Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

No dia Internacional da Tradução - Revista Blimunda #37 «Pilar tens um trabalho» Entrevista de Ricardo Viel a Pilar del Río

No dia Internacional da Tradução (30/09) destaque à edição #37 da Revista Blimunda, com a entrevista de Ricardo Viel a Pilar del Río - «Pilar tens um trabalho»

Via página do Facebook da Fundação José Saramago (30/09)

"José Saramago dizia que os escritores construíam a literatura nacional e os tradutores eram os responsáveis por fazerem a literatura internacional. 
Neste Dia Internacional da Tradução, a Blimunda recupera as palavras de vários tradutores da obra de José Saramago publicadas no número 37 da revista. 



Conheceram-se em 1986, em Lisboa, graças aos livros. Alguns meses depois a espanhola Pilar del Río, leitora de José Saramago, transformar-se-ia em sua companheira. E passados dez anos seria
«promovida» a tradutora, o que lhe trouxe, além de muito trabalho, a possibilidade de acompanhar ainda mais de perto o processo de criação do autor de O Ano da Morte de Ricardo Reis – livro que, como costuma contar, a levou a Lisboa para conhecer os lugares do romance e o homem que o havia escrito.
Pilar del Río, jornalista, tradutora e presidenta da Fundação José Saramago, conversou com a Blimunda sobre essa difícil e bela tarefa que é a tradução. «Gosto muito de traduzir, é partilhar amores», dirá no final da entrevista que pode ser lida a seguir:



O seu primeiro contato com o idioma português foi a partir de José Saramago ou não? Lembra-se do primeiro livro que leu?
Os primeiros livros que li em português, por recomendação de José, foram Agosto, de Rubem Fonseca, e Uma Família Inglesa, de Júlio Dinis.

E o primeiro livro de Saramago?
Foi o Levantado do Chão, que na altura em que li ainda não estava traduzido para espanhol.

A primeira tradução que fez foi a de Todos os Nomes, não? Como e por que se decidiu que Pilar del Río seria a tradutora de José Saramago?
Porque Basílio Losada, que era quem o traduzia para o castelhano, anunciou na apresentação de Ensaio sobre a Cegueira que estava a ficar cego e que não voltaria a traduzir. Foi nesse momento que José me disse: «Pilar, tens um trabalho.» Antes, já havia traduzido conferências, artigos e correspondências suas.

Costumava traduzir a obra enquanto Saramago a escrevia, o que penso que não é algum muito habitual entre os tradutores. O que ganhava e o que perdia nesse processo?
Ganhava sempre. Tinha a sorte de assistir de dentro ao processo criativo. Era emocionante.

E quais eram as vantagens de ter o autor tão perto no momento de traduzi-lo?
A vantagem era essa: ter o autor ao lado. É claro, isso intimidava-me e tirava-me liberdade. Eu ouvia a voz do autor e a música do texto, e diante dessa sinfonia sentia-me pobre e pequena. Por sorte também era o suficientemente ousada para não ter um bloqueio de pânico.



E medo, nunca teve?
Sim, sempre me acompanha a sensação de não estar à altura do autor. É o drama, a tragédia dos tradutores.

Não teve nunca vontade de fazer como o revisor da História do Cerco de Lisboa e mudar o rumo de um relato?
Não! Já disse que sou ousada, mas não a este ponto. Quando José escreveu a  História do Cerco de Lisboa ele estava efabulando com a liberdade do escritor e partia de uma ideia tão forte como a separação da Península Ibérica da Europa. Que um revisor ou tradutor modifique um texto até ao ponto de colocar um não onde há um sim é a situação impossível que  José Saramago necessitava para escrever as suas ficções. Tive vontade, como imagino que todos os leitores têm, de dar um empurrão numa personagem, ou puxar-lhe as orelhas, gritar-lhe, mas isso é experiência de leitora, não de tradutora.

Nunca sequer sugeriu mudanças enquanto acompanhava a evolução do livro?
O melhor tradutor é o mais invisível, mas tive duas intervenções na obra de José Saramago que conto com muito orgulho. A primeira foi convencê-lo, quando escrevia Todos os Nomes, que sem luz elétrica um atendedor de chamadas não funciona. Para isso tive que demonstrar-lhe na prática, cortando a luz da casa, e assim evitei que fosse publicado um erro no romance. A outra intervenção foi na última palavra do livro A Caverna. José havia escrito «bilhete». Quando viu que, ao traduzir, eu havia colocado «entrada», ele trocou a palavra e ficou com a minha. E pronto, assim acaba minha influência na obra literária de José Saramago.


As dedicatórias, José Saramago colocava-as no final ou no começo da escrita do livro? E emocionava-se enquanto as traduzia?
Ele colocava-as ao final. E sim, sentia pudor ao traduzi-las, mas jamais lhe pedi que fosse mais ou menos discreto, sim-plesmente agradecia, com a mesma emoção que ele mas entregava. Vinha sempre até ao meu escritório, aproximava-se por trás enquanto eu traduzia o que me havia entregado antes, esperava em silêncio o meu próprio silêncio e... enfim, não digo mais. Duas pessoas diante de uma obra e uma vida compartilhadas.

Dos livros que traduziu algum foi especialmente difícil? Porquê?
Todos os Nomes foi o mais difícil, talvez por ser o primeiro e porque perdi um ficheiro com cerca de 80 páginas traduzidas e que me tinha dado muito trabalho fazer. Fiquei tão deprimida que preferi fazer uma pausa, e viajei para visitar a minha mãe. Desfrutei de uns dias a seu lado, as últimas férias que tivemos juntas. Precisei afastar-me do texto para não desistir. No regresso, decidi deixar para o final as páginas que havia perdido e continuei a tradução. E confesso que encontrei as mesmas dificuldades e dúvidas de quando me propus traduzir aquelas páginas perdidas. Não tinha aprendido nada.

Não teve vontade de traduzir os livros anteriores a Todos os Nomes? E os poemas, arriscar-se-ia?
Não, nunca quis nem quero traduzir obras já traduzidas, ainda que esteja consciente de que serão feitas outras tradu-ções, começando pelos títulos de que me ocupei. E quanto a poesia, jamais me arriscaria, o meu atrevimento tem limites. Para traduzir poesia é preciso ser poeta, acho.

É a tradutora de um só autor?
Quis traduzir o Chico Buarque, mas ainda não era o seu momento em Espanha. E agora estou com um livro do José Luís Peixoto. E sim, já traduzi outros autores e autoras. Gosto muito de traduzir, é partilhar amores.


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