as primeiras linhas do Ensaio sobre a Cegueira.
15 de agosto
Decidi que não haverá nomes próprios no Ensaio, ninguém se chamará António ou Maria, Laura ou Francisco, Joaquim ou Joaquina. Estou consciente da enorme dificuldade que será conduzir uma narração sem a habitual, e até certo ponto inevitável, muleta dos nomes, mas justamente o que não quero é ter de levar pela mão essas sombras a que chamamos personagens, inventar-lhes vidas e preparar-lhes destinos. Prefiro, desta vez, que o livro seja povoado por sombras de sombras, que o leitor não saiba nunca de quem se trata, que quando alguém lhe apareça na narrativa se pergunte se é a primeira vez que tal sucede, se o cego da página cem será ou não o mesmo da página cinquenta, enfim, que entre, de facto, no mundo dos outros, esses a quem não conhecemos, nós todos.
20 de agosto
Uma hipótese: talvez esta necessidade imperiosa de organizar uma lembrança coerente do meu passado, dessa sempre, feliz ou infeliz, única infância, quando a esperança ainda estava intacta, ou, ao menos, a possibilidade de vir a tê-la, se tenha constituído, sem que eu o pensasse, como uma resposta vital para contrapor ao mundo medonho que estou a caminho de imaginar e descrever no Ensaio sobre a Cegueira.
22 de agosto
Começo a compreender melhor a relação que a gente nova tem com os jogos de computador, e como é fácil ficar prisioneiro do teclado e do que vai acontecendo no ecrã. Nos últimos dois dias, pouco atraído pelo Ensaio, cheio de espinhos, que ainda vai no primeiro capítulo, dediquei-me a investigar um pouco mais uma máquina (chamo máquina ao computador…) que até agora só me tinha servido para escrever.
30 de agosto
Terminado o primeiro capítulo do Ensaio. Um mês para escrever quinze páginas… Mas Pilar, leitora emérita, diz que não me saí mal da empresa.
25 de novembro
Em que ponto está o Ensaio sobre a Cegueira? Parado, dormindo, à espera de que as circunstâncias ajudem. Mas as circunstâncias, mesmo quando parecem propícias, não perdem a sua volubilidade natural, precisam de uma mão firme e boa conselheira. Até ao fim do ano (por causa da viagem às terras do Mais Antigo Aliado, e depois as festas, com a casa cheia de gente), não terei mais remédio que deixá-las à solta (falo das circunstâncias, claro) mas logo a seguir tratarei de as prender curto. Entretanto, vou escrevendo umas quantas coisas como esta que a revista Tiempo, de Madrid, me pediu, sobre a anunciada criação do Parlamento de Escritores […].
17 de dezembro
Voltei—timidamente—ao Ensaio. Modifiquei umas quantas coisas, e o capítulo ficou bastante melhor: a importância que pode ter usar uma palavra em vez de outra, aqui, além, um verbo mais certeiro, um adjetivo menos visível, parece nada e afinal é quase tudo.
Cadernos de Lanzarote II (1994)
3 de janeiro
Zeferino Coelho regressou hoje a Lisboa. Enquanto cá esteve leu tudo quanto tenho escrito nos últimos tempos: estes Cadernos, o capítulo do Ensaio, as notas para as Tentações. Propôs-me levar já os Cadernos, para publicar em abril um primeiro volume. O trabalho que tive para contrariar-lhe a ideia não precisou de ser grande, mas obrigou-me a pensar sobre o que quero fazer, ou melhor, sobre a ordem por que haverão de sair estes livros, por enquanto ainda só promessas deles. Concluí que devo lançar-me de vez ao Ensaio e não ir buscar desculpas cómodas ao tempo que as Tentações e os Cadernos vão continuar a tomar-me. Nestas duas semanas pouco poderei adiantar (primeiro vem o José Manuel Mendes, depois aparecerá o João Mário Grilo com a equipa de filmagem), mas, passadas elas, terei de voltar ao trabalho, desviar os olhos deste céu, deste mar, destas montanhas. Contra o meu desejo, duramente. (Há dias saiu-me «brutalmente»… Enfim, palavras.) […]
29 de abril
Sentei-me a trabalhar no Ensaio sobre a Cegueira, ensaio que não é ensaio, romance que talvez o não seja, uma alegoria, um conto «filosófico», se este fim de século necessita tais coisas. Passadas duas horas achei que devia parar: os cegos do relato resistiam a deixar-se guiar aonde a mim mais me convinha. Ora, quando tal sucede, sejam as personagens cegas ou videntes, o truque é fingir que nos esquecemos delas, dar-lhes tempo a que se creiam livres, para no dia seguinte, desprevenidas, lhes deitarmos outra vez a mão, e assim por diante. A liberdade final da personagem faz-se de sucessivas e provisórias prisões e libertações.
8 de julho
O Ensaio saiu do atoleiro em que tinha caído há já não sei quantos meses. Pode vir a cair noutro, mas deste safou-se. Há uns poucos dias que eu tinha decidido deixar de lado dois capítulos que se haviam convertido numa daquelas armadilhas onde se pode entrar com toda a facilidade, mas donde não se sai. O novo rumo parecia-me animador, abria perspetivas. Em todo o caso, ainda não me sentia completamente seguro. Foi então que andando por aí, hoje, ao vento, me sucedeu algo muito semelhante ao episódio de Bolonha, quando, depois de meses sem saber o que poderia fazer com a ideia do Evangelho, nascida em Sevilha, toda a sequência do livro — enfim, quase toda — se me apresentou com uma claridade fulgurante. Estava na Pinacoteca, vira a pintura da primeira sala à esquerda da entrada, e foi ao entrar na segunda (ou teria sido na terceira?) que os pilares fundamentais da narrativa se me definiram com tal simplicidade que ainda hoje me pergunto como foi que não tinha visto antes o que ali me parecia óbvio. Não era nada de complicado, basta ler o livro. Neste caso — o do Ensaio— a «revelação» não foi tão completa, mas sei que vai determinar um desenvolvimento coerente da história, antes atascada e sem esperanças. Todos os motivos que vinha dando, a mim mesmo e a outros, para justificar a inação em que me achava — viagens, correspondência, visitas —, podiam, afinal de contas, ter sido resumidos desta maneira: o caminho por onde estava a querer ir não me levaria a lado nenhum. A partir de agora, o livro, se falhar, será por inabilidade minha. Antes, nem um génio seria capaz de salvá-lo.
24 de julho
Uma coisa seria querer fazer um romance sem personagens, outra pensar que seria possível fazê-lo sem gente. E esse foi o meu grande equívoco quando imaginei o Ensaio sobre a Cegueira. Tão grande ele foi que me custou meses de desesperante impotência. Levei demasiado tempo a perceber que os meus cegos podiam passar sem nome, mas não podiam viver sem humanidade. Resultado: uma boa porção de páginas para o lixo.
26 de outubro
João Cabral de Melo Neto recebeu hoje, aqui em Madrid, das mãos da rainha, o Prémio Reina Sofía de Poesia Iberoamericana. Disse-me que perdeu a visão central, as suas primeiras palavras foram mesmo: «Estou cego», e eu só pude abraçá-lo com força. Mais tarde pensei nos meus cegos do Ensaio e achei-os insignificantes diante da realidade pungente daqueles olhos perdidos. Cego, João Cabral, o maior poeta de língua portuguesa vivo, com perdão de outros que também são grandes… O discurso de agradecimento, lido pelo embaixador do Brasil, foi muito belo, de uma serenidade profunda, como de alguém que, por cima das tristes dores da vida, está em paz consigo mesmo.
Cadernos de Lanzarote III (1995)
8 de janeiro
Há tempos prometi a Lakis Proguidis, para o seu L’atelier du roman, um ensaio sobre Ernesto Sábato, para o qual até já dispunha de título, uma vez que, como é minha incorrigível tineta, batizo sempre a criança antes de ela ter nascido. Chamar-se-ia O Olhar Sobrevivente. O condicional já está aí a dizer que a promessa não chegou a ser cumprida. Talvez regresse um dia a esse projeto, mas nunca antes de me libertar da legião de cegos que me rodeia. Aliás, é bem possível que o título me tenha vindo, por desconhecidos caminhos, daquele «olhar sobrevivente» que, em sentido literal, existe no Ensaio sobre a Cegueira. Isso e, por diferentes vias, o Informe sobre Cegos do mesmo Sábato (onde o número de cegos não conta comparado com os do Ensaio…), é o que provavelmente me terá levado ao título desse outro «ensaio» que ficou por escrever.
12 de janeiro
[…] José Manuel Mendes pergunta-me num fim de carta: «Como vai o Ensaio?» Vou responder-lhe com uma palavra simples: «Avança.» Provavelmente, ele pensará: «Enfim… já não era sem tempo.»
15 de janeiro
Contra mim falo: o melhor que às vezes os livros têm são as epígrafes que lhes servem de credencial e carta de rumos. Objeto Quase, por exemplo, ficaria perfeito se só contivesse a página que leva a citação de Marx e Engels. Lamentavelmente, a crítica salta por cima dessas excelências e vai aplicar as suas lupas e os seus escalpelos ao menos merecedor que vem depois. Não foi esse o caso de um certo crítico que, atento à matéria, não deixou passar em claro a epígrafe da História do Cerco de Lisboa, aquela que diz: «Enquanto não alcançares a verdade, não poderás corrigi-la. Porém, se a não corrigires, não a alcançarás.» São palavras do Livro dos Conselhos, confirmava com toda a seriedade, movido provavelmente por uma reminiscência, de direta ou indireta via, do Leal Conselheiro de D. Duarte. Ora, convém dizer que são também palavras do Livro as que irão servir agora de epígrafe ao Ensaio sobre a Cegueira, em andamento. Estas rezam assim: «Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.» Espero que o bem-intencionado crítico, tendo refletido sobre a profundidade do asserto, não se esqueça, com idêntica circunspeção, de mencionar a fonte, salvo se, desta vez, tomado de súbita desconfiança ou de científico escrúpulo, se decidir a perguntar: «Que diabo de Livro dos Conselhos é este?»
16 de janeiro
O Livro dos Conselhos não existe.
4 de março
Dia de chuva e frio em Braga. Colóquio de inauguração da Feira do Livro, com a escritora espanhola Soledad Puértolas e Luísa Mellid Franco, que foi a moderadora. Apesar do mau tempo, que terá retido muita gente em casa, o auditório esteve cheio durante as duas horas que o colóquio durou. Soledad Puértolas falou em castelhano (a sorte dos espanhóis, que os portugueses sejam tão benévolos…) e foi escutada com a maior atenção. Deve ter ido satisfeita com o público de Braga. Quanto a mim, porque não tinha nenhum livro recente que pudesse servir-me de bengala, resolvi levantar um pouco mais o véu que ainda cobre o Ensaio sobre a Cegueira e desenvolver algumas reflexões a propósito. À medida que ia falando, tornava-se-me cada vez mais claro quanto a mim próprio me inquieta o pessimismo deste livro. Imago mundi lhe chamei, já em conversa com o Luiz Francisco Rebello, visão aterradora de um mundo trágico. Desta vez, a expressão do pessimismo de um escritor de Portugal não vai manifestar-se pelos habituais canais do lirismo melancólico que nos caracteriza. Será cruel, descarnado, nem o estilo lá estará para lhe suavizar as arestas. No Ensaio não se lacrimejam as mágoas íntimas de personagens inventadas, o que ali se estará gritando é esta interminável e absurda dor do mundo.
18 de junho
Voltei ao Ensaio. Com a disposição firme de levá-lo desta vez ao fim, custe o que custar. Durante todo o tempo que andei por fora, amigos e conhecidos não pararam de me perguntar pelos meus cegos. Chegou a altura de eles responderem por si mesmos.
15 de julho
Pausa de vinte e quatro horas no Ensaio para apresentar em Las Palmas o livro de Juan Cruz, Exceso de Equipaje, que é uma brilhante demonstração da arte do fragmento intimista e da observação do quotidiano imediato. Fez-me bem o derivativo, aliviei a tensão que me andam a causar os cegos, conheci gente simpática e inteligente, reencontrei amigos, como o poeta Manuel Padorno, e Toni, Luz e María del Carmen, as professoras do Coletivo Andersen.
9 de agosto
Terminei ontem o Ensaio sobre a Cegueira, quase quatro anos após o surgimento da ideia, sucesso ocorrido no dia 6 de setembro de 1991, quando, sozinho, almoçava no restaurante Varina da Madragoa, do meu amigo António Oliveira (apontei a data e a circunstância num dos meus cadernos de capa preta). Exatamente três anos e três meses passados, em 6 de dezembro de 1994, anotava no mesmo caderno que, decorrido todo esse tempo, nem cinquenta páginas tinha ainda conseguido escrever: viajara, fui operado a uma catarata, mudei-me para Lanzarote… E lutei, lutei muito, só eu sei quanto, contra as dúvidas, as perplexidades, os equívocos que a toda a hora se me iam atravessando na história e me paralisavam. Como se isto não fosse bastante, desesperava-me o próprio horror do que ia narrando. Enfim, acabou, já não terei de sofrer mais. Seria agora a altura de fazer a pergunta de que nenhum escritor gosta: «Que ficou dessa primeira ideia?» (Não gostamos porque preferiríamos que o leitor imaginasse que o livro nos saiu da cabeça já armado e equipado.) Da ideia inicial direi que fi cou tudo e quase nada: é verdade que escrevi o que queria, mas não o escrevi como o tinha pensado. Basta comparar a inspiração de há quatro anos com aquilo que o Ensaio veio a ser. Eis o que então anotei, com nenhumas preocupações de estilo: «Começam a nascer crianças cegas. Ao princípio sem alarme: lamentações, educação especial, asilos. À medida que se compreende que não vão nascer mais crianças de visão normal, o pânico instala-se. Há quem mate os filhos à nascença. Com o passar do tempo, vão morrendo os “visuais” e a proporção “favorece” os cegos. Morrendo todos os que ainda tinham vista, a população da terra é composta de cegos apenas. Um dia nasce uma criança com a vista normal: reação de estranheza, algumas vezes violenta, morrem algumas dessas crianças.O processo inverte-se até que — talvez — volte ao princípio uma vez mais.» Compare-se… Quanto à palavra inspiração que aí ficou atrás, esclareço que a empreguei em sentido estritamente pneumático e fisiológico: a ideia andava flutuar por ali, no oloroso ambiente da Varina da Madragoa, eu inspirei-a, e foi assim que o livro nasceu… Depois, pensá-lo, fazê-lo, sofrê-lo, já foi, como tinha de ser, obra de transpiração…
10 de agosto
Chegaram a Lanzarote, e instalámo-los cá em casa, José Luis García Sánchez e Rosa León. Vieram para a estreia, em Canárias, de Suspiros de España (y Portugal), que ele dirigiu. Motivos para a viagem, apenas os da amizade, porquanto não é costume dos realizadores de cinema andarem atrás dos seus fi lmes, a estreá-los aqui e ali. Não sei como se agradece isto. Rosa e José Luis tiraram-se do seu trabalho, viajaram de Madrid a Lanzarote, muito mais para me festejarem a mim do que para receberem, eles, aplausos. A rever e a corrigir o Ensaio, não poderei fazer-lhes toda a companhia que deveria, mas dei hoje com eles uma rápida volta pela ilha, de que me resultou uma estranha impressão: encerrado em casa há tanto tempo, dei por que me inquietava o mundo exterior.
18 de agosto
Lá foram, uma cópia para Zeferino Coelho, outra para Maria Alzira Seixo, ele porque é o editor, ela por ter escolhido o Ensaio para tema do estudo que prometeu escrever para um volume que Giulia Lanciani está a preparar sobre o autor destes Cadernos. Daqui por poucos dias já saberei o que pensam estes primeiros leitores. Primeiros depois de Pilar, claro está. E que disse Pilar? Que o livro é bom. Será? Leitora exigente e criteriosa é ela, sem dúvida, mas sempre temo que se deixe iludir (enganar, cegar), pouco que seja, pelos sentimentos. Um pensamento que me tem ocupado nestes dias: há vinte anos chamei «ensaio de romance» ao Manual de Pintura e Caligrafia (a designação só aparece na primeira edição, a da Moraes), hoje ponho ponto final num romance a que dei o nome de Ensaio. Vinte anos de vida e de trabalho para ir dar, por assim dizer, ao mesmo sítio: de falta de persistência e sentido de orientação não poderão acusar-me…
20 de agosto
Zeferino Coelho telefonou para dizer que gostou do livro. O autor apreciou sabê-lo e disse consigo mesmo que, agora sim, o Ensaio está terminado. Mas Zeferino também avisou que a disquete que lhe enviei, juntamente com o escrito, e que deveria conter o romance, estava em branco… A minha falta de jeito para as informáticas foi confirmada uma vez mais. Felizmente que o José Serrão, responsável pelos assuntos gráficos da editora, me deu, pelo telefone, passo a passo, com paciência e competência, as instruções que antes eu havia saltado e trocado. Fiquei felicíssimo, como um garoto, quando pude comprovar que, finalmente sim, o romance tinha sido copiado inteirinho do disco duro para a disquete. Mas logo me perguntei: copiado, como? E como foi possível que a passagem de um a outro tenha sido praticamente instantânea? Que o romance esteja por aí algures dentro do computador, aonde os meus olhos não podem chegar, admito-o, tenho de admiti-lo. Mas que ele se encontre agora neste objeto tosco de plástico e metal que seguro com dois dedos e que, à vista, não difere em nada de quando estava vazio, isso é que não consigo fazer entrar-me na cabeça. Mais de trezentas páginas, mais de cem mil palavras, estão metidas aqui dentro? Digo-me: estão, mas não são. Estão porque as reencontro de cada vez que quiser ler a disquete no computador, mas ao mesmo tempo não são porque não podem existir lá como palavras, têm de ser uma outra coisa, algo inapreensível, algo volátil, como (estranha semelhança esta) as palavras dentro do cérebro. Não estão, e contudo são. Que monólogo não teria o Hamlet para dizer se Shakespeare vivesse hoje…
6 de outubro
Em Lisboa, para o lançamento do Ensaio sobre a Cegueira e o mais que se há de ver. Assinar livros, dar entrevistas, repetir o já redito, perguntar-me uma e muitas vezes se vale a pena, e apesar disso continuar, porque direi a mim mesmo que o devo fazer. Miguel Torga não concedia autógrafos, Herberto Helder não dá entrevistas: quanto a mim, ainda que me pusesse a procurá-las, sei que não conseguiria encontrar razões para não assinar a um leitor o livro que escrevi e para não lhe explicar porquê e como o fiz. É uma fraqueza, reconheço, mas lembro-me do que dizia a minha eterna avó Josefa, a propósito doutras histórias: «O que o berço deu, a tumba o leva», o que, aplicado ao meu berço e ao meu caso, teria de significar que quando nasci, lá naquela rua da Azinhaga a que chamam da Alagoa, já estava fadado para vir a dar autógrafos e entrevistas, coisa em que nem mesmo a dita e confiada avó acreditaria, vendo com que competência eu mudava a palha das pocilgas ou Jorge desnocava a nuca aos coelhos com uma pancada seca do cutelo da mão… Ai, os destinos!
2 de novembro
Disseram-me que no lançamento do Ensaio terão estado presentes entre quinhentas e seiscentas pessoas. De facto, custava a crer no que os olhos viam: aquela sala do Hotel Altis, enorme, completamente cheia de gente amiga, nada mais que para ver e ouvir o autor e o apresentador, que foi, belissimamente, o Francisco José Viegas. «Ora, ora, aquilo é tudo marketing, é propaganda, é publicidade…»,rosnaram com certeza os meus inimigos de estimação, como lhes chama Zeferino Coelho. Sim, publicidade, a mesma publicidade, caríssima, sofisticada e avassaladora,que os editores usam desde o cursus publicus do imperador Augusto: enviar convites pelo correio. Claro que no meu caso não deve ser esquecida a ação do departamento de agitprop do Partido, cuja eficácia mobilizadora, desta vez, até lá conseguiu levar, imagine-se, um primeiro-ministro, António Guterres…
16 de novembro
Encontro no gravador de chamadas as vozes de Eduardo Lourenço e de Baptista-Bastos, um a falar de Providence, outro de Lisboa, e ambos dizendo coisas bonitas sobre o Ensaio. Não podia desejar melhores presentes de aniversário. E como estes são dos que se devem guardar, aqui ficam, cuidadosamente transcritos. O estilo é de facto o homem: as chamadas são, cada uma delas, o retrato psicológico de quem as fez. Eis o que disse o BB: «É o Baptista-Bastos, para o Zé. Zé Saramago, querido amigo, olha, estou a telefonar-te pelo seguinte: é que escreveste um grande romance. Acabei ontem de ler, com grande cuidado, com grande aprazimento, e escreveste um grandessíssimo romance, e o resto é conversa. É para te dizer isto e dar-te um grande abraço, que as felicitações são para mim porque li um grande romance. Outro grande abraço para ti, Zé, e um beijinho para a Pilar.» Do Eduardo Lourenço: «Bom dia, meu caro José. Devo ser o último a dar-te os parabéns pelo Prémio Camões. Já tentei telefonar, mas nunca te apanho. Um prémio mais do que merecido. Vou escrever-te a propósito do livro, do teu livro, que me deixou perplexo e que gostaria de comentar contigo, por carta ou em público. Para já,repito, é um livro de muito impacto e de muita importância. Merecia ser discutido por aquele país, e não só. Um grande abraço, Eduardo.» Obrigado, amigos, obrigado, em nome desta reconfortada alma.
Cadernos de Lanzarote IV (1996)
22 de fevereiro
A primeira crítica, em Espanha, ao Ensaio sobre a Cegueira, apareceu hoje num jornal de Las Palmas de Gran Canaria, La Província. Do que o seu autor, Ángel Sánchez, escreveu, extraio duas passagens que me pareceram particularmente interessantes. A primeira: «Insiste [o autor] no recurso de partir de um ponto qualquer da realidade mais corrente para ir derivando no sentido da ficção pura e dura, até ao ponto de permitir ao imaginário que, num dado ponto da narração, devore a realidade corrente do ponto de partida ou a ponha ao seu serviço.» A segunda: «Submetidos [os protagonistas] como estão às pequenas misérias da sua proteção e sobrevivência, não deixam por isso de ver a luz da razão e formulá-lo no seu veículo oral. Se continuam a razoar, alguma esperança resta. Filosofarão portanto à sua maneira, coisa em que o autor continua a ter parte ativa — as mais das vezes—com esse seu humor desprendido e essa lógica relativista, que no caso português parece ser a amarga poesia do “fatum / fado”, memoriosamente expressada pelo idioleto, mais um rasto de subtil humor britânico bastante percetível.» Este tipo de observações, que não costuma encontrar-se na crítica portuguesa, ajuda a compreender melhor o que se lê. Acho eu.
23 de maio
A apresentação do Ensaio fez-se no Círculo de Bellas Artes (nunca perceberei por que tenho de dizer el arte no masculino e bellas artes no feminino…). José Antonio Marina, o autor dessas obras magnífi cas, estimulantes, que são Teoria da Inteligência Criadora (que não alcançou ainda em Portugal os leitores que merecia) e Ética para Náufragos, e que acaba de publicar nestes dias El Laberinto del Sentimiento, fez uma apresentação em que houve tanto de inteligência quanto de generosidade, orientando o diálogo que travámos sobre a razão e os seus absurdos, e em que me esforcei por manter-me à altura, sem sempre o conseguir… Num certo momento, dei por mim a perguntar-me angustiado: «Poderá a razão, realmente, razonar sobre si mesma?»
12 de junho
Em Milão, para o lançamento de Cecità, título italiano do Ensaio sobre a Cegueira. Sete entrevistas em sete horas foram as que me arrancaram hoje, sem ao menos ter sido respeitado o intervalo para comer a que qualquer trabalhador tem direito: o almoço no hotel foi extensamente conversado, com um jornalista sentado à minha direita, comendo, fazendo perguntas e tomando notas.
20 de junho
Juan Cruz achou que o Ensaio sobre a Cegueira devia ser apresentado também aqui [Lanzarote], e eu, que sou o mais dócil dos autores dóceis, concordei.
Valeu a pena. A sala grande do museu da Fundação César Manrique encheu-se de pessoas para quem sou já um deles e que como tal me festejaram.
7 de outubro
[…] No meu romance Ensaio sobre a Cegueira tentei, recorrendo à alegoria, dizer ao leitor que a vida que vivemos não se rege pela racionalidade, que estamos usando a razão contra a razão, contra a própria vida. Tentei dizer que a razão não deve separar-se nunca do respeito humano, que a solidariedade não deve ser a exceção, mas a regra.
Tentei dizer que a nossa razão está a comportar-se como uma razão cega que não sabe aonde vai nem quer sabê-lo. Tentei dizer que ainda nos falta muito caminho para chegar a ser autenticamente humanos e que não creio que seja boa a direção em que vamos.
Em 2015, para assinalar o 20º aniversário da publicação do Ensaio sobre a Cegueira, a Porto Editora e a Fundação José Saramago prepararam o livreto Arquitetura de um romance, que reúne anotações e discursos de José Saramago sobre a construção do romance. Link para a publicação:
https://www.josesaramago.org/wp-content/uploads/delightful-downloads/2015/11/CJS-ESCBR_20154312_F01_02.pdf
Fotografias de Jorge Silva — Sara, Rafa, Matt, Sari, Vinícius, Maria, Tito, Jorge e Leonor estão em quarentena na Quinta dos Salgueiros, Idanha-a-Nova.