Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 31 de janeiro de 2016

A forma como José Saramago descobre Ricardo Reis - Cadernos de Lanzarote Diário III (11/01/1995)

"Ricardo Reisin Viimeinen Vuosi" - Tammi, Finlandia
A editora Tammi continua a apostar nas reedições dos romances de José Saramago, 
apresentando novos arranjos gráficos de grande qualidade e sensibilidade.
Acaba de dar à estampa a nova edição de "O Ano da Morte de Ricardo Reis", 
com um trabalho gráfico de Markko Taina e fotografia de Pertti Nisonen.


11 de Janeiro (1995)
"Carlos Câmara Leme, do Público, pediu-me, a propósito da próxima publicação duma edição crítica dos poemas de Ricardo Reis, umas palavras que recordassem as circunstâncias em que os li pela primeira vez. 
Escrevi o que segue: 
«Não era risonha, e de certeza não era franca completamente. Refiro-me à escola. Chamava-se de Afonso Domingues vizinha do lado da Igreja da Madre de Deus, paredes meias com o Asilo de Maria Pia, que era onde se corrigiam os rapazes maus daquele tempo. A escola era industrial, mas está claro que não preparava industriais: preparava gente para as oficinas. Também, havendo na família suficientes teres e cumpridos os necessários exames de admissão aos escalões seguintes - Instituto Industrial e Instituto Superior Técnico -, podia-se chegar a agente técnico ou a engenheiro. A maior parte tinha de contentar-se com os cinco anos do curso (que podia ser de serralharia mecânica, serralharia civil ou carpintaria) e ia à vida. Levava umas luzes gerais de matemática e de mecânica, de desenho de máquinas, de física e química, de francês, de ciências da natureza, o suficiente de português para escrever sem erros - e literatura. Sim, nos remotíssimos anos 30 aprendia-se literatura portuguesa no ensino industrial. Ora, quem diz literatura, diz biblioteca: a Afonso Domingues tinha uma biblioteca, um lugar escuro, misterioso, com altas estantes envidraçadas e muitos livros lá dentro. Nisto de livros, os meus amores (estava na idade, andava pelos 16, 17 anos) iam sobretudo para a Biblioteca Municipal do Palácio das Galveias, no Campo Pequeno, mas foi em Xabregas, na Escola de Afonso Domingues, que começou a escrever-se O Ano da Morte de Ricardo Reis. Um dia, numa das minhas incursões à biblioteca da escola (estava a chegar ao fim do curso) encontrei um livro encadernado que tinha dentro, não um livro como se espera que um livro seja, mas uma revista. Chamava-se Athena, e foi para mim como outro sol que tivesse nascido. Talvez alguma vez seja capaz de descrever esses momentos. O que certamente não conseguirei explicar é a razão por que me abalaram tão profundamente as odes de Ricardo Reis ali publicadas, em particular as que começam por Seguro assento na coluna firme / Dos versos em que fico, ou Ponho na altiva mente o fixo esforço, ou Melhor destino que o de conhecer-se / Não frui quem mente frui. Nesse momento (ignorante que eu era) acreditei que realmente existia ou existira em Portugal um poeta que se chamava Ricardo Reis, autor daqueles poemas que ao mesmo tempo me fascinavam e assustavam. Mas foi anos mais tarde, poucos, no princípio dos anos 40, quando Adolfo Casais Monteiro publicou uma antologia de Pessoa (então já eu sabia isso dos heterónimos), que uns quantos versos de Ricardo Reis se me impuseram como uma divisa, um ponto de honra, uma regra imperativa que iria ser meu dever, para todo o sempre, cumprir e acatar. Eram eles estes:

Para ser grande, sê inteiro: nada 
Teu exagera ou exclui. 
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és 
No mínimo que fazes. 
Assim em cada lago a lua toda 
Brilha, porque alta vive. 

Durou uns anos. Fiz o que pude para não ficar atrás do que se me ordenava. Depois compreendi que não podiam chegar-me as forças a tanto, que só raros deveriam ser capazes de ser tudo em cada coisa. O próprio Pessoa, que foi grande mesmo, ainda que de outra forma de grandeza, nunca foi inteiro... Logo... Não tive outro remédio que tornar-me humano.»" 
in, "Cadernos de Lanzarote Diário III"
Caminho, páginas 16 a 18 (11 de Janeiro de 1995)