"Levantado do Chão"
(...) «Todos os dias são iguais, e nenhum se parece. Pelo meio da tarde chegaram à vinha notícias que desassossegaram o pessoal, ninguém tinha certezas do que tivesse sido, Diz-se que há tropas em Lisboa, ouvi na rádio» (...) «Em dois tempos se desfez o ritmo do trabalho, a cadência da enxada passou a ser vergonhosa distracção, e Maria Adelaide não é menos que os outros, está de nariz levantado, curiosa» (...) «Neste lugar do latifúndio, tão longe do Carmo de Lisboa, não se ouviu um tiro nem anda gente a gritar pelos descampados» (...) « Ah, isso é que é uma revolução.» (...) «A circulação é de lá vem um, faz-se a viagem depressa, e de ansiedades ali mesmo se reduzem as mais instantes, há unanimidade de cobrador, motorista e passageiros, o governo foi a terra, acabou-se o Tomás e acabou-se o Marcelo, neste ponto desfaz-se o acordo geral, não se sabe bem, alguém falou em junta, mas os outros duvidam, junta não é nome de governo, junta é de freguesia» (...)
Caminho, 10.ª edição
Páginas 350 a 352
(Fotografia de Helena Mesquita,
Avenida da Liberdade - Lisboa, 25 de Abril de 2015)
"A Noite"
"Torres (Exultando)
Aconteceu! Aconteceu! (...) É tudo verdade! Há tropas na Emissora, na Televisão, no Rádio Clube. E o Quartel-General, em S. Sebastião, está cercado. E outros locais, Fora de Lisboa, também. Eu escrevo a notícia. Esperem, é só um bocadinho, vai ser rápido. Eu não demoro... eu não demoro... (...) Pronto já está. Querem ouvir?
Director (Estendendo a mão)
Dê-me isso Torres. Não vai para a tipografia sem que eu veja.
Torres (Como se despertasse)
Não vale a pena, senhor director. Só escrevi o que acabei de dizer. Nem sequer afirmo que as tropas saíram à rua para derrubar o governo. Nem sequer isso, imagine. Esteja descansado. Sei muito bem que o senhor procura um pretexto.
Director (Intimativo)
Ordeno-lhe que me entregue esse papel! Olhe que se arrepende!
Jerónimo (Tirando simplesmente o papel da mão de Torres)
Não se arrepende, não, senhor director. Cuide o senhor de si, que bem vai precisar, (...) Vamos, rapazes. Já ganhámos a nossa noite. (...)
(...)
Todos Juntos (Em tons diferentes)
A máquina já está a andar!
Grupo do Administrador (Começando em surdina e alternado com o grupo de Torres)
Há-de parar! Há-de parar! Há-de parar! Há-de parar!
Grupo de Torres (Mesmo jogo)
Andar! Andar! Andar! Andar! (O ruído da rotativa cresce.)"
Caminho, 2.ª edição
Páginas 112 a 115
(Fotografia, momentos de tensão entre as tropas
estacionadas no Terreiro do Paço e marinha no Rio Tejo, 25 de Abril de 2015)
"Manual de Pintura e Caligrafia"
"O regime caiu. Golpe militar, como se esperava. Não sei descrever o dia de hoje: as tropas, os carros de combate, a felicidade, os abraços, as palavras de alegria, o nervosismo, o puro júbilo. Estou neste momento sozinho: M. foi encontrar-se com alguém do Partido, não sei onde. Vai acabar a clandestinidade. O meu auto-retrato já esta muito adiantado. Dormíamos em minha casa, M. e eu, quando o Chico, noctívago, telefonou, aos gritos, que ouvíssemos a rádio. Levantámo-nos de um salto (estás a chorar, meu amor?): «Aqui Posto de Comando das Forças Armadas. As Forças Armadas portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa...» Abraçámo-nos (meu amor, estás a chorar), e embrulhados no mesmo lençol, abrimos a janela: a cidade, oh cidade, ainda noite por cima das nossas cabeças, mas já uma claridade difusa ao longe. Eu disse: «Amanhã vamos buscar o António.» M. apertou-se muito contra mim. «E um dia destes dar-te-ei uns papeis que aí tenho. Para leres.» «Segredos?», perguntou ela, sorrindo. «Não, papeis. Coisas escritas.»"
Caminho, 4.ª edição
Página 311