Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 25 de abril de 2015

25 de Abril de 1974... Três visões da revolução dos cravos nas obras de José Saramago


"Levantado do Chão"

(...) «Todos os dias são iguais, e nenhum se parece. Pelo meio da tarde chegaram à vinha notícias que desassossegaram o pessoal, ninguém tinha certezas do que tivesse sido, Diz-se que há tropas em Lisboa, ouvi na rádio» (...) «Em dois tempos se desfez o ritmo do trabalho, a cadência da enxada passou a ser vergonhosa distracção, e Maria Adelaide não é menos que os outros, está de nariz levantado, curiosa» (...) «Neste lugar do latifúndio, tão longe do Carmo de Lisboa, não se ouviu um tiro nem anda gente a gritar pelos descampados» (...) « Ah, isso é que é uma revolução.» (...) «A circulação é de lá vem um, faz-se a viagem depressa, e de ansiedades ali mesmo se reduzem as mais instantes, há unanimidade de cobrador, motorista e passageiros, o governo foi a terra, acabou-se o Tomás e acabou-se o Marcelo, neste ponto desfaz-se o acordo geral, não se sabe bem, alguém falou em junta, mas os outros duvidam, junta não é nome de governo, junta é de freguesia» (...)
Caminho, 10.ª edição
Páginas 350 a 352

(Fotografia de Helena Mesquita, 
Avenida da Liberdade - Lisboa, 25 de Abril de 2015)


"A Noite"

"Torres (Exultando)
Aconteceu! Aconteceu! (...) É tudo verdade! Há tropas na Emissora, na Televisão, no Rádio Clube. E o Quartel-General, em S. Sebastião, está cercado. E outros locais, Fora de Lisboa, também. Eu escrevo a notícia. Esperem, é só um bocadinho, vai ser rápido. Eu não demoro... eu não demoro... (...) Pronto já está. Querem ouvir?

Director (Estendendo a mão)
Dê-me isso Torres. Não vai para a tipografia sem que eu veja.

Torres (Como se despertasse)
Não vale a pena, senhor director. Só escrevi o que acabei de dizer. Nem sequer afirmo que as tropas saíram à rua para derrubar o governo. Nem sequer isso, imagine. Esteja descansado. Sei muito bem que o senhor procura um pretexto.

Director (Intimativo)
Ordeno-lhe que me entregue esse papel! Olhe que se arrepende!

Jerónimo (Tirando simplesmente o papel da mão de Torres)
Não se arrepende, não, senhor director. Cuide o senhor de si, que bem vai precisar, (...) Vamos, rapazes. Já ganhámos a nossa noite. (...)

(...)

Todos Juntos (Em tons diferentes)
A máquina já está a andar!

Grupo do Administrador (Começando em surdina e alternado com o grupo de Torres)
Há-de parar! Há-de parar! Há-de parar! Há-de parar!

Grupo de Torres (Mesmo jogo)
Andar! Andar! Andar! Andar! (O ruído da rotativa cresce.)"
Caminho, 2.ª edição
Páginas 112 a 115

(Fotografia, momentos de tensão entre as tropas 
estacionadas no Terreiro do Paço e marinha no Rio Tejo, 25 de Abril de 2015)

"Manual de Pintura e Caligrafia"
"O regime caiu. Golpe militar, como se esperava. Não sei descrever o dia de hoje: as tropas, os carros de combate, a felicidade, os abraços, as palavras de alegria, o nervosismo, o puro júbilo. Estou neste momento sozinho: M. foi encontrar-se com alguém do Partido, não sei onde. Vai acabar a clandestinidade. O meu auto-retrato já esta muito adiantado. Dormíamos em minha casa, M. e eu, quando o Chico, noctívago, telefonou, aos gritos, que ouvíssemos a rádio. Levantámo-nos de um salto (estás a chorar, meu amor?): «Aqui Posto de Comando das Forças Armadas. As Forças Armadas portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa...» Abraçámo-nos (meu amor, estás a chorar), e embrulhados no mesmo lençol, abrimos a janela: a cidade, oh cidade, ainda noite por cima das nossas cabeças, mas já uma claridade difusa ao longe. Eu disse: «Amanhã vamos buscar o António.» M. apertou-se muito contra mim. «E um dia destes dar-te-ei uns papeis que aí tenho. Para leres.» «Segredos?», perguntou ela, sorrindo. «Não, papeis. Coisas escritas.»"
Caminho, 4.ª edição
Página 311


Sem comentários:

Enviar um comentário