No dia Internacional da Tradução (30/09) destaque à edição #37 da Revista Blimunda, com a entrevista de Ricardo Viel a Pilar del Río - «Pilar tens um trabalho»
Via página do Facebook da Fundação José Saramago (30/09)
"José Saramago dizia que os escritores construíam a literatura nacional e os tradutores eram os responsáveis por fazerem a literatura internacional.
Neste Dia Internacional da Tradução, a Blimunda recupera as palavras de vários tradutores da obra de José Saramago publicadas no número 37 da revista.
Conheceram-se em 1986, em Lisboa, graças aos livros. Alguns meses depois a espanhola Pilar del Río, leitora de José Saramago, transformar-se-ia em sua companheira. E passados dez anos seria
«promovida» a tradutora, o que lhe trouxe, além de muito trabalho, a possibilidade de acompanhar ainda mais de perto o processo de criação do autor de O Ano da Morte de Ricardo Reis – livro que, como costuma contar, a levou a Lisboa para conhecer os lugares do romance e o homem que o havia escrito.
Pilar del Río, jornalista, tradutora e presidenta da Fundação José Saramago, conversou com a Blimunda sobre essa difícil e bela tarefa que é a tradução. «Gosto muito de traduzir, é partilhar amores», dirá no final da entrevista que pode ser lida a seguir:
O seu primeiro contato com o idioma português foi a partir de José Saramago ou não? Lembra-se do primeiro livro que leu?
Os primeiros livros que li em português, por recomendação de José, foram Agosto, de Rubem Fonseca, e Uma Família Inglesa, de Júlio Dinis.
E o primeiro livro de Saramago?
Foi o Levantado do Chão, que na altura em que li ainda não estava traduzido para espanhol.
A primeira tradução que fez foi a de Todos os Nomes, não? Como e por que se decidiu que Pilar del Río seria a tradutora de José Saramago?
Porque Basílio Losada, que era quem o traduzia para o castelhano, anunciou na apresentação de Ensaio sobre a Cegueira que estava a ficar cego e que não voltaria a traduzir. Foi nesse momento que José me disse: «Pilar, tens um trabalho.» Antes, já havia traduzido conferências, artigos e correspondências suas.
Costumava traduzir a obra enquanto Saramago a escrevia, o que penso que não é algum muito habitual entre os tradutores. O que ganhava e o que perdia nesse processo?
Ganhava sempre. Tinha a sorte de assistir de dentro ao processo criativo. Era emocionante.
E quais eram as vantagens de ter o autor tão perto no momento de traduzi-lo?
A vantagem era essa: ter o autor ao lado. É claro, isso intimidava-me e tirava-me liberdade. Eu ouvia a voz do autor e a música do texto, e diante dessa sinfonia sentia-me pobre e pequena. Por sorte também era o suficientemente ousada para não ter um bloqueio de pânico.
E medo, nunca teve?
Sim, sempre me acompanha a sensação de não estar à altura do autor. É o drama, a tragédia dos tradutores.
Não teve nunca vontade de fazer como o revisor da História do Cerco de Lisboa e mudar o rumo de um relato?
Não! Já disse que sou ousada, mas não a este ponto. Quando José escreveu a História do Cerco de Lisboa ele estava efabulando com a liberdade do escritor e partia de uma ideia tão forte como a separação da Península Ibérica da Europa. Que um revisor ou tradutor modifique um texto até ao ponto de colocar um não onde há um sim é a situação impossível que José Saramago necessitava para escrever as suas ficções. Tive vontade, como imagino que todos os leitores têm, de dar um empurrão numa personagem, ou puxar-lhe as orelhas, gritar-lhe, mas isso é experiência de leitora, não de tradutora.
Nunca sequer sugeriu mudanças enquanto acompanhava a evolução do livro?
O melhor tradutor é o mais invisível, mas tive duas intervenções na obra de José Saramago que conto com muito orgulho. A primeira foi convencê-lo, quando escrevia Todos os Nomes, que sem luz elétrica um atendedor de chamadas não funciona. Para isso tive que demonstrar-lhe na prática, cortando a luz da casa, e assim evitei que fosse publicado um erro no romance. A outra intervenção foi na última palavra do livro A Caverna. José havia escrito «bilhete». Quando viu que, ao traduzir, eu havia colocado «entrada», ele trocou a palavra e ficou com a minha. E pronto, assim acaba minha influência na obra literária de José Saramago.
As dedicatórias, José Saramago colocava-as no final ou no começo da escrita do livro? E emocionava-se enquanto as traduzia?
Ele colocava-as ao final. E sim, sentia pudor ao traduzi-las, mas jamais lhe pedi que fosse mais ou menos discreto, sim-plesmente agradecia, com a mesma emoção que ele mas entregava. Vinha sempre até ao meu escritório, aproximava-se por trás enquanto eu traduzia o que me havia entregado antes, esperava em silêncio o meu próprio silêncio e... enfim, não digo mais. Duas pessoas diante de uma obra e uma vida compartilhadas.
Dos livros que traduziu algum foi especialmente difícil? Porquê?
Todos os Nomes foi o mais difícil, talvez por ser o primeiro e porque perdi um ficheiro com cerca de 80 páginas traduzidas e que me tinha dado muito trabalho fazer. Fiquei tão deprimida que preferi fazer uma pausa, e viajei para visitar a minha mãe. Desfrutei de uns dias a seu lado, as últimas férias que tivemos juntas. Precisei afastar-me do texto para não desistir. No regresso, decidi deixar para o final as páginas que havia perdido e continuei a tradução. E confesso que encontrei as mesmas dificuldades e dúvidas de quando me propus traduzir aquelas páginas perdidas. Não tinha aprendido nada.
Não teve vontade de traduzir os livros anteriores a Todos os Nomes? E os poemas, arriscar-se-ia?
Não, nunca quis nem quero traduzir obras já traduzidas, ainda que esteja consciente de que serão feitas outras tradu-ções, começando pelos títulos de que me ocupei. E quanto a poesia, jamais me arriscaria, o meu atrevimento tem limites. Para traduzir poesia é preciso ser poeta, acho.
É a tradutora de um só autor?
Quis traduzir o Chico Buarque, mas ainda não era o seu momento em Espanha. E agora estou com um livro do José Luís Peixoto. E sim, já traduzi outros autores e autoras. Gosto muito de traduzir, é partilhar amores.