Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Citador #8 - da "religiosidade



"Para se ser ateu como eu, é preciso um alto grau de religiosidade"

"Sou um religioso sem necessidade de Deus"

Grupo de Teatro de Campolide, Maio de 1979, encena a peça de teatro "A Noite" - Joaquim Benite




(1979, capa da edição Editorial Caminho)

Informação sobre a peça de teatro, constante na Bibliografia Activa, na página da Fundação José Saramago, em http://www.josesaramago.org/a-noite-1979/

«A Noite, a primeira obra dramática de Saramago que o escritor dedica a Luzia Maria Martins, a pessoa que o “achou capaz de escrever uma peça”. Seria mesmo. A noite de que se fala nesta peça ficou para a história: de 24 para 25 de abril de 1974. A ação passa-se na redação de um jornal em Lisboa e o autor avisa: “Qualquer semelhança com personagens da vida real e seus ditos e feitos é pura coincidência. Evidentemente.”» (Diário de Notícias, 9 de outubro de 1998)


«Depois de ter feito jornais, escreveu sobre eles. Foi em “A Noite”, a primeira obra dramática de Saramago que o escritor dedica a Luzia Maria Martins, a pessoa que o “achou capaz de escrever uma peça”. Seria mesmo. A noite de que se fala nesta peça ficou para a história: de 24 para 25 de Abril. A acção passa-se na redacção de um jornal em Lisboa e autor avisa: “Qualquer semelhança com personagens da vida real e seus ditos e feitos é pura coincidência. Evidentemente.” Nem outra coisa seria de esperar. A ironia passa também pela história desta noite em que administradores e redactores entram em conflito. Uns a gritar que a máquina “há-de parar” e outros a defender que ela “há-de andar”. Quando o escreveu, Saramago já sabia que, para o bem e para o mal, a máquina tinha continuado a andar. “A Noite” chegou aos palcos em Maio de 1979 pelo Grupo de Teatro de Campolide. Com encenação de Joaquim Benite e direcção musical de Carlos Paredes, a peça contava, entre outros, com a participação de António Assunção no papel do chefe de redacção Abílio Valadares.» (Diário de Notícias, 9 de Outubro de 1998)


"José Saramago, com o colectivo do Grupo de Campolide, que com encenação de Joaquim Benite, representaram em Maio de 1979, A Noite." 
- Post do blog Cais do Olhar, em http://caisdoolhar.blogspot.pt/ - 

A Guerra de Israel contra a região da Palestina, em "Das pedras de David aos tanques de Golias"

Artigo original, publicado no jornal "Público", a 3 de Março de 2002.

"Das Pedras de David aos Tanques de Golias"

(Diário de Notícias, 29 de Março de 2002)

No "Caderno", volta a inserir esta crónica, e apresenta a seguinte explicação.

"Este artigo foi publicado pela primeira vez há alguns anos. O seu pano de fundo é a segunda intifada palestina, em 2000. Atrevi-me a pensar que o texto não envelheceu demasiado e que a sua “ressurreição” está justificada pela criminosa acção de Israel contra a população de Gaza. Aí vai, portanto."

1.ª parte (8 de Janeiro de 2009), em http://caderno.josesaramago.org/20424.html

2.ª parte (9 de Janeiro de 2009), em http://caderno.josesaramago.org/20584.html

"Afirmam algumas autoridades em questões bíblicas que o Primeiro Livro de Samuel foi escrito na época de Salomão, ou no período imediato, em qualquer caso antes do cativeiro da Babilónia. Outros estudiosos não menos competentes argumentam que não apenas o Primeiro, mas também o Segundo Livro, foram redigidos depois do exílio da Babilónia, obedecendo a sua composição ao que é denominado por estrutura histórico-político-religiosa do esquema deuteronomista, isto é, sucessivamente, a aliança de Deus com o seu povo, a infidelidade do povo, o castigo de Deus, a súplica do povo, o perdão de Deus. Se a venerável escritura vem do tempo de Salomão, poderemos dizer que sobre ela passaram, até hoje, em números redondos, uns três mil anos. Se o trabalho dos redactores foi realizado após terem regressado os judeus do exílio, então haverá que descontar daquele número uns quinhentos anos, mais mês, menos mês.
Esta preocupação de exactidão temporal tem como único propósito oferecer à compreensão do leitor a ideia de que a famosa lenda bíblica do combate (que não chegou a dar-se) entre o pequeno David e o gigante filisteu Golias, anda a ser mal contada às crianças pelo menos desde há vinte ou trinta séculos. Ao longo do tempo, as diversas partes interessadas no assunto elaboraram, com o assentimento acrítico de mais de cem gerações de crentes, tanto hebreus como cristãos, toda uma enganosa mistificação sobre a desigualdade de forças que separava dos bestiais quatro metros de altura de Golias a frágil compleição física do louro e delicado David. Tal desigualdade, enorme segundo todas as aparências, era compensada, e logo revertida a favor do israelita, pelo facto de David ser um mocinho astucioso e Golias uma estúpida massa de carne, tão astucioso aquele que, antes de ir enfrentar-se ao filisteu, apanhou na margem de um regato que havia por ali perto cinco pedras lisas que meteu no alforge, tão estúpido o outro que não se apercebeu de que David vinha armado com uma pistola. Que não era uma pistola, protestarão indignados os amantes das soberanas verdades míticas, que era simplesmente uma funda, uma humílima funda de pastor, como já as haviam usado em imemoriais tempos os servos de Abraão que lhe conduziam e guardavam o gado. Sim, de facto não parecia uma pistola, não tinha cano, não tinha coronha, não tinha gatilho, não tinha cartuchos, o que tinha era duas cordas finas e resistentes atadas pelas pontas a um pequeno pedaço de couro flexível no côncavo do qual a mão experta de David colocaria a pedra que, à distância, foi lançada, veloz e poderosa como uma bala, contra a cabeça de Golias, e o derrubou, deixando-o à mercê do fio da sua própria espada, já empunhada pelo destro fundibulário. Não foi por ser mais astucioso que o israelita conseguiu matar o filisteu e dar a vitória ao exército do Deus vivo e de Samuel, foi simplesmente porque levava consigo uma arma de longo alcance e a soube manejar. A verdade histórica, modesta e nada imaginativa, contenta-se com ensinar-nos que Golias não teve sequer a possibilidade de pôr as mãos em cima de David, a verdade mítica, emérita fabricante de fantasias, anda a embalar-nos há trinta séculos com o conto maravilhoso do triunfo do pequeno pastor sobre a bestialidade de um guerreiro gigantesco a quem, afinal, de nada pôde servir o pesado bronze do capacete, da couraça, das perneiras e do escudo. Tanto quanto estamos autorizados a concluir do desenvolvimento deste edificante episódio, David, nas muitas batalhas que fizeram dele rei de Judá e de Jerusalém e estenderam o seu poder até à margem direita do rio Eufrates, não voltou a usar a funda e as pedras.

Também não as usa agora. Nestes últimos cinquenta anos cresceram a tal ponto a David as forças e o tamanho que entre ele e o sobranceiro Golias já não é possível reconhecer qualquer diferença, podendo até dizer-se, sem ofender a ofuscante claridade dos factos, que se tornou num novo Golias. David, hoje, é Golias, mas um Golias que deixou de carregar com pesadas e afinal inúteis armas de bronze. Aquele louro David de antanho sobrevoa de helicóptero as terras palestinas ocupadas e dispara mísseis contra alvos inermes, aquele delicado David de outrora tripula os mais poderosos tanques do mundo e esmaga e rebenta tudo o que encontra na sua frente, aquele lírico David que cantava loas a Betsabé, encarnado agora na figura gargantuesca de um criminoso de guerra chamado Ariel Sharon, lança a “poética” mensagem de que primeiro é necessário esmagar os palestino para depois negociar com o que deles restar. Em poucas palavras, é nisto que consiste, desde 1948, com ligeiras variantes meramente tácticas, a estratégia política israelita. Intoxicados pela ideia messiânica de um Grande Israel que realize finalmente os sonhos expansionistas do sionismo mais radical; contaminados pela monstruosa e enraizada “certeza” de que neste catastrófico e absurdo mundo existe um povo eleito por Deus e que, portanto, estão automaticamente justificadas e autorizadas, em nome também dos horrores do passado e dos medos de hoje, todas as acções próprias resultantes de um racismo obsessivo, psicológica e patologicamente exclusivista; educados e treinados na ideia de que quaisquer sofrimentos que tenham infligido, inflijam ou venham a infligir aos outros, e em particular aos palestinos, sempre ficarão abaixo dos que sofreram no Holocausto, os judeus arranham interminavelmente a sua própria ferida para que não deixe de sangrar, para torná-la incurável, e mostram-na ao mundo como se tratasse de uma bandeira. Israel fez suas as terríveis palavras de Jeová no Deuteronómio: “Minha é a vingança, e eu lhes darei o pago”. Israel quer que nos sintamos culpados, todos nós, directa ou indirectamente, dos horrores do Holocausto, Israel quer que renunciemos ao mais elementar juízo crítico e nos transformemos em dócil eco da sua vontade, Israel quer que reconheçamos de jure o que para eles é já um exercício de facto: a impunidade absoluta. Do ponto de vista dos judeus, Israel não poderá nunca ser submetido a julgamento, uma vez que foi torturado, gaseado e queimado em Auschwitz. Pergunto-me se esses judeus que morreram nos campos de concentração nazis, esses que foram trucidados nos pogromes, esses que apodreceram nos guetos, pergunto-me se essa imensa multidão de infelizes não sentiria vergonha pelos actos infames que os seus descendentes vêm cometendo. Pergunto-me se o facto de terem sofrido tanto não seria a melhor causa para não fazerem sofrer os outros.
As pedras de David mudaram de mãos, agora são os palestinos que as atiram. Golias está do outro lado, armado e equipado como nunca se viu soldado algum na história das guerras, salvo, claro está, o amigo norte-americano. Ah, sim, as horrendas matanças de civis causadas pelos terroristas suicidas… Horrendas, sim, sem dúvida, condenáveis, sim, sem dúvida, mas Israel ainda terá muito que aprender se não é capaz de compreender as razões que podem levar um ser humano a transformar-se numa bomba."

Adelino Gomes entrevistou Pilar del Rio - "Os livros de Saramago transformaram-me a vida" - 16/07/2001


A entrevista ainda se encontra disponível, para leitura neste link (jornal Público),
em, http://www.publico.pt/noticias/jornal/os-livros-de-saramago-transformaramme-a-vida-159896

Uma Voz própria e independente...

"O ano da morte de Ricardo Reis" trouxe-a a Lisboa, para fazer o percurso do romance. Tinha 36 anos. Passados dois anos, Pilar del Rio casava-se com o autor, José Saramago, então a rondar os 66. Hoje, é sua tradutora para espanhol - trabalho que faz quase em simultâneo com o acto de criação do escritor. Mas assume-se como jornalista, acima de tudo. Tem um estúdio em casa, donde entra no "ar" com as suas colaborações radiofónicas. Faz entrevistas - uma das últimas foi ao escritor mexicano Carlos Fuentes; antes desta, ao subcomandante Marcos; uma das próximas queria que fosse a António Guterres - para o suplemento dominical "El Semanal", inserido em mais de 40 jornais espanhóis e que atinge, no seu conjunto, uma tiragem superior a um milhão e meio de exemplares. Manteve uma rubrica de intervenção cívica, durante dois anos, na rádio andaluza . Pôs-lhe o nome de "Blimunda não se rende". Como Saramago, afirma-se comunista, ainda que sem cartão. Despreza os programadores da televisão que se está a fazer cá e em Espanha. Acha que um livro, mais ainda do que a Capela Sistina, é a expressão acabada do espírito humano. A ministra da Cultura da Região Autónoma da Andaluzia gostava de a ter como Comissária do Livro e da Leitura. Excertos de uma conversa que se prolongou por três dias e decorreu no salão de entrada de um hotel, numa viagem à Azinhaga, terra natal do marido, e à mesa de improvisada esplanada da Feira do Livro de Lisboa, enquanto o Prémio Nobel, ali a dois passos, multiplicava autógrafos por longas filas de indefectíveis leitores. 

P - Em que medida o prémio Nobel ajuda ou prejudica Pilar jornalista?
R - Pode parecer mentira, mas nem me ajuda nem me prejudica. Trabalho onde e como trabalhava antes.

P - Não recebe mais propostas?
R - Não. Já antes do Nobel trabalhava com Mara Malibran, a directora de "El Semanal". Também trabalho como comentadora na Cadena Ser e no Canal Sur. Tenho um estúdio em casa. A única novidade é ser colunista quinzenal do grupo Progressa, do "El País" (18 jornais). Comecei este ano. De resto, sou jornalista como era jornalista. Iniciei-me na Rádio Nacional (informação política e cultural) e em 1982, após o triunfo do PSOE, fui convidada a ir para a TVE, onde me encarreguei da programação na Andaluzia. Fui apresentadora, durante vários anos, de um telejornal.

P - Como foi a experiência televisiva?
R - Gosto mais da Rádio.

P - Porquê?
R - É mais imediata, mais directa, mais limpa.

P - O que quer dizer mais limpa?
R - Na televisão, mesmo quando se dão as horas a mensagem já está manipulada. Pela maquilhagem, pela iluminação, pelo cenário, pode converter-se a inocente mensagem das horas em algo magnífico ou triste.

P - Se formos por aí, também a voz é manipuladora porque ela sozinha seduz ou afasta, desperta a imaginação. Para não falar das vozes através das quais não passa nada...
R - Sim, há vozes e vozes. Mas na televisão há, para além disso, a intenção de uma série de pessoas - realizador, iluminador, etc. São demasiadas manipulações para uma mensagem tão simples como dizer que horas são. Saí da TVE em 86, dizendo que nunca mais voltava à televisão, nem para participar num programa como convidada. Só quebrei a promessa uma vez, por circunstâncias muito especiais. Mas nunca mais quero entrar num estúdio de televisão.

P - Houve alguma experiência concreta que a levou a tomar essa decisão?
R - Decidi sair da TVE por razões que tiveram a ver com um acto de censura. Mas a minha posição sobre a televisão é mais geral e tem a ver com o do estádio de imoralidade em que ela entrou. E com a complacência dos jornalistas que a fazem.

P - Complacência com quem ?
R - Com a direcção económica que é também a direcção ética. Não podemos dizer que é a publicidade ou os espectadores que pedem uma programação tão reles. Os jornalistas também são culpados. Nunca vi nenhuma greve de jornalistas exigindo a melhoria dos conteúdos, exigindo a dignificação desses programas. Pelo contrário, nos telejornais os jornalistas são servis e dóceis com o poder político do momento, e nos programas de entretenimento são canalhas. 

P - Isso aplica-se só a Espanha, ou também a Portugal?
R - E também à Itália, a França. Mas Espanha e Portugal estão-nos mais próximos. A programação é patética, dá vergonha. E porquê? Porque os senhores programadores não têm inteligência para propor coisas melhores. Sexo e violência asseguram-lhe um público fácil. Não têm capacidade e cultura para ir mais longe. O mesmo nas televisões públicas. 

P - Tem estado a pôr os jornalistas da rádio e dos jornais de fora das suas críticas. Mas peguemos num exemplo: em Espanha, um fenómeno televisivo como o "Big Brother" merece chamadas consecutivas de primeira página em jornais de referência como o "El País".
R - Primeiro: os jornalistas da televisão não cumprem o seu dever. Segundo: alguns jornalistas dos outros media também não. Terceiro: o mau cheiro alastra e acaba por atingir tudo. A discussão da chamada de primeira página está instalada na redacção do "El País". A mim parece incrível que se faça este tipo de programa. Por mim, nunca o vi, nem um só segundo.

P - Isso é partir logo do princípio de que nem vale a pena ver, ao menos para criticar. Onde está a moral de quem critica se nem sequer conhece?
R - Por amor de Deus! Não oiço falar de outra coisa. Eu não participo como público nesse espectáculo. Não me interessa. Mas vou mais longe: se os programadores das televisões de Espanha e de Portugal são seres que não têm imaginação nem cultura e que programam mais baixo e mais rasteiro do que os programadores dos outros países, a verdade é que alguém conseguiu fundir os dois países neste lodaçal. Dantes os níveis de qualidade não eram estes. 

P - Os públicos, que são quem faz as audiências , colocam esses programas nos primeiros lugares.
R - Dou um exemplo apenas, e recente: em 1988, quando a televisão estreou uma série baseada no livro de Torrente Ballester "O Prazer e a Sombra", foi um acontecimento, como se se tratasse de um jogo de futebol.

P - O mundo mudou muito, depois disso.
R - Alguém o fez mudar...

P - ... se calhar foram a escola, a família, antes da televisão.
R - Estou absolutamente convencida de que houve um objectivo muito claro, muito bem trabalhado por parte de alguém, que aliás também controla a escola, mas que em primeiro lugar controla os media, para ter cidadãos alucinados.

P - Essa não é uma visão demasiado conspirativa da história?
R - Eu vi-o. Estava na direcção da TVE.

O seu nome ficou escrito na antiga Rua da Estação, que passa frente à junta de freguesia e à Biblioteca José Saramago e que se cruza com a rua que em 1987. recebeu o nome do escritor. 
A placa, de azulejos, com orla em tons de amarelo, exibe o nome de Pilar del Rio, seguido da citação constante no livro Pequenas Memórias: 
«A Pilar que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar». 
Pilar, que recebeu uma réplica da placa toponímica, desejou que «todos os enamorados do Mundo se encontrem e dêem um beijo nesta esquina».


P - Viu o quê, exactamente?
R - Vi como a exigência e o nível iam baixando dia após dia. Ouvi dizer: 'temos que fazer uns programas mais ligeiros para que os espanhóis vão para a cama descansados, para mais gente ficar satisfeita. Basta de chatices e de solidariedades'. Vi como dia a dia se iam pondo filmes mais reles.

P - Se havia uma central dessas, que objectivos pretendia atingir?
R - Eu não disse que há uma central. Digo que houve um objectivo político aqui e em Espanha porque uma população embrutecida é mais facilmente dominável. Uma população cujo objectivo maior é ver o "Gran Hermano" é uma população que não pensa. 

P - Não foram nem os portugueses nem os espanhóis quem inventou esses formatos, que vieram de um país tão civilizado como a Holanda. 
R - Por que é que não se copiam certas formas de estar na vida dos países nórdicos e só se vão lá buscar os "Big Brothers"? Na Holanda há outras coisas, para além do "Big Brother". Aqui há o "Big Brother", ponto final.

P - Se a escola criar o gosto pela leitura, ou simplesmente o gosto, os que dela saiem irão engrossar o grupo de que a Pilar faz parte.
R - A escola também é culpada, claro. Mas em primeiro lugar ler não é obrigatório. E depois, dá trabalho. Lembra-me quando o primeiro ministro Cavaco Silva perguntou à mulher: 'como se chamava aquele livro do Saramago que tentei ler e não consegui?' O "Big Brother" não dá trabalho. Basta uma pessoa sentar-se com umas pipocas.
P - É fácil criticar os directores que optaram por este tipo de programação de sucesso. Onde estão os outros, capazes de traçar e manter uma programação que concilie a qualidade com as audiências?
R - Pergunte-o aos de agora, que sabem com que artes os esmagaram, expulsaram, assassinaram civilmente.

P - Bom, a verdade é que os portugueses e julgo que os espanhóis das diferentes literacias e estatutos socio-económicos continuam a preferir as tais programações e a nem sequer olhar para as RTP 2 que lhes são oferecidas...
R - O truque é simples: prepara-se a estrumeira, empurram-se as pessoas e logo dizemos que só lhes agrada a merda. É mesquinho, barato, mas funciona. 

P - Nas outras áreas - artes, literatura - o panorama em Portugal e Espanha é também assim desolador?
R - Há uma vida cultural rica, mas desgraçadamente os meios de comunicação não aparecem lá. Quando uma pessoa viaja e vê tantas actividades em tanto lado, é impressionante como nada disso passa para a comunicação social.

P - Mais devagar: em Portugal há um programa de televisão como o "Acontece", caso raro no mundo; temos jornais como o DN, o PÚBLICO, com várias páginas dedicadas à cultura...
R - ... não, perdão, não. Várias? Uns dias mais outros dias menos, poucas..

P - Muitíssimo mais do que há 30 anos.
R - Não faltava mais nada. Não vamos agora pôr a ditadura como referência, está bem? Há umas páginas entaladas junto do Desporto no final. E a maior parte da Cultura é espectáculo. O que é que se passa nos museus portugueses? Quantos estão fechados? Porquê estão fechados? Dedicam duas páginas ao espectáculo de Madona em Barcelona...

P - O "El País", que fez isso, é o mesmo, insisto, que todo os dias dedica várias páginas à Cultura.
R - Sempre menos do que à Economia. Quem é que disse que a Economia é mais importante que a Cultura? Não, não. Dá poucas páginas à Cultura e até à Política. Aliás, não há Política nos jornais, há fofoquice. Quem procura retratar a que se passa mesmo, o que se joga hoje nos partidos políticos? Quem descreve as lutas pelo poder? O que se passa na preparação das listas para as autárquicas?

P - O meu jornal tem vindo a dar páginas e páginas sobre isso.
R - Não. Tem vindo a apresentar candidatos. A nossa função não e reproduzir o que eles querem. É a de dizermos o que eles nunca quereriam que nós disséssemos.

P - Está portanto desiludida? 
R - Fui jornalista no tempo da ditadura e tinha muitas esperanças na democracia. Nos primeiros tempos da democracia fomos cúmplices, em Espanha, com a classe política, porque tínhamos que fazer a transição. Mas houve um momento em que eu pensei que não iríamos contentarmo-nos em ser fiscalizadores. Que devíamos tentar ver por detrás. Mas não conseguimos. Pior: a nova geração não tem qualquer interesse nisso. Estamos a fazer um jornalismo de conferência de imprensa. Sem qualquer interesse.

P - Exerceu a profissão nos dois países. O jornalista espanhol é mais engajado do que o português, não é verdade?
R - Não estou de acordo. Há gerações. A mais nova tem ousadia, mas ao mesmo tempo também muita indiferença. E há essa história absurda da independência. Dizem que o jornalista deve ser independente!...

P - Não acha que deve? 
R - Por amor de Deus!

P - Deve ser então dependente?
R - Temos é que ser honestos. Quando se fala em jornalista independente está-se a dizer independente dos partidos de esquerda. Independente de quê? O jornalista depende do banco, do patrão, da ideologia, da educação, da cultura, da forma como vê o mundo.

P - Já são tantas dependências, e ainda lhes quer acrescentar a de um cartão que a liga e faz depender de um partido?
R - Eu não pertenço a nenhum partido. Sou dependente da minha cabeça. Nunca fui correia de transmissão de nenhum partido político.

P - Então estamos de acordo. Porquê criar uma dependência partidária?
R - Mas ser de esquerda e assumi-lo não me impede de criticar a esquerda. Pelo contrário. Se vir um erro, uma corrupção, uma mentira, criticá-la-ei com mais razão ainda. Sou mais exigente com os meus do que com os outros. 
P - É comunista?
R - Sou comunista ideológica e emocionalmente, mas nunca se pôs a questão de ser militante.



P - Nunca foi convidada?
R - Sim, mas fui deixando passar. E por mais de um partido de esquerda.
P - Incluindo o PSOE?
R - Sim, naquela época [de Franco].

P - Li algures que a Pilar, sevilhana, gosta de touradas. 
R - Gostava. Saí do ambiente, deixei de estar rodeada da ornamentação (que era o que me agradava) e afastei-me. Hoje não me interessam. Sou contra. 

P - É verdade que foi freira teresiana? Que tipo de ordem é essa?
R - Fui membro de um instituto secular chamado Instituição Teresiana, quer dizer, fui "teresiana" e de alguma forma continuo a sê-lo, pelo menos no respeito e na admiração que sinto pela mulher forte que foi Teresa de Jesus.

P - Por que é que abandonou a instituição?
R - Não abandonei. Disseram-me, num acto que honra a instituição, que não podia continuar a viver uma vida que não me fazia feliz. Saí com pena, porque acreditava que seria útil dedicando a minha vida aos outros com base naqueles princípios.

P - Saramago disse numa entrevista: "Para se ser ateu como eu, é preciso um alto grau de religiosidade". E também disse: "Sou um religioso sem necessidade de Deus". Está de acordo? É também esse o seu sentimento?
R - Creio que se pode ser religioso sem Deus: ao fim e ao cabo, Deus é uma abstracção. O que importa na religião é a ligação com os homens. No catolicismo falam de "comunhão dos santos", na vida consciente e solidária dizemos dever, obrigação, justiça... É um sentimento profundo que nos descobre humanos entre humanos, todos responsáveis, todos feitos da mesma massa e com os mesmos direitos.

P - A veemência com que fala parece indicar que nada distingue a Pilar militante católica da Pilar comunista.
R - Quando era cristã aprendi que não se podia desperdiçar em tontarias nem um minuto da vida, sobretudo pública. Digo o mesmo agora. Não percamos tempo em fofoquices havendo tantas coisas importantes. Não para ficarmos o tempo todo numa atitude de reflexão. A vida pode ser simples, não tem que ser complicada e pesada. Mas façamos a nossa vida. Quando vamos às aldeias as pessoas costumam falar de coisas boas do passado para rematarem, resignadas: 'bom, mas isso passou, já não volta'. Porquê? Não tem que ser assim. 

P - A que é que se está a referir, concretamente?
R - Nunca houve tanto dirigismo. O dirigismo da URSS era uma brincadeira de meninos comparado com o dirigismo do sistema democrático. Mudam-nos a moeda, mudam-nos as fronteiras, mudam-nos a soberania, mudam-nos os hábitos. É um dirigismo autoritário. Normas, costumes, hábitos alimentares (seriam todos maus?), tudo mudou.

P - Qual será então a diferença entre o seu engajamento ideológico de hoje e a militância católica do passado?
R - Sou uma pessoa de expressão veemente. Nada me é indiferente. Envolvo-me nas coisas. A ideologia são os óculos com que vejo o mundo. A diferença entre o meu passado e o meu presente? Há um sentido da transcendência no cristianismo e eu não o tenho.

P - Perdeu-o?
R - Não o tive nunca. Sou um sujeito activo e quero que as coisas aconteçam porque é justo que elas aconteçam. Não podia participar na transformação das coisas para ganhar o céu. Quero participar porque recebi muito e tenho que dar muito. Sou uma privilegiada - nasci na Europa, nesta época, tive acesso à cultura - e tenho que pagar. 

P - Há dez anos vivíamos num mundo bipolar. Depois houve a implosão do império soviético. Declarou-se há pouco comunista. Como viu essa derrocada da URSS?
R - Nunca fui ao império soviético. O que eu vi na minha vida foi a ditadura de Franco, o império do capital e uns quantos senhores muito honestos que tentavam que os cidadãos tivessem melhores condições de vida, que eram os comunistas na clandestinidade. E vi sempre o capitalismo em acção, o império dos Estados Unidos com bases que me rodeavam. Nunca vi o império soviético.

P - Mas sabia que existia o muro de Berlim, que existia uma série de países...
R - ...Na Andaluzia, onde vivia, sentia o muro que há no estreito de Gibraltar . Claro que havia um muro de Berlim, aliás levantado por duas partes. Mas nunca me senti ameaçada pelo Pacto de Varsóvia. 

P - Não percebo. O muro de Berlim é irrelevante para si?
R - Há muitos muros e todos são muros da vergonha. Mas eu também falo dos outros muros que se levantam entre a África e a Europa, entre a América do Norte e a do Sul, entre as casas ricas do Rio de Janeiro e as pobres, entre a sociedade opulenta de Portugal e os desgraçados. Não quero que o pensamento único me oriente, me obrigue a falar do muro de Berlim. Quero falar de todos os muros. Cada dia há mais ricos e mais pobres. O muro de Berlim, horrível, afectou muita gente. Os outros afectam milhões e milhões e ninguém fala deles. Ninguém deita abaixo os muros que separam a riqueza da pobreza.

P - Falou há pouco de senhores limpos e honestos, referindo-se aos comunistas em Espanha. Lá como aqui em Portugal, os comunistas foram olhados com simpatia por muita gente, logo a seguir à queda das duas ditaduras. Mas essa simpatia desapareceu. Como explica que os espanhóis, como os portugueses, tenham deixado de ser sensíveis à mensagem eleitoral desses senhores?
R - Os meios, quer dizer, quem os faz, decidem o que é notícia e o que não é. Por exemplo em Espanha, no recente debate sobre o estado da nação, reduziram a informação a um circo em que [o primeiro ministro ] Aznar e [o secretário-geral do PSOE] Zapatero competiam entre si para ver quem era mais alto, mais forte, mais ágil. Durante o debate e após ele dedicaram-se a dar pontos às capacidades oratória, de improviso, de resposta, à elegância de um e do outro... Os outros dirigentes políticos não existiam e muito menos a nação. É como se o estado do país e as soluções não interessassem a ninguém. Claro que o líder da Izquierda Unida, [Gaspar] Llamazares, que saiu do circo e chegou com denúncias e propostas concretas, foi ignorado e insultado. Por falar em problemas, a imprensa chamou-lhe apocalíptico; por propor soluções à margem do pensamento único, chamaram-lhe sonhador. Quanto ao caso do PCP, recordo que há anos [década de 80] este partido denunciou que as câmaras de televisão se instalaram precisamente atrás da sua bancada na Assembleia da República, de modo que quando se apresentavam imagens do plenário viam-se todos os grupos parlamentares menos o comunista. Não foi por acaso. Aliás, qualquer pessoa vê o tratamento que é dado a pessoas e às propostas da esquerda, em contraste com o temor reverencial com que de um modo geral se trata os poderosos. Dão-se poucas piadas aos grandes da economia ou aos instalados da política. - E dão-se piadas aos da esquerda?- Por exemplo, uma pessoa como [o general e ex-primeiro ministro entre 1974 e 1975] Vasco Gonçalves: de cada vez que um jornalista, por mais jovem que seja, se refere a ele, dá-se ao luxo de o ridicularizar. Pois eu digo-lhes: se conseguirem ter alguma vez metade da honestidade de Vasco Gonçalves, serão grandes homens, mas até lá, não. Se a vida pública portuguesa tivesse 10 pessoas tão honestas como Vasco Gonçalves, o país seria outro - mais limpo e melhor. 

P - Mas teve um projecto para Portugal que as pessoas não apoiaram. 
R - Muitas pessoas não apoiaram, outras apoiaram. Mas acima de tudo, foi a CIA que não o aceitou, a NATO que não o aceitou, o grande capital que não o aceitou, os meios de comunicação controlados pelo grande capital que não o aceitaram, a pressão internacional não podia aceitá-lo... Não sejamos simplistas. Os países normalizaram-se e Portugal não iria ter a oportunidade de ensaiar fórmulas políticas diferentes, por mais democráticas que fossem. 

P - Mas acha que as pessoas andam enganadas toda a vida, todo o tempo? 
R - À medida que o tempo passa as pessoas estão mais angustiadas porque têm que pagar a prestação do carro, a prestação da casa. A liberdade, esse grande conceito, traduz-se em ter um carro maior, em fazer viagens, em comer todos os dias em restaurantes, em vestir Armani. Então quando chegam uns imbecis minoritários, mal vestidos, a falar de Reforma Agrária, as pessoas desatam a rir.

P - Houve uma oportunidade de fazer a Reforma Agrária em Portugal. E se ela acabou mal, não foi apenas por actos do poder. As próprias experiências no terreno não correram bem.
R - O capitalismo também não está a correr bem e temo-lo aí todos os dias. Desde quando existe o capitalismo? Desde Viriato ou antes mesmo? E no entanto tem sempre novas oportunidades. Mas quanto à Reforma Agrária, protagonizada por gente inexperiente, diz-se que não correu bem. Não tiveram tempo. Não tiveram tempo.

P - Foram estas ideias que a aproximaram de Saramago, também? Que criaram entre vocês uma cumplicidade?
R - Eu não me apaixonei por ideias, mas pelo homem.

P - Mas não se apaixonou pela obra, antes de conhecer o autor? Quando veio a Portugal antes de o conhecer, vinha à procura do autor da obra ou do homem que estava por detrás do autor?
R - A verdade é que vim a Portugal para fazer o trajecto de Ricardo Reis.

P - Mas telefonou ao autor.
R - Para o felicitar. Por maneira de ser, digo sempre o que penso, o bem e o mal. Quando leio um livro extraordinário, digo-o. O mundo está tão carecido de palavras de afecto...

P - Chegou a fazer o tal percurso do Ano da Morte - Hotel Bragança, que já não existe, cemitério dos Prazeres? Foi nesse quadro que telefonou a Saramago?
R - Telefonei de Espanha. Um número de telefone não resiste aos jornalistas. Liguei para o felicitar e para lhe dizer que gostava de o cumprimentar. Ele esteve de acordo. Mas o percurso fi-lo sozinha com o livro. Devo dizer, a propósito, que esta ideia não tinha nada de louco: na semana a seguir vieram cá fazer o percurso uma irmã minha e o marido. E uns dias antes tinham-no feito uns amigos nossos. Durante muito tempo, e ainda hoje, houve amigos nossos a fazerem-no.

P - Portanto: começou a gostar de José Saramago pessoa...
R - Eu não sabia nada da pessoa, quem era, como era, em que circunstâncias vivia , só sabia que tinha nascido em 1922 e isso parecia-me impossível.

P - Achava que devia ser mais novo?
R - Não, achava que era um clássico, mas ao mesmo tempo as ideias que exprimia eram de alguém deste tempo. Havia aqui uma contradição, e eu tinha interesse em comprovar que era um contemporâneo o homem que escrevia desta forma. De modo que nos conhecemos, tomámos um café e adeus.

P - O namoro não começou logo?
R - Ah, não! Passados meses. Mantivemos correspondência sobre livros, eu não sabia nada da vida dele e ele nada da minha vida e então um dia perguntou-me se me podia ir visitar em Sevilha. 



P - E o namoro começou?
R - Fomo-nos encontrando.

P - Tinha quantos anos?
R - 36.

P - A diferença de quase trinta anos não constituiu um problema? Não digo para si, eventualmente, mas para o seu filho, a sua família?
R - Porque que é que havia de constituir?

P - Casou dois anos depois, mais ou menos. A sua vida mudou totalmente?
R - Chegámos a pensar na hipótese de José se mudar para Sevilha, porque o meu trabalho não me permitia vir para Portugal. Mas entretanto a directora-geral da TVE, Pilar Miró, convidou-me para ser a correspondente em Portugal.

P - A decisão de irem para Lanzarote é tomada apenas por causa daquele episódio muito conhecido do veto ao livro "O Evangelho segundo Jesus Cristo"?
R - Sim, desse acto de censura do candidato à Câmara de Lisboa.

P - Não, esse é Santana Lopes. A proposta foi do subsecretário de Estado dele, Sousa Lara...
R - A decisão foi do governo. O outro [Santana Lopes] manteve e apoiou a proposta e foi ao parlamento defender a política do subordinado.

P - Quer dizer que se ele ganhar as eleições... 
R - ...é uma vergonha para Lisboa...

P - ...e vocês deixam de vir a Lisboa?
R - Eu com Lisboa não terei problema nenhum. Mas com a Câmara teria. Não, não vai ganhar.

P - Vão então para Lanzarote...
R - A situação estava também a tornar-se difícil em Lisboa porque era um corrupio. Toda e qualquer pessoa que vinha a Portugal procurava-o. Começámos a procurar um sítio fora de Lisboa, visitámos algumas casas em Mafra, mas não encontrámos aquilo que queríamos.

P - Qual a sua intervenção no processo criativo de Saramago?
R - Como é óbvio não intervenho no processo criativo de Saramago.

P - É primeira leitora? Crítica?
R - Sou a sua primeira leitora: generosamente, cada noite José passa-me as folhas que escreveu para que eu as leia e, nos últimos livros, as traduza, já que serão apresentadas simultaneamente nos países de língua portuguesa e castelhana de todo o mundo.

P - Dá-lhe ideias?
R - Claro que não dou ideias nem critico: o processo criativo é pessoal e intransmissível. Eu sei qual é o meu lugar e jamais ousaria intervir, só oiço o que o autor me conta, as várias hipóteses, as mudanças que podia introduzir...

P - O que representa o livro para si?
R - O que me interessa acima de tudo no livro são as paisagens humanas. Tanto quanto me interessam os homens que pensam e escrevem os livros. Os livros são a expressão de outros seres humanos. Interessam-me em geral e individualmente. Mais do que um pôr do sol, mais do que uma flor, mais do que uma obra arquitectónica, mais do que a Capela Sistina. 

P - E a literatura?
R - Pode ser a expressão mais acabada do espírito humano. É a que melhor entendo. Voltando aos livros: encontro sempre alguma coisa boa num livro. Nem que seja a capa.

P - Qual o livro de que mais gostou na vida?
R - Em cada obra há um livro de que gosto mais. É essa a glória dos livros. Enquanto a Capela Sistina se apresenta como um bloco, os livros são múltiplos, diversos, têm vidas distintas.

P - Indique dois ou três.
R - Os de Saramago, que me transformaram a vida.

P - Quem lhe transformou a vida não foi antes José Saramago?
R - Não. Comecei pelos livros. Coleccionei-os, antes de conhecer José. Posso dizer que gosto de falar dos livros de José Saramago porque já o fazia antes de o conhecer. Recomendei-os antes. Agora só tenho mais motivos para o dizer, porque são os livros da minha vida.


(Saramago, que entretanto chegou de mais uma longa sessão de autógrafos e ficou à espera do fim da entrevista, contesta uma observação do entrevistador acerca da superioridade da democracia representativa sobre todos os outros sistemas, discorre sobre a "falsa democracia" que deixa "contentinhos" os menos exigentes, diz que os jornalistas deviam investigar quem são e onde estão os que detêm verdadeiramente as rédeas do poder no mundo em vez de encherem páginas e páginas com "histórias dos Guterres e dos Aznar, que não mandam nada", revela ("pensei nisso hoje de manhã, nem o disse à Pilar") que um dia destes ainda o hão-de ver numa daquelas manifestações anti-globalização como a de Gotemburgo - "na primeira fila, ali ao lado daqueles que os editorialistas dizem que cheiram mal" - e remata, longos minutos passados: "Sofia [de Mello Breyner] escreveu aqueles versos muito glosados no 25 de Abril dizendo que a poesia estava na rua. Pois bem, o que falta é a democracia na rua. A democracia deve vir para a rua." - Que pena não ter sido a Pilar a responder. Dava um bom título: 'a democracia deve vir para a rua'..., comento. - A Pilar não disse mas está de acordo, replica Saramago.- Sim, sim, claro, intervém ela, com calor. - Pode portanto usar no título, conclui o Prémio Nobel).

Manuel Freire canta José Saramago - "Fala do velho do Restelo ao Astronauta"


Fala do Velho do Restelo Ao Astronauta

"Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti nem eu sei que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.
No jornal soletramos de olhos tensos
Maravilhas de espaço e de vertigem
Salgados oceanos que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
(E as bombas de napalme são brinquedos),
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome."

"As Canções Possíveis"
Manuel Freire canta José Saramago
(musica apresentada: "Fala do velho do Restelo ao Astronauta"
Ano: 2005 - Editora Ovação

Sinopse da Fnac
Descrição: As Canções Possíveis de José Saramago
"Existem edições em que faltam palavras para as definir, classificar ou até para, como sempre necessário, elaborar um press release. Falar do Escritor e Prémio Nobel José Saramago que “emprestou” os seus poemas à voz do Autor, compositor e cantor Manuel Freire não é tarefa facilitada dado o grandioso curriculum que ambos possuem. O último trabalho do autor é o CD que agora orgulhosamente a Ovação reedita. A obra anteriormente lançada e produzida pela Editorial Caminho em 1998 para comemorar 25 anos do 25 de Abril, chega agora aos circuitos de venda de todo o país. "As Canções Possíveis", onde Manuel Freire canta poemas de José Saramago é um disco com 12 canções onde o intérprete é acompanhado por um grupo de músicos tocando violino, piano, contrabaixo, clarinete e violoncelo dirigidos musicalmente por Carlos Alberto Moniz que assina também a produção. “Há palavras que atam e há palavras que separam. Estas são das que unem e aconchegam. Por isso, enquanto Manuel Freire canta, eu vou dizendo baixinho o que escrevi. É uma forma de agradecer” José Saramago

Poemas Cantados / Faixas
1 Circo
2 Nem sempre a mesma rima
3 Tenho a alma queimada
4 Ouvindo Beethoven
5 Retrato do poeta quando jovem
6 Jogo do lenço
7 Tenho um irmão siamês
8 Dispostos em Cruz
9 Fala do velho do Restelo ao Astronauta
10 A ponte
11 Dia não
12 É tão fundo o silencio

Luis pastor "Nesta Esquina do Tempo" - poema "Digo Pedra"


Luis Pastor canta poemas de José Saramago
Álbum "Nesta Esquina do Tempo"
Musica "Digo Pedra"

«Que seja eu o autor das poesias aqui interpretadas,
em português e também em castelhano, é apenas
uma feliz coincidência. O que é importante é a
música. E a voz, essa inconfundível voz de Luis
Pastor, áspera e ao mesmo tempo suave, tal como
as vozes dos grandes trovadores do século passado.
Oiçamos»
José Saramago

(alguma palavras sobre Luis Pastor)

Nesta esquina do tempo pode explicar-se de uma
forma simples: Luís Pastor compõe a música e
canta os poemas de José Saramago, Prémio Nobel
de Literatura em 1998. Mas as obras excepcionais
costumam habitar em mundos modestos e Nesta
esquina do tempo é uma obra maior, que também
nasceu de uma maneira natural, espontânea
e sincera. Pilar del Rio, esposa de Saramago e
tradutora da sua obra para espanhol referiu: «Um
dia, não há muito tempo, José Saramago e Luís
Pastor encontraram-se. Mais tarde partilharam
tribuna para dizer com força que não queriam
guerras canalhas, que as únicas ofensivas morais e
necessárias eram as que deveriam combater a fome
e a falta de cultura. Luís Pastor foi ousado e deu o
passo seguinte quando, dirigindo- se a Saramago,
disse-lhe que ia escrever a música para os seus
poemas e, mais ainda, que ia cantar em português.
Saramago achou piada, riu e disse: “oxalá”. De certo,
pensou que a loucura dos músicos é quase tão
grande como a dos sábios. Esqueceu o assunto e
começou a escrever As intermitências da Morte.
Luís Pastor continua a história de Nesta esquina do
tempo «Surgiu de um encontro, por acaso» refere
o cantor. «Em Maio de 2005 viajei até Lanzarote
com Moncho Armendáriz para apresentar o
documentário Unidades Móviles. Tomámos um café
com José Saramago, que me ofereceu um livro das
Obras Completas de Poesia e eu disse-lhe meio a
sério, meio a brincar: – vou musicar os seus poemas.
No avião de regresso para Madrid, comecei a
trabalhar, e em casa ia cantando os poemas só
com a voz, sem instrumentos. Passados três dias
compus todas as músicas mas, por acidente, foram
apagadas do minidisc. Comecei de novo, com a
certeza de que não ia ter problemas. Depois passei
à harmonia e gravei umas maquetes, que José 
Saramago e Pilar del Rio ouviram em Outubro
de 2005. Só questionaram a minha pronúncia do
português. Tomei nota, comecei a estudar e fui
aprendendo ao ouvir Saramago a declamar os
seus próprios poemas, numas cassetes que tinha
gravado para mim. Foi fundamental gravar metade
do disco em Portugal, com a produção de João
Lucas e a ajuda de João Afonso».
«Estava predestinado a fazer este disco pela minha
paixão por Portugal, pela música e a língua», diz
Luís Pastor. «Em português, antes só tinha musicado
um poema de Fernando Pessoa, mas sempre
admirei e fui amigo de José “Zeca” Afonso e do seu
sobrinho João, do Fausto, de Sérgio Godinho... Ao
deparar-me com a obra de José Saramago senti
a musicalidade e a importância da temática. No
álbum há poemas de amor, alguns mais surrealistas,
outros sociais... São poemas grandes, belíssimos,
nunca banais». Pilar del Rio escreveu: «apesar dos
conselhos dos bem-pensantes, é como se José
Saramago e Luís Pastor gostassem de brincar.
Transgrediram as normas e a idade, cada um
acarretando os seus muitos e jovens anos de uma
vida entre poemas e canções, com a pele nua,
sentindo e desfrutando. Mais do que um disco é
um milagre».
Ninguém melhor do que Saramago para resumir
este feliz encontro da música e da palavra Nesta
esquina do tempo: «Que seja eu o autor das poesias
aqui interpretadas, em português e em espanhol,
é só uma feliz coincidência. O que mais importa é
a música. E a voz, essa inconfundível voz de Luís
Pastor, áspera e ao mesmo tempo suave, como o
foram as vozes dos grandes trovadores do século
passado. Ouçamo-lo.
O tempo cabe todo na duração de um disco»