A entrevista ainda se encontra disponível, para leitura neste link (jornal Público),
em, http://www.publico.pt/noticias/jornal/os-livros-de-saramago-transformaramme-a-vida-159896
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"O ano da morte de Ricardo Reis" trouxe-a a Lisboa, para fazer o percurso do romance. Tinha 36 anos. Passados dois anos, Pilar del Rio casava-se com o autor, José Saramago, então a rondar os 66. Hoje, é sua tradutora para espanhol - trabalho que faz quase em simultâneo com o acto de criação do escritor. Mas assume-se como jornalista, acima de tudo. Tem um estúdio em casa, donde entra no "ar" com as suas colaborações radiofónicas. Faz entrevistas - uma das últimas foi ao escritor mexicano Carlos Fuentes; antes desta, ao subcomandante Marcos; uma das próximas queria que fosse a António Guterres - para o suplemento dominical "El Semanal", inserido em mais de 40 jornais espanhóis e que atinge, no seu conjunto, uma tiragem superior a um milhão e meio de exemplares. Manteve uma rubrica de intervenção cívica, durante dois anos, na rádio andaluza . Pôs-lhe o nome de "Blimunda não se rende". Como Saramago, afirma-se comunista, ainda que sem cartão. Despreza os programadores da televisão que se está a fazer cá e em Espanha. Acha que um livro, mais ainda do que a Capela Sistina, é a expressão acabada do espírito humano. A ministra da Cultura da Região Autónoma da Andaluzia gostava de a ter como Comissária do Livro e da Leitura. Excertos de uma conversa que se prolongou por três dias e decorreu no salão de entrada de um hotel, numa viagem à Azinhaga, terra natal do marido, e à mesa de improvisada esplanada da Feira do Livro de Lisboa, enquanto o Prémio Nobel, ali a dois passos, multiplicava autógrafos por longas filas de indefectíveis leitores.
P - Em que medida o prémio Nobel ajuda ou prejudica Pilar jornalista?
R - Pode parecer mentira, mas nem me ajuda nem me prejudica. Trabalho onde e como trabalhava antes.
P - Não recebe mais propostas?
R - Não. Já antes do Nobel trabalhava com Mara Malibran, a directora de "El Semanal". Também trabalho como comentadora na Cadena Ser e no Canal Sur. Tenho um estúdio em casa. A única novidade é ser colunista quinzenal do grupo Progressa, do "El País" (18 jornais). Comecei este ano. De resto, sou jornalista como era jornalista. Iniciei-me na Rádio Nacional (informação política e cultural) e em 1982, após o triunfo do PSOE, fui convidada a ir para a TVE, onde me encarreguei da programação na Andaluzia. Fui apresentadora, durante vários anos, de um telejornal.
P - Como foi a experiência televisiva?
R - Gosto mais da Rádio.
P - Porquê?
R - É mais imediata, mais directa, mais limpa.
P - O que quer dizer mais limpa?
R - Na televisão, mesmo quando se dão as horas a mensagem já está manipulada. Pela maquilhagem, pela iluminação, pelo cenário, pode converter-se a inocente mensagem das horas em algo magnífico ou triste.
P - Se formos por aí, também a voz é manipuladora porque ela sozinha seduz ou afasta, desperta a imaginação. Para não falar das vozes através das quais não passa nada...
R - Sim, há vozes e vozes. Mas na televisão há, para além disso, a intenção de uma série de pessoas - realizador, iluminador, etc. São demasiadas manipulações para uma mensagem tão simples como dizer que horas são. Saí da TVE em 86, dizendo que nunca mais voltava à televisão, nem para participar num programa como convidada. Só quebrei a promessa uma vez, por circunstâncias muito especiais. Mas nunca mais quero entrar num estúdio de televisão.
P - Houve alguma experiência concreta que a levou a tomar essa decisão?
R - Decidi sair da TVE por razões que tiveram a ver com um acto de censura. Mas a minha posição sobre a televisão é mais geral e tem a ver com o do estádio de imoralidade em que ela entrou. E com a complacência dos jornalistas que a fazem.
P - Complacência com quem ?
R - Com a direcção económica que é também a direcção ética. Não podemos dizer que é a publicidade ou os espectadores que pedem uma programação tão reles. Os jornalistas também são culpados. Nunca vi nenhuma greve de jornalistas exigindo a melhoria dos conteúdos, exigindo a dignificação desses programas. Pelo contrário, nos telejornais os jornalistas são servis e dóceis com o poder político do momento, e nos programas de entretenimento são canalhas.
P - Isso aplica-se só a Espanha, ou também a Portugal?
R - E também à Itália, a França. Mas Espanha e Portugal estão-nos mais próximos. A programação é patética, dá vergonha. E porquê? Porque os senhores programadores não têm inteligência para propor coisas melhores. Sexo e violência asseguram-lhe um público fácil. Não têm capacidade e cultura para ir mais longe. O mesmo nas televisões públicas.
P - Tem estado a pôr os jornalistas da rádio e dos jornais de fora das suas críticas. Mas peguemos num exemplo: em Espanha, um fenómeno televisivo como o "Big Brother" merece chamadas consecutivas de primeira página em jornais de referência como o "El País".
R - Primeiro: os jornalistas da televisão não cumprem o seu dever. Segundo: alguns jornalistas dos outros media também não. Terceiro: o mau cheiro alastra e acaba por atingir tudo. A discussão da chamada de primeira página está instalada na redacção do "El País". A mim parece incrível que se faça este tipo de programa. Por mim, nunca o vi, nem um só segundo.
P - Isso é partir logo do princípio de que nem vale a pena ver, ao menos para criticar. Onde está a moral de quem critica se nem sequer conhece?
R - Por amor de Deus! Não oiço falar de outra coisa. Eu não participo como público nesse espectáculo. Não me interessa. Mas vou mais longe: se os programadores das televisões de Espanha e de Portugal são seres que não têm imaginação nem cultura e que programam mais baixo e mais rasteiro do que os programadores dos outros países, a verdade é que alguém conseguiu fundir os dois países neste lodaçal. Dantes os níveis de qualidade não eram estes.
P - Os públicos, que são quem faz as audiências , colocam esses programas nos primeiros lugares.
R - Dou um exemplo apenas, e recente: em 1988, quando a televisão estreou uma série baseada no livro de Torrente Ballester "O Prazer e a Sombra", foi um acontecimento, como se se tratasse de um jogo de futebol.
P - O mundo mudou muito, depois disso.
R - Alguém o fez mudar...
P - ... se calhar foram a escola, a família, antes da televisão.
R - Estou absolutamente convencida de que houve um objectivo muito claro, muito bem trabalhado por parte de alguém, que aliás também controla a escola, mas que em primeiro lugar controla os media, para ter cidadãos alucinados.
P - Essa não é uma visão demasiado conspirativa da história?
R - Eu vi-o. Estava na direcção da TVE.
O seu nome ficou escrito na antiga Rua da Estação, que passa frente à junta de freguesia e à Biblioteca José Saramago e que se cruza com a rua que em 1987. recebeu o nome do escritor.
A placa, de azulejos, com orla em tons de amarelo, exibe o nome de Pilar del Rio, seguido da citação constante no livro Pequenas Memórias:
«A Pilar que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar».
Pilar, que recebeu uma réplica da placa toponímica, desejou que «todos os enamorados do Mundo se encontrem e dêem um beijo nesta esquina».
P - Viu o quê, exactamente?
R - Vi como a exigência e o nível iam baixando dia após dia. Ouvi dizer: 'temos que fazer uns programas mais ligeiros para que os espanhóis vão para a cama descansados, para mais gente ficar satisfeita. Basta de chatices e de solidariedades'. Vi como dia a dia se iam pondo filmes mais reles.
P - Se havia uma central dessas, que objectivos pretendia atingir?
R - Eu não disse que há uma central. Digo que houve um objectivo político aqui e em Espanha porque uma população embrutecida é mais facilmente dominável. Uma população cujo objectivo maior é ver o "Gran Hermano" é uma população que não pensa.
P - Não foram nem os portugueses nem os espanhóis quem inventou esses formatos, que vieram de um país tão civilizado como a Holanda.
R - Por que é que não se copiam certas formas de estar na vida dos países nórdicos e só se vão lá buscar os "Big Brothers"? Na Holanda há outras coisas, para além do "Big Brother". Aqui há o "Big Brother", ponto final.
P - Se a escola criar o gosto pela leitura, ou simplesmente o gosto, os que dela saiem irão engrossar o grupo de que a Pilar faz parte.
R - A escola também é culpada, claro. Mas em primeiro lugar ler não é obrigatório. E depois, dá trabalho. Lembra-me quando o primeiro ministro Cavaco Silva perguntou à mulher: 'como se chamava aquele livro do Saramago que tentei ler e não consegui?' O "Big Brother" não dá trabalho. Basta uma pessoa sentar-se com umas pipocas.
P - É fácil criticar os directores que optaram por este tipo de programação de sucesso. Onde estão os outros, capazes de traçar e manter uma programação que concilie a qualidade com as audiências?
R - Pergunte-o aos de agora, que sabem com que artes os esmagaram, expulsaram, assassinaram civilmente.
P - Bom, a verdade é que os portugueses e julgo que os espanhóis das diferentes literacias e estatutos socio-económicos continuam a preferir as tais programações e a nem sequer olhar para as RTP 2 que lhes são oferecidas...
R - O truque é simples: prepara-se a estrumeira, empurram-se as pessoas e logo dizemos que só lhes agrada a merda. É mesquinho, barato, mas funciona.
P - Nas outras áreas - artes, literatura - o panorama em Portugal e Espanha é também assim desolador?
R - Há uma vida cultural rica, mas desgraçadamente os meios de comunicação não aparecem lá. Quando uma pessoa viaja e vê tantas actividades em tanto lado, é impressionante como nada disso passa para a comunicação social.
P - Mais devagar: em Portugal há um programa de televisão como o "Acontece", caso raro no mundo; temos jornais como o DN, o PÚBLICO, com várias páginas dedicadas à cultura...
R - ... não, perdão, não. Várias? Uns dias mais outros dias menos, poucas..
P - Muitíssimo mais do que há 30 anos.
R - Não faltava mais nada. Não vamos agora pôr a ditadura como referência, está bem? Há umas páginas entaladas junto do Desporto no final. E a maior parte da Cultura é espectáculo. O que é que se passa nos museus portugueses? Quantos estão fechados? Porquê estão fechados? Dedicam duas páginas ao espectáculo de Madona em Barcelona...
P - O "El País", que fez isso, é o mesmo, insisto, que todo os dias dedica várias páginas à Cultura.
R - Sempre menos do que à Economia. Quem é que disse que a Economia é mais importante que a Cultura? Não, não. Dá poucas páginas à Cultura e até à Política. Aliás, não há Política nos jornais, há fofoquice. Quem procura retratar a que se passa mesmo, o que se joga hoje nos partidos políticos? Quem descreve as lutas pelo poder? O que se passa na preparação das listas para as autárquicas?
P - O meu jornal tem vindo a dar páginas e páginas sobre isso.
R - Não. Tem vindo a apresentar candidatos. A nossa função não e reproduzir o que eles querem. É a de dizermos o que eles nunca quereriam que nós disséssemos.
P - Está portanto desiludida?
R - Fui jornalista no tempo da ditadura e tinha muitas esperanças na democracia. Nos primeiros tempos da democracia fomos cúmplices, em Espanha, com a classe política, porque tínhamos que fazer a transição. Mas houve um momento em que eu pensei que não iríamos contentarmo-nos em ser fiscalizadores. Que devíamos tentar ver por detrás. Mas não conseguimos. Pior: a nova geração não tem qualquer interesse nisso. Estamos a fazer um jornalismo de conferência de imprensa. Sem qualquer interesse.
P - Exerceu a profissão nos dois países. O jornalista espanhol é mais engajado do que o português, não é verdade?
R - Não estou de acordo. Há gerações. A mais nova tem ousadia, mas ao mesmo tempo também muita indiferença. E há essa história absurda da independência. Dizem que o jornalista deve ser independente!...
P - Não acha que deve?
R - Por amor de Deus!
P - Deve ser então dependente?
R - Temos é que ser honestos. Quando se fala em jornalista independente está-se a dizer independente dos partidos de esquerda. Independente de quê? O jornalista depende do banco, do patrão, da ideologia, da educação, da cultura, da forma como vê o mundo.
P - Já são tantas dependências, e ainda lhes quer acrescentar a de um cartão que a liga e faz depender de um partido?
R - Eu não pertenço a nenhum partido. Sou dependente da minha cabeça. Nunca fui correia de transmissão de nenhum partido político.
P - Então estamos de acordo. Porquê criar uma dependência partidária?
R - Mas ser de esquerda e assumi-lo não me impede de criticar a esquerda. Pelo contrário. Se vir um erro, uma corrupção, uma mentira, criticá-la-ei com mais razão ainda. Sou mais exigente com os meus do que com os outros.
P - É comunista?
R - Sou comunista ideológica e emocionalmente, mas nunca se pôs a questão de ser militante.
P - Nunca foi convidada?
R - Sim, mas fui deixando passar. E por mais de um partido de esquerda.
P - Incluindo o PSOE?
R - Sim, naquela época [de Franco].
P - Li algures que a Pilar, sevilhana, gosta de touradas.
R - Gostava. Saí do ambiente, deixei de estar rodeada da ornamentação (que era o que me agradava) e afastei-me. Hoje não me interessam. Sou contra.
P - É verdade que foi freira teresiana? Que tipo de ordem é essa?
R - Fui membro de um instituto secular chamado Instituição Teresiana, quer dizer, fui "teresiana" e de alguma forma continuo a sê-lo, pelo menos no respeito e na admiração que sinto pela mulher forte que foi Teresa de Jesus.
P - Por que é que abandonou a instituição?
R - Não abandonei. Disseram-me, num acto que honra a instituição, que não podia continuar a viver uma vida que não me fazia feliz. Saí com pena, porque acreditava que seria útil dedicando a minha vida aos outros com base naqueles princípios.
P - Saramago disse numa entrevista: "Para se ser ateu como eu, é preciso um alto grau de religiosidade". E também disse: "Sou um religioso sem necessidade de Deus". Está de acordo? É também esse o seu sentimento?
R - Creio que se pode ser religioso sem Deus: ao fim e ao cabo, Deus é uma abstracção. O que importa na religião é a ligação com os homens. No catolicismo falam de "comunhão dos santos", na vida consciente e solidária dizemos dever, obrigação, justiça... É um sentimento profundo que nos descobre humanos entre humanos, todos responsáveis, todos feitos da mesma massa e com os mesmos direitos.
P - A veemência com que fala parece indicar que nada distingue a Pilar militante católica da Pilar comunista.
R - Quando era cristã aprendi que não se podia desperdiçar em tontarias nem um minuto da vida, sobretudo pública. Digo o mesmo agora. Não percamos tempo em fofoquices havendo tantas coisas importantes. Não para ficarmos o tempo todo numa atitude de reflexão. A vida pode ser simples, não tem que ser complicada e pesada. Mas façamos a nossa vida. Quando vamos às aldeias as pessoas costumam falar de coisas boas do passado para rematarem, resignadas: 'bom, mas isso passou, já não volta'. Porquê? Não tem que ser assim.
P - A que é que se está a referir, concretamente?
R - Nunca houve tanto dirigismo. O dirigismo da URSS era uma brincadeira de meninos comparado com o dirigismo do sistema democrático. Mudam-nos a moeda, mudam-nos as fronteiras, mudam-nos a soberania, mudam-nos os hábitos. É um dirigismo autoritário. Normas, costumes, hábitos alimentares (seriam todos maus?), tudo mudou.
P - Qual será então a diferença entre o seu engajamento ideológico de hoje e a militância católica do passado?
R - Sou uma pessoa de expressão veemente. Nada me é indiferente. Envolvo-me nas coisas. A ideologia são os óculos com que vejo o mundo. A diferença entre o meu passado e o meu presente? Há um sentido da transcendência no cristianismo e eu não o tenho.
P - Perdeu-o?
R - Não o tive nunca. Sou um sujeito activo e quero que as coisas aconteçam porque é justo que elas aconteçam. Não podia participar na transformação das coisas para ganhar o céu. Quero participar porque recebi muito e tenho que dar muito. Sou uma privilegiada - nasci na Europa, nesta época, tive acesso à cultura - e tenho que pagar.
P - Há dez anos vivíamos num mundo bipolar. Depois houve a implosão do império soviético. Declarou-se há pouco comunista. Como viu essa derrocada da URSS?
R - Nunca fui ao império soviético. O que eu vi na minha vida foi a ditadura de Franco, o império do capital e uns quantos senhores muito honestos que tentavam que os cidadãos tivessem melhores condições de vida, que eram os comunistas na clandestinidade. E vi sempre o capitalismo em acção, o império dos Estados Unidos com bases que me rodeavam. Nunca vi o império soviético.
P - Mas sabia que existia o muro de Berlim, que existia uma série de países...
R - ...Na Andaluzia, onde vivia, sentia o muro que há no estreito de Gibraltar . Claro que havia um muro de Berlim, aliás levantado por duas partes. Mas nunca me senti ameaçada pelo Pacto de Varsóvia.
P - Não percebo. O muro de Berlim é irrelevante para si?
R - Há muitos muros e todos são muros da vergonha. Mas eu também falo dos outros muros que se levantam entre a África e a Europa, entre a América do Norte e a do Sul, entre as casas ricas do Rio de Janeiro e as pobres, entre a sociedade opulenta de Portugal e os desgraçados. Não quero que o pensamento único me oriente, me obrigue a falar do muro de Berlim. Quero falar de todos os muros. Cada dia há mais ricos e mais pobres. O muro de Berlim, horrível, afectou muita gente. Os outros afectam milhões e milhões e ninguém fala deles. Ninguém deita abaixo os muros que separam a riqueza da pobreza.
P - Falou há pouco de senhores limpos e honestos, referindo-se aos comunistas em Espanha. Lá como aqui em Portugal, os comunistas foram olhados com simpatia por muita gente, logo a seguir à queda das duas ditaduras. Mas essa simpatia desapareceu. Como explica que os espanhóis, como os portugueses, tenham deixado de ser sensíveis à mensagem eleitoral desses senhores?
R - Os meios, quer dizer, quem os faz, decidem o que é notícia e o que não é. Por exemplo em Espanha, no recente debate sobre o estado da nação, reduziram a informação a um circo em que [o primeiro ministro ] Aznar e [o secretário-geral do PSOE] Zapatero competiam entre si para ver quem era mais alto, mais forte, mais ágil. Durante o debate e após ele dedicaram-se a dar pontos às capacidades oratória, de improviso, de resposta, à elegância de um e do outro... Os outros dirigentes políticos não existiam e muito menos a nação. É como se o estado do país e as soluções não interessassem a ninguém. Claro que o líder da Izquierda Unida, [Gaspar] Llamazares, que saiu do circo e chegou com denúncias e propostas concretas, foi ignorado e insultado. Por falar em problemas, a imprensa chamou-lhe apocalíptico; por propor soluções à margem do pensamento único, chamaram-lhe sonhador. Quanto ao caso do PCP, recordo que há anos [década de 80] este partido denunciou que as câmaras de televisão se instalaram precisamente atrás da sua bancada na Assembleia da República, de modo que quando se apresentavam imagens do plenário viam-se todos os grupos parlamentares menos o comunista. Não foi por acaso. Aliás, qualquer pessoa vê o tratamento que é dado a pessoas e às propostas da esquerda, em contraste com o temor reverencial com que de um modo geral se trata os poderosos. Dão-se poucas piadas aos grandes da economia ou aos instalados da política. - E dão-se piadas aos da esquerda?- Por exemplo, uma pessoa como [o general e ex-primeiro ministro entre 1974 e 1975] Vasco Gonçalves: de cada vez que um jornalista, por mais jovem que seja, se refere a ele, dá-se ao luxo de o ridicularizar. Pois eu digo-lhes: se conseguirem ter alguma vez metade da honestidade de Vasco Gonçalves, serão grandes homens, mas até lá, não. Se a vida pública portuguesa tivesse 10 pessoas tão honestas como Vasco Gonçalves, o país seria outro - mais limpo e melhor.
P - Mas teve um projecto para Portugal que as pessoas não apoiaram.
R - Muitas pessoas não apoiaram, outras apoiaram. Mas acima de tudo, foi a CIA que não o aceitou, a NATO que não o aceitou, o grande capital que não o aceitou, os meios de comunicação controlados pelo grande capital que não o aceitaram, a pressão internacional não podia aceitá-lo... Não sejamos simplistas. Os países normalizaram-se e Portugal não iria ter a oportunidade de ensaiar fórmulas políticas diferentes, por mais democráticas que fossem.
P - Mas acha que as pessoas andam enganadas toda a vida, todo o tempo?
R - À medida que o tempo passa as pessoas estão mais angustiadas porque têm que pagar a prestação do carro, a prestação da casa. A liberdade, esse grande conceito, traduz-se em ter um carro maior, em fazer viagens, em comer todos os dias em restaurantes, em vestir Armani. Então quando chegam uns imbecis minoritários, mal vestidos, a falar de Reforma Agrária, as pessoas desatam a rir.
P - Houve uma oportunidade de fazer a Reforma Agrária em Portugal. E se ela acabou mal, não foi apenas por actos do poder. As próprias experiências no terreno não correram bem.
R - O capitalismo também não está a correr bem e temo-lo aí todos os dias. Desde quando existe o capitalismo? Desde Viriato ou antes mesmo? E no entanto tem sempre novas oportunidades. Mas quanto à Reforma Agrária, protagonizada por gente inexperiente, diz-se que não correu bem. Não tiveram tempo. Não tiveram tempo.
P - Foram estas ideias que a aproximaram de Saramago, também? Que criaram entre vocês uma cumplicidade?
R - Eu não me apaixonei por ideias, mas pelo homem.
P - Mas não se apaixonou pela obra, antes de conhecer o autor? Quando veio a Portugal antes de o conhecer, vinha à procura do autor da obra ou do homem que estava por detrás do autor?
R - A verdade é que vim a Portugal para fazer o trajecto de Ricardo Reis.
P - Mas telefonou ao autor.
R - Para o felicitar. Por maneira de ser, digo sempre o que penso, o bem e o mal. Quando leio um livro extraordinário, digo-o. O mundo está tão carecido de palavras de afecto...
P - Chegou a fazer o tal percurso do Ano da Morte - Hotel Bragança, que já não existe, cemitério dos Prazeres? Foi nesse quadro que telefonou a Saramago?
R - Telefonei de Espanha. Um número de telefone não resiste aos jornalistas. Liguei para o felicitar e para lhe dizer que gostava de o cumprimentar. Ele esteve de acordo. Mas o percurso fi-lo sozinha com o livro. Devo dizer, a propósito, que esta ideia não tinha nada de louco: na semana a seguir vieram cá fazer o percurso uma irmã minha e o marido. E uns dias antes tinham-no feito uns amigos nossos. Durante muito tempo, e ainda hoje, houve amigos nossos a fazerem-no.
P - Portanto: começou a gostar de José Saramago pessoa...
R - Eu não sabia nada da pessoa, quem era, como era, em que circunstâncias vivia , só sabia que tinha nascido em 1922 e isso parecia-me impossível.
P - Achava que devia ser mais novo?
R - Não, achava que era um clássico, mas ao mesmo tempo as ideias que exprimia eram de alguém deste tempo. Havia aqui uma contradição, e eu tinha interesse em comprovar que era um contemporâneo o homem que escrevia desta forma. De modo que nos conhecemos, tomámos um café e adeus.
P - O namoro não começou logo?
R - Ah, não! Passados meses. Mantivemos correspondência sobre livros, eu não sabia nada da vida dele e ele nada da minha vida e então um dia perguntou-me se me podia ir visitar em Sevilha.
P - E o namoro começou?
R - Fomo-nos encontrando.
P - Tinha quantos anos?
R - 36.
P - A diferença de quase trinta anos não constituiu um problema? Não digo para si, eventualmente, mas para o seu filho, a sua família?
R - Porque que é que havia de constituir?
P - Casou dois anos depois, mais ou menos. A sua vida mudou totalmente?
R - Chegámos a pensar na hipótese de José se mudar para Sevilha, porque o meu trabalho não me permitia vir para Portugal. Mas entretanto a directora-geral da TVE, Pilar Miró, convidou-me para ser a correspondente em Portugal.
P - A decisão de irem para Lanzarote é tomada apenas por causa daquele episódio muito conhecido do veto ao livro "O Evangelho segundo Jesus Cristo"?
R - Sim, desse acto de censura do candidato à Câmara de Lisboa.
P - Não, esse é Santana Lopes. A proposta foi do subsecretário de Estado dele, Sousa Lara...
R - A decisão foi do governo. O outro [Santana Lopes] manteve e apoiou a proposta e foi ao parlamento defender a política do subordinado.
P - Quer dizer que se ele ganhar as eleições...
R - ...é uma vergonha para Lisboa...
P - ...e vocês deixam de vir a Lisboa?
R - Eu com Lisboa não terei problema nenhum. Mas com a Câmara teria. Não, não vai ganhar.
P - Vão então para Lanzarote...
R - A situação estava também a tornar-se difícil em Lisboa porque era um corrupio. Toda e qualquer pessoa que vinha a Portugal procurava-o. Começámos a procurar um sítio fora de Lisboa, visitámos algumas casas em Mafra, mas não encontrámos aquilo que queríamos.
P - Qual a sua intervenção no processo criativo de Saramago?
R - Como é óbvio não intervenho no processo criativo de Saramago.
P - É primeira leitora? Crítica?
R - Sou a sua primeira leitora: generosamente, cada noite José passa-me as folhas que escreveu para que eu as leia e, nos últimos livros, as traduza, já que serão apresentadas simultaneamente nos países de língua portuguesa e castelhana de todo o mundo.
P - Dá-lhe ideias?
R - Claro que não dou ideias nem critico: o processo criativo é pessoal e intransmissível. Eu sei qual é o meu lugar e jamais ousaria intervir, só oiço o que o autor me conta, as várias hipóteses, as mudanças que podia introduzir...
P - O que representa o livro para si?
R - O que me interessa acima de tudo no livro são as paisagens humanas. Tanto quanto me interessam os homens que pensam e escrevem os livros. Os livros são a expressão de outros seres humanos. Interessam-me em geral e individualmente. Mais do que um pôr do sol, mais do que uma flor, mais do que uma obra arquitectónica, mais do que a Capela Sistina.
P - E a literatura?
R - Pode ser a expressão mais acabada do espírito humano. É a que melhor entendo. Voltando aos livros: encontro sempre alguma coisa boa num livro. Nem que seja a capa.
P - Qual o livro de que mais gostou na vida?
R - Em cada obra há um livro de que gosto mais. É essa a glória dos livros. Enquanto a Capela Sistina se apresenta como um bloco, os livros são múltiplos, diversos, têm vidas distintas.
P - Indique dois ou três.
R - Os de Saramago, que me transformaram a vida.
P - Quem lhe transformou a vida não foi antes José Saramago?
R - Não. Comecei pelos livros. Coleccionei-os, antes de conhecer José. Posso dizer que gosto de falar dos livros de José Saramago porque já o fazia antes de o conhecer. Recomendei-os antes. Agora só tenho mais motivos para o dizer, porque são os livros da minha vida.
(Saramago, que entretanto chegou de mais uma longa sessão de autógrafos e ficou à espera do fim da entrevista, contesta uma observação do entrevistador acerca da superioridade da democracia representativa sobre todos os outros sistemas, discorre sobre a "falsa democracia" que deixa "contentinhos" os menos exigentes, diz que os jornalistas deviam investigar quem são e onde estão os que detêm verdadeiramente as rédeas do poder no mundo em vez de encherem páginas e páginas com "histórias dos Guterres e dos Aznar, que não mandam nada", revela ("pensei nisso hoje de manhã, nem o disse à Pilar") que um dia destes ainda o hão-de ver numa daquelas manifestações anti-globalização como a de Gotemburgo - "na primeira fila, ali ao lado daqueles que os editorialistas dizem que cheiram mal" - e remata, longos minutos passados: "Sofia [de Mello Breyner] escreveu aqueles versos muito glosados no 25 de Abril dizendo que a poesia estava na rua. Pois bem, o que falta é a democracia na rua. A democracia deve vir para a rua." - Que pena não ter sido a Pilar a responder. Dava um bom título: 'a democracia deve vir para a rua'..., comento. - A Pilar não disse mas está de acordo, replica Saramago.- Sim, sim, claro, intervém ela, com calor. - Pode portanto usar no título, conclui o Prémio Nobel).