As duas partes podem ser lidas e consultadas, nestes dois links, em
http://blogdaboitempo.com.br/2011/04/13/boitempo-entrevista-jose-saramago-parte-1/
http://blogdaboitempo.com.br/2011/04/20/boitempo-entrevista-jose-saramago-parte-2/
"Inaugurando nossa seção de entrevistas,
publicaremos a conversa entre o escritor português José Saramago e nossa editora,
Ivana Jinkings, realizada em 1992 e publicada na Margem Esquerda nº15 (2010)."
Em 1992, com viagem marcada para Portugal, recebi dos editores do extinto jornal Brasil Agora, com o qual eu colaborava à época, a sugestão de entrevistar José Saramago. Tentada com a proposta, solicitei a um amigo, Benjamin Abdala, o telefone de Severino Coelho, o editor da Caminho, casa publicadora do autor em Lisboa. Telefonei para ele da Espanha, onde estive antes de ir a Portugal. Severino deu-me o número de Saramago, mas alertou que o escritor havia se retirado por uns dias para descansar, sem jornalistas por perto. Assim mesmo resolvi arriscar, e passei a ligar quase diariamente para meu “alvo”. Do outro lado da linha a resposta era sempre a mesma: a voz impessoal de uma secretária eletrônica informava que o escritor não podia atender no momento. Deixei inúmeros recados, explicando quem era, o que queria e dizendo que voltaria a telefonar.
Já em Lisboa, em pleno 25 de abril, fui como todos às ruas comemorar o aniversário da Revolução dos Cravos, mas também – e principalmente – procurar Saramago. Ele era esperado no Largo do Rocio e para lá me dirigi. Máquina fotográfica em punho, perguntava a todos que pareciam ter alguma liderança onde estaria o escritor. Uns diziam que na ala dos intelectuais, e pra lá eu me dirigia; desta sugeriam que ele estivesse com os comunistas do Porto, dali me indicavam outra ala, e assim eu caminhava de um lado a outro da imensa passeata. Passou a ser um “acontecimento”: por onde andava pessoas vinham me dar uma notícia, uma sugestão, chamar alguém que conhecia Saramago ou que conhecia “um amigo do amigo” dele, e assim por diante. Era identificada pelos manifestantes como a brasileira que buscava desesperadamente o seu mais famoso escritor.
Já quase desistia quando fui chamada por um rapaz, que me levou até um homem alto, bem vestido, com cerca de 50 anos – lamentei depois jamais ter sabido quem era –, o qual perguntou o que exatamente eu queria com Saramago. Falei da entrevista e do jornal, mencionei ser filha de comunistas e ligada ao Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Ao final, convencido, disse com segurança: ligue para ele amanhã, às 15h.
Agradeci e fui embora com alguma esperança – mas não muita, porque já havia telefonado infinitas vezes sem sucesso. Assim mesmo fiz o que ele disse: no dia seguinte, à hora marcada, disquei. Novamente atendeu a fatídica secretária eletrônica, na qual comecei a deixar o meu já desanimado recado até ser interrompida pela voz de Saramago, que comentou, rindo, sobre minha perseverança. Marcamos um encontro para a tarde seguinte.
A segunda etapa do meu périplo seria conseguir um gravador. Talvez porque no fundo não estivesse muito confiante no método improvisado de agendamento, havia saído do Brasil sem levar o meu. Foi um amigo português, trotskista ligado à Quarta Internacional, quem conseguiu um: enorme, imitava uma maleta com alças e devia pesar cerca de três quilos. Assim paramentada fui à casa em que Saramago morava, já com Pilar del Río, no bairro lisboeta da Estrela. À época estudante de Letras na USP, tendo lido todos os livros até então escritos por ele, parecia um sonho estar diante daquele homem alto, tranquilo, que aos meus olhos pairava um pouco acima do chão. Apesar do nervosismo inicial a conversa decorreu com tranquilidade, simpatia. Saramago não se furtou a nenhuma resposta, fosse sobre seu mais recente lançamento – O Evangelho segundo Jesus Cristo –, fosse sobre Cuba ou as relações com Portugal. Ao final da entrevista, Pilar se aproximou e fomos os três tomar café. Conversamos um pouco sobre o Brasil e, em seguida, eu me despedi. Tão enlevada estava que deixei na mesa aquele imenso e desajeitado gravador. Me dei conta chegando à casa onde estava hospedada. Liguei para Saramago, que atendeu rindo muito, e no dia seguinte retirei a ‘maleta’.
Nos vimos ainda duas vezes, a primeira delas aqui no Brasil, quando lhe entreguei os dois números do jornal em que fora publicada a entrevista.
Aos 70 anos, José Saramago estava em sua plenitude como escritor. Mestre maior da literatura portuguesa contemporânea, já era àquela altura o romancista lusitano mais traduzido no mundo. Nascido em 1922, em Azinhaga, o autor de Memorial do convento, Jangada de pedra, Levantado do chão, Ensaio sobre a cegueira e muitos outros recebeu em 1998 o prêmio Nobel de Literatura. Comunista e ateu convicto, não parecia surpreendido com as reações (em particular da Igreja Católica) ao seu O Evangelho segundo Jesus Cristo, que, entre outras “heresias”, descreve Maria com uma barriga de nove meses e faz de Deus o vilão da história. A polêmica criada em torno do livro culminara, em 1992, na exclusão do romance da lista de candidatos ao Prêmio Literário Europeu.
E foi nesse contexto que Saramago concedeu a seguinte entrevista, na qual falou de seu último livro e dos anteriores. Falou também das suas convicções políticas, do ingresso de Portugal na Comunidade Econômica Europeia e das raízes comuns e trajetórias diferentes de nossas línguas portuguesas em quatro continentes. No ano da morte de Saramago, a melhor homenagem que poderíamos prestar a esse marxista libertário, que se autodenominava um comunista hormonal, é dar-lhe a palavra. – Ivana Jinkings
Por que razão um escritor comunista e ateu escreveu um evangelho?
Bem, eu não escrevi um evangelho. O livro chama-se assim, mas não é uma outra vida de Cristo, que possa colocar-se ao lado dos evangelhos propriamente ditos. Mas tendo ele nascido com esse título, e eu penso que não há nenhum mal nisso, o livro chama-se O Evangelho segundo Jesus Cristo e esse é um título como outro qualquer. Quanto ao fato de um escritor comunista tratar de um tema desses, a verdade é que, apesar de comunista, vivo num mundo e numa cultura que foi toda ela formada e conformada com o cristianismo. De certa maneira, pode-se dizer que todos nós somos cristãos.
O senhor seria, então, um comunista cristão?
No plano da mentalidade todos nós somos cristãos, vivemos dentro de uma civilização judaico-cristã que foi formada com um tipo de ética, uma rede ideológica que tem sua origem no cristianismo. Portanto, é perfeitamente natural que qualquer cidadão, seja ele comunista, socialista, liberal ou seja lá o que for, em determinado momento de sua vida, venha a interessar-se por esse aspecto da realidade. Alguns representantes da Igreja Católica têm dito que, pelo fato de eu ser ateu, marxista e comunista, não teria o direito de escrever um livro desse. E eu suponho que tenho todos os direitos do mundo de escrever sobre tudo aquilo que eu entender.
Mas o senhor estava preparado para todas essas críticas? Porque, apesar de ser uma quase unanimidade enquanto obra literária, seu livro incomodou crentes (com a figura de Maria grávida, por exemplo), ateus (pela própria escolha do tema) e até alguns comunistas, que prefeririam ver um Jesus mais socialista, mais parecido com o Jesus da Teologia da Libertação.
É verdade. Mas eu acho que há muita ingenuidade aí. Isso que nós chamamos de Deus e de Diabo são coisas que transportamos dentro de nossas cabeças. Há quem, por toda essa questão da Teologia da Libertação, gostaria de encontrar no livro um Jesus ao lado dos oprimidos, lutando pelos explorados. Eu creio que isso é pôr as coisas desejáveis no lugar das realidades. Quando eu trato Jesus como um homem que é empurrado por Deus para um certo destino, isso no fundo é uma maneira de desmistificar toda essa ideia que nós fazemos de um Deus criador, um Deus autoritário, um Deus pai, um Deus que governa. E mostro como, no exagero, isso pode levar a situações absurdas, como criar -se ou inventar-se uma religião que está toda ela assente no sofrimento, na renúncia, nas lágrimas, no sangue e em tudo aquilo que é negativo. Em vez de se levar para o homem o caminho da felicidade, da solidariedade, submete-se constantemente o homem ao que se pode e ao que não se pode fazer, à punição, ao tribunal, ao juiz. Além daquilo que temos dentro de nós, que é nossa consciência, inventou-se uma espécie de supraconsciência, que julga todos os nossos atos e nos espera para o tribunal não sei quando e para nos condenar, pelo visto em alguns casos, por toda a eternidade. Isso é de um absurdo tal que para demonstrar esse ponto de vista aos meus leitores construo essa história que é a relação de Deus com um homem escolhido para ser sua vítima, com uma outra figura que é o Diabo, que está ali para nos dizer o que é que tem de factual. Agora, penso que são reações um pouco elementares dizerem os ateus que, se o autor é ateu, não devia falar de Deus, ou os crentes que dizem: “Já que ele falou de Cristo, então que falasse de uma maneira que fosse favorável”.
Mas independentemente da posição do clero, o senhor acha que alguns leitores, crentes, podem ter se sentido ofendidos?
Sim, sobre isso não tenho dúvidas. Já sabia desde antes, quando estava escrevendo o livro, que ele iria chocar e ofender muita gente.
Sua intenção era então dar uma “sacudida” mesmo nesse tipo de leitor?
Não, não, longe de mim ter a intenção de chocar ou ofender. É a própria história contada que inevitavelmente teria de chocar e ofender crentes, mas sem que isso signifique que o autor teve essa intenção. Se falarmos de ofensa – e penso que agora que estamos a comemorar os descobrimentos –, é bom lembrar que, quando as caravelas espanholas e portuguesas iam encontrar ou descobrir outros povos, povos que tinham suas religiões, suas crenças, acontecia sempre isto: em cada caravela ia um frade, que a primeira coisa que fazia quando encontrava essa gente era dizer-lhes que “Vosso Deus é falso e eu trago-lhes aqui o Deus verdadeiro”. Isso é também uma ofensa, ninguém tem o direito de chegar ao pé de outra pessoa e dizer-lhe que o seu Deus é falso. Em nome de quê? De que verdade? Portanto, se vamos falar de ofensas, eu diria que a Igreja Católica, em muitos atos de sua vida e de sua atividade, não fez mais do que ofender os outros. E se os crentes, os católicos, se sentem ofendidos agora, o que é que eu posso fazer?
Como todo bom comunista, o senhor simpatiza com o oprimido e antipatiza claramente com o opressor. A parcialidade do autor fica muito evidente no livro.
É claro… [risos] Eu espero que fique mesmo. Em toda essa história, se há um vilão, esse vilão é Deus, e se há uma vítima, uma pobre vítima que é empurrada por Deus para o lugar do sacrifício, essa vítima é Jesus, que para mim é um homem como qualquer de nós, como Maria, Maria Madalena e José. Todos somos homens e todos somos mulheres. Acontece que inventamos deuses, vivemos sob o temor dos deuses e depois tentamos criar um deus que não seja temor, mas que seja amor… E andamos nesse vaivém, sem saber realmente que pessoas somos, não é? Mas como não sou filósofo, não sou mais que um romancista, essas reflexões eu faço pela única via em que posso ter alguma competência, alguma autoridade, algum saber, que é, enfim, o romance.
O senhor acha que se tivesse escrito esse livro anos atrás, no tempo da Inquisição, por exemplo, seu destino poderia ser o mesmo que o de Baltasar Sete-Sóis (personagem de Memorial do Convento que é jogado à fogueira)?
Pois sim, isso aconteceria com toda certeza. Mas as coisas não estão assim tão diferentes. Não quero dizer que cheguem à execração pública, à queima do livro ou à queima do autor, enfim, a isso não chegaremos, mas já que se fala tanto de direitos humanos espero que pelo menos uma parte do respeito aos direitos humanos me abranja. Mas a verdade é que a exclusão de O Evangelho da lista de candidatos ao Prêmio Literário Europeu [concedido anualmente pela CEE, Comunidade Econômica Europeia, para o qual são designados candidatos dos doze países que a compõem] foi um ato discricionário, um veto político e administrativo que no fundo não fica muito aquém das fogueiras.
A exclusão foi feita pelo secretário de Estado da Cultura, sr. Souza Lara, não? O que ele alegou para vetar o livro?
Ele simplesmente afirma que esse livro não representa Portugal. Mas eu não sei de nenhum detalhe, fiquei sabendo de tudo pelos jornais, como todo o resto das pessoas.
Foi-se a Inquisição e agora importam o fundamentalismo…
Exato, pois se é verdade que não estamos ateando fogo ao livro ou ao José Samarago, a verdade é que esse ato é um ato inquisitorial, completamente inaceitável.
Mudando de assunto e de livro, a escolha de um heterônimo de Fernando Pessoa como personagem em O ano da morte de Ricardo Reis é uma homenagem ao mestre?
Não, não é uma homenagem, eu não escreveria, com certeza, um livro movido por esse tipo de sentimento. O Fernando Pessoa é o grande poeta que nós todos conhecemos, mas não, não foi nada como uma homenagem.
O senhor não acha, como grande parte dos intelectuais de esquerda, que Pessoa era reacionário?
Não, essas coisas são importantes, de fato, no nosso dia a dia, mas depois o tempo passa e isso tudo tem de ser visto e encontrado à luz dos acontecimentos subsequentes, à luz da história e do próprio processo de críticas. Portanto, não vale a pena dizer se Fernando Pessoa é ou não reacionário, a ideia do meu livro não tem, de fato, o que ver com isso. De resto, o livro nasceu de uma ideia súbita, não sou pessoa de programar muito meus livros.
E por que Ricardo Reis e não Alberto Caeiro, por exemplo?
O caso de Ricardo Reis é uma ideia que me veio de repente, eu nem andava a pensar em Pessoa. E se é Ricardo Reis e não outro, foi, digamos, por uma relação que vem desde a adolescência, uma relação muito particular, muito especial com esse heterônimo, desde que li algumas de suas odes e lembro de ter ficado deslumbrado com a beleza formal e com alguns conceitos. Mas ao mesmo tempo havia qualquer coisa que me irritava um pouco em Ricardo Reis.
Uma certa indiferença, talvez?
É tudo aquilo que ele veio a condensar naquela ode que começa com “Sábio é o homem que se contenta com o espetáculo do mundo…”. De maneira que havia essa espécie de contradição. Digamos da contradição no caso dele, mas também de contradição minha, porque, se por um lado me interessava muito aquela poesia, por outro me irritava seu autor.
E por isso o senhor resolveu matá-lo…
Exatamente. Digamos que O ano da morte não resolve nenhuma dessas contradições, mas é o lugar onde eu pretendi, para além do mais que o livro tenha – e tem mais coisas –, dizer ao Ricardo Reis: “Sábio é o homem que se contenta com o espetáculo do mundo? Se tu achas isso, aqui tens o espetáculo do mundo que é o ano da tua morte, o ano de 1936”.
Todo mundo sabe que o senhor nunca teve simpatia pelo ingresso de Portugal na Comunidade Econômica Europeia. Aquela coisa meio fantástica do afastamento da Península Ibérica do resto da Europa, em Jangada de pedra, mostra no fundo a vontade de que isso acontecesse de verdade? Portugal e Espanha perdem muito de sua identidade com a integração?
Isso que nós chamamos de identidade nacional é uma coisa que ao mesmo tempo varia e se mantém. É evidente que um processo como esse que está a correr com a integração europeia vai ter consequências a curto prazo muitíssimo fortes, nisso da identidade nacional e em outros planos – no político, a soberania nacional. E na minha opinião a Europa não passa de um conselho administrativo governado pelos países mais fortes. E o resto é retórica. No fundo mantêm-se as relações de poder no seu interior.
Porque, apesar de formalmente organizada de uma outra forma, a Europa repete hoje esquemas anteriores, mantém todo o aparato militar da OTAN…
E não só o militar. Os pequenos países vão continuar, e serão sempre cada vez mais, subordinados a uma lógica centralista, de centralização de poder econômico, financeiro, militar, e que vai ser orientado como no caso das grandes empresas, em que os pequenos acionistas não estão lá para dizer outra coisa a não ser “sim”. Resistem naquilo que podem, mas acabam sempre por fazer o que os mais fortes mandam. Mas aquilo que o Jangada de pedra tenta mostrar não é tanto a separação da Europa. É certo que o livro é, e isso eu confirmo, o testemunho de um acontecimento histórico. A Europa não nos legou importância ao longo desses séculos e é como se nós disséssemos: “Bem, vocês não nos legaram importância, então nós vamos embora para outro lugar”. Mas isso é uma leitura óbvia demais e a questão que está aí é outra e tem que ser vista à luz exatamente do lugar onde a Península Ibérica, depois de fazer aquela viagem toda, vai se fixar, que é entre a África e a América do Sul. Portanto, o objetivo é mostrar que nós, os peninsulados, temos raízes, temos laços culturais e linguísticos justamente nessa região. Então digamos que fazer da Península Ibérica uma jangada nessa direção seria a proposta que o autor faz nesse livro, que é renovar o diálogo com esses povos irmãos. Mas sem qualquer intuito de neocolonialismo. Se o entendimento que algumas pessoas fazem é esse, é um perfeito disparate e não há nada no livro que fundamente essa interpretação. É, pelo contrário, um diálogo entre iguais, entre gente que se conhece, e nas coisas que são comuns. E, do ponto de vista cultural e linguístico, sabemos de tudo aquilo que nasceu ali, pelo bem e pelo mal (sei que levamos coisas boas, coisas más, coisas terríveis). Enfim, levar um povo a outro povo coisas boas e coisas más, coisas terríveis e coisas magníficas é da história dos homens, porque os homens é que são terríveis e são magníficos. E, portanto, é inevitável o sofrimento, o sangue, o genocídio, porque o homem não é bom, pronto! Houve um crítico espanhol que disse certa vez uma coisa inteligente. Que ler esse livro como apenas que a Península Ibérica separou-se da Europa é muito pouco. Que o livro deve ser entendido como se a Península Ibérica fosse uma espécie de rebocador, que tenta arrastar a Europa para o sul, tirá-la para um diálogo novo, uma compreensão nova e, de certa maneira, uma descoberta nova, dos povos que têm sido, enfim, dominados, explorados. E não vale a pena guardar ilusões, não foram, ou melhor, não são os colonizadores portugueses e espanhóis que dominam a América Latina hoje. Portanto, não vale a pena atirarem pedras nos nossos antepassados dos séculos XVI, XVII, XVIII e mesmo do século XIX.
Eu fiquei com a impressão, aqui em Portugal, que, para além da simpatia com que as pessoas tratam os brasileiros, existe um sentimento quase paternal. Assim meio como quem se sente culpado por ter colonizado.
Pois é, existe esse sentimento sim. Mas vou te dizer que eu acho isso péssimo. Porque é reconhecer uma culpa que não temos. E a gente não pode andar a carregar culpas que não são nossas. O diálogo é entre vivos e não entre mortos e mortos. Eu verifico que isso acontece muito, que é uma espécie de má consciência que faz com que nós andemos como que a pedir desculpas.
E há culpas mais recentes?
Sim, é possível até que tenhamos que pedir desculpas, mas das nossas culpas de hoje e não das culpas do século XVI, essas não têm remédio. Não temos de carregar nas costas as culpas de nossos pais e avós.
As pessoas costumam apontar Jangada de pedra e Levantado do chão como seus livros mais políticos. O senhor concorda com isso?
É possível que sejam, sim. Digamos que o Jangada de pedra tenha uma leitura imediata, que é uma leitura política. Não é por acaso que o autor decide tirar a Península Ibérica de onde ela está e levá-la para outro lado. Portanto, é um livro que nesse aspecto tem uma leitura política mais imediata. O Levantado do chão também, pelo próprio tema, em que é perfeitamente explícita a relação do senhor e do servo, de explorador e explorado. Mas eu creio que de todos os meus livros se pode fazer uma leitura política, ainda que não seja esse o objetivo de nenhum deles. E que, sendo eu um homem política e ideologicamente muito definido, seria impossível que as minhas ideias ou as minhas preocupações não passassem para aquilo que eu faço, mesmo que o tema não seja obviamente político.
O senhor se sente muito pressionado por essa definição ideológica? É difícil fugir da propaganda fácil, do realismo socialista?
Não, no plano estético o meu comportamento de escritor não se subordinou nunca a preceitos, a regras de escola. Diz-se, por exemplo, que o tema de Levantado do chão faz dele um livro próximo do chamado realismo socialista, mas a verdade também é que o tratamento do tema não tem nada a ver com isso.
Ele é o único dos seus livros que se aproxima do realismo socialista, não é?
Sim, se há algum, é só esse. Quanto à outra pergunta, nunca confundi minha postura ideológica com qualquer obrigação de escrever de acordo com um modelo, com uma regra. Não aceito nem os dez mandamentos da Igreja Católica nem os dez mandamentos, se os houvesse, que me viessem do Partido. Eu não conheço no meu partido – que eu respeito, e se não o respeitasse eu não estaria lá – qualquer autoridade, qualquer competência no domínio literário ou estético. Não reconheço, ainda que isso possa insultar alguns dos meus companheiros, dos meus camaradas.
Quem são os contemporâneos brasileiros que tem lido, os que gosta mais?
Não ando muito a par do que se tem feito ultimamente, mas gosto de muitos escritores brasileiros. Gosta-se mais de uns por uma coisa, gosta-se mais de outros por outra coisa, enfim, agora mesmo acabei de ler o Romance negro, do Rubem Fonseca, e achei alguns contos magníficos. Posso também falar da Lygia Fagundes Telles, do Ignácio de Loyola, da Nélida Piñon. Li recentemente o Estorvo, do Chico Buarque, achei-o muito bem escrito, de uma invenção notável.
E entre os seus, existe um preferido?
Não sei, é difícil dizer. Eu tenho um fraco pelo Ano da morte. Não sei por que razão; se me perguntarem, não sou capaz de dizer. Mas também é verdade que tenho uma ligação muito forte com o História do cerco de Lisboa e, enfim, com este último [O Evangelho segundo Jesus Cristo] também.
O personagem central do História do cerco de Lisboa é um revisor que comete um terrível erro. Alguma vingança pessoal?
Não, não [risos], até que não. Eu tenho uma revisora magnífica, que nunca me fez uma maldade dessas e, portanto, não tenho qualquer razão de queixa. Pelo contrário, nesse caso o revisor é elemento positivo porque sendo o revisor por definição o conservador do texto; este, ao contrário, é subversível, altera o texto e, portanto, altera tudo quanto vem depois, a história de Portugal.
Com essa crise toda do Leste, com a queda do chamado socialismo real, como anda sua convicção de comunista?
A minha convicção se mantém inalterável. Estamos diante de um desastre, que alguns de nós não vimos a tempo, não compreendemos a tempo e, sobretudo, não criticamos a tempo. Mas disso tudo penso ter tirado algumas conclusões; e uma delas, a conclusão central, aquela que do meu ponto de vista é a mais importante, é que não é possível construir o socialismo sem uma mentalidade socialista. E hoje está aí, diante dos olhos: olhamos para os antigos países socialistas e verificamos que do ponto de vista cívico, do ponto de vista moral, da ética, da convivência dos cidadãos uns com os outros, o socialismo não modificou em nada a mentalidade das pessoas, não as orientou.
Mas também não é verdade que, para haver uma mentalidade socialista, é preciso que existam condições objetivas, uma vivência socialista?
Sim, é certo. Sem as condições materiais, de educação, que levarão à criação da mentalidade socialista. Mas se nós colocarmos a situação dessa maneira, encontraremo-nos num problema sem solução. Se dizemos que, por um lado, não é possível construir o socialismo sem uma mentalidade socialista e, por outro lado, dizemos que para que exista uma mentalidade socialista é preciso o socialismo, então ficamos paralisados como um burro entre dois fardos de palha, um burro com fome que fica paralisado porque não sabe se há de comer do fardo de palha desse lado ou do fardo de palha do outro lado. Na minha opinião, é preciso que isso a que eu chamo de mentalidade socialista preexista. Houve um tempo em que nós pensávamos que essa capacidade de apreensão dos fenômenos do mundo, da sociedade, nos levaria a nossa mentalidade. Nós colocávamos tudo isso na classe operária, mas hoje penso que deve haver uma reflexão mais abrangente.
Dos partidos comunistas?
Mas sem converter os PC sem outra coisa. Um PC é um PC e, se não é isso, deixa de ser isso, passa a ser outra coisa, como no caso da Itália, em que não se sabe o que é aquilo em que se transformou o PCI. O que eu acho é que a criação de uma mentalidade socialista é de fato indispensável para que não se repitam os erros, as falhas, os crimes, os desastres que nós tivemos de assistir ao longo desses setenta anos. Tudo por uma posição demasiado idealista – provavelmente é –, mas a verdade é que, se não existir essa mentalidade, nunca teremos o socialismo.
Existe algum movimento de intelectuais portugueses de solidariedade a Cuba?
Não. Cuba, neste momento, não se fala dela. São pouquíssimas as pessoas que se interessam por Cuba, são raríssimas as que saemem sua defesa. Nofundo é assim: quando as revoluções estão no auge os intelectuais aderem muito, juntam-se muito. Aqui, nos anos da Revolução – e até antes dela, nos tempos do fascismo –, Cuba para os intelectuais era uma espécie de farol. Agora já toda a gente se cansou e, no fundo, julgo que estão todos à espera da sua liquidação.
Mas o senhor não acha que neste momento é vital o apoio a Cuba, independentemente até de qualquer crítica que possa ser feita ao governo de Fidel? O que está em jogo não é a dignidade do socialismo?
Sim, sem dúvida. Romper o cerco internacional que se está a fazer a Cuba é inadiável. Há uma hipocrisia mundial no que se refere a Cuba que é de fato vergonhosa, mas pelo menos aqui não há maneira de romper. Mas é evidente, alguma coisa precisa ser feita, e logo.
Em quase toda a sua obra é possível encontrar uma referência, uma opinião sobre a Igreja e o poder da Igreja. Por que isso, se o senhor é declaradamente ateu?
Essa preocupação com a Igreja como instituição de poder sempre esteve presente em mim, mesmo sendo eu, como de fato sou, ateu. O fato é que a Igreja nos governa muito mais do que aquilo que imaginamos no nosso dia a dia. Então, digamos que tudo aquilo que era tratado de uma maneira avulsa nos meus livros anteriores veio encontrar-se em O Evangelho segundo Jesus Cristo de uma forma mais radical, e o tema central é também o mais radical. Mas não porque eu tivesse a intenção antes de escrever o livro. Ele nasceu de uma ideia súbita, em maio de 1987, que podia não ter sequência, mas que foi pouco a pouco sendo elaborada.
Jesus é retratado como um ser oprimido e, em contrapartida, o Deus de O Evangelho é um Deus excessivamente autoritário…
Eu não acho que ele seja excessivamente autoritário. Quando certos teólogos escrevem artigos nos jornais – também eles muitas vezes ofensivos e insultuosos –, um dos argumentos é o de que Deus não é isso. Bem, independentemente da pergunta que eu inevitavelmente faço sobre o que é realmente Deus para essas pessoas ou que Deus é esse de quem as pessoas julgam poder falar, há uma questão que nos separa. O Deus de que eu trato no livro é o Deus do Velho Testamento, e o Deus do Velho Testamento em si mesmo é autoritário, é rancoroso, é vingativo. Basta ler a Bíblia com atenção suficiente para saber que o Deus dos judeus, o Deus do Velho Testamento, é o mesmo de quem eu falo.
Deus, no livro, representa o poder autoritário?
Sim, mesmo que Ele não represente a opressão, porque pode não ter sido sempre opressor, ele representa, insofismavelmente, o poder. E um poder discricionário. Um poder que, sendo divino, é absoluto. Olha, quando as pessoas dizem hoje que Deus não é aquilo de que eu falo, esquecem que o que aconteceu a Deus ao longo desses dois mil anos é que Ele foi se transformando para se parecer com Jesus. Quer dizer, não há nenhuma semelhança entre a ideia de Deus no ano de 1992 e a ideia de Deus que tinham Jesus e seus contemporâneos. Então, tudo quanto se expressou em toda a mudança, a transformação lenta desse para o Deus do perdão e do amor, no fundo é para fazer parecer o Pai ao Filho. E eu não tenho nem que provar a existência de Deus nem a sua inexistência.
Então por que o senhor precisou do elemento divino? O livro mostra todo um lado em que Jesus parece mais humano e, no entanto…
Mas é que surge aí uma questão que do meu ponto de vista é central. Jeová é o Rei dos judeus, apenas. É o criador do universo, mas é um criador um pouco estranho, porque escolheu para seu povo apenas aquele, os judeus. E na minha ficção o que acontece é isto: Deus está cansado de pagar aqui todo um olhar irônico, para não dizer sarcástico, sobre todas essas coisas, está cansado de ser apenas o Deus de um povo e quer ser um Deus universal, católico, e, para isso, como bom político que é…
Ele era um bom político, mesmo sendo autoritário?
O que eu quero dizer é que, tendo conservado sua relação com o povo judeu, por outro lado esse mesmo Deus – supondo que estamos a falar de qualquer coisa real – conseguiu efetivamente (não direi tornar-se católico, porque o catolicismo também não cobre todo o mundo) alargar aquilo que nós costumamos chamar de sua “área de influência”, que estava limitada a Israel, à Palestina, e que evidentemente hoje cobre uma grande parte do mundo. E, portanto, é esse o sentido crítico de uma operação política que leva a encontrar uma vítima, a encontrar um mártir, para poder sobre o sangue, sobre a vida dessa vítima, construir o edifício de poder que é a Igreja Católica. Agora, é claro que os católicos não gostam disso, eu já sei. A Igreja, quer aqui, quer no Brasil, não escuta nada, é incapaz de pensar nas coisas sem insultar. Mas, enfim, eu já esperava por isso.
Na edição brasileira do livro está escrito que “A pedido do autor mantém-se a ortografia vigente em Portugal”. Por que razão? O senhor acha que a obra perderia qualidade com a adaptação?
Não, eu não acho que perderia. Mas acho que a situação ideal na comunicação entre irmãos portugueses e brasileiros seria a comunicação em que nenhum de nós tivesse de modificar fosse o que fosse na sua maneira de falar ou de escrever, na construção sintática, na norma gráfica, que pudéssemos continuar fazendo aquilo que fazemos e sendo compreendidos sem dificuldade de um lado e de outro. Considero absurdo obrigar num país ou noutro que edições do outro país se sujeitem às normas do país onde o livro vai ser editado. Para mim, quero ler um livro brasileiro tal qual ele foi escrito e quero que os brasileiros leiam meus livros tal como os escrevi.
Mas o senhor não acha que isso pode dificultar a leitura para algumas pessoas? Afinal existem muitos termos de uso diferente na língua.
A língua portuguesa enriquece-se com os termos diferentes de um país e de outro e vão entrar nessa arena linguística – ou melhor, já estão, mas vão entrar agora com muito mais presença – os cinco países, antigas colônias portuguesas, onde o português vai seguir seu próprio caminho e, portanto, vai ser uma língua portuguesa cheia de diferenças de país para país, e o enriquecimento dela não está na imposição de uma norma – fosse ela do Brasil, nossa ou de quem quer que seja –, mas justamente na contradição de que cada país vai levar o corpo comum da língua, que admite ou tem de admitir tudo. E nossa riqueza lingüística de leitores será tanto maior quanto conhecidas as diferenças do português falado nesses sete países. Não podemos ir para uma solução de comodidade, que seria reduzir todas as diferenças de seis países à norma de um. Porque isso é empobrecer a própria língua. Se amanhã um acordo ortográfico se estabelecer – melhor do que aquele que andou a ser discutido, debatido, quase uma espécie de guerra santa –, que possa merecer a aprovação de todos esses países, então aí estou de acordo em que o meu livro se vá sujeitar a essa norma, que será comum de todos. Enquanto isso não acontecer, eu quero ler em Portugal livros de autores brasileiros e reconhecer naquela língua a minha, na forma brasileira. Enriqueço-me com isso, aprendo mais do que sabia antes.
O senhor acha então que a nossa questão é muito diferente da colocada pelos movimentos autonomistas da Espanha, por exemplo, que hoje se voltam contra os acordos feitos para a unificação da língua? Os bascos, os galegos, os catalães querem o direito de falar sua própria língua.
Mas eles têm cada um uma língua diferente. No nosso caso não, e para além das histórias contadas, do estilo e tudo o mais de cada país, há de se mostrar no modo de escrever essa mesma diferença. O que eu peço aos meus leitores brasileiros é que recebam o livro como é e que, se tiverem de fazer um esforço, pois que façam.
Qual será seu próximo livro?
Estou a escrever o livreto de uma ópera que será apresentada em outubro de 1993, numa cidade alemã chamada Münster.
É uma obra encomendada?
Sim, pelo mesmo grupo que criou em Milão, há dois anos, e aqui em Lisboa, no ano passado, a ópera Blimunda, baseada no Memorial do convento.
E essa próxima, como se chama?
Não tem título ainda. Mas o tema é religioso – não fui eu que escolhi…
Desse jeito o senhor vai acabar virando especialista em temas religiosos…
É… [risos] Eu não ando assim tão preocupado com a religião, mas dá uma ideia de que estou a me tornar especialista nisso. Essa história se passa no século XVI, no movimento de Lutero, e depois as várias seitas que surgiram no interior do luteranismo, do protestantismo, e uma muito especialmente, que teve uma importância muito grande no norte da Alemanha e na Holanda e que, neste caso, nos anos de 1534 e 1535, foi um verdadeiro drama, que acabou de fato numa tragédia e numa carnificina, que foi o movimento dos anabatistas. É sobre isso que trata o livro.
E para o próximo romance, já existe um projeto?
Tenho algumas ideias, mas, enquanto eu não acabar esse livreto, prefiro não falar disso.