Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

“José foi uma maldição” Entrevista a Pilar del Río ao "Expresso" (30/04/2017)\

A entrevista de Pilar del Río ao "Expresso" realizada por Alexandra Carita e Luciana Leiderfarb, com fotografia de João Lima, pode ser consultada e recuperada aqui
em http://expresso.sapo.pt/%2Fcultura%2F2017-04-30-Pilar-del-Rio-Jose-foi-uma-maldicao

"Diz que chegou a Portugal como o “apêndice” de um homem e que, por cá, não faz parte da memória de ninguém. Mas carrega o peso de um legado imensamente português, que ajudou a construir. O trabalho na Fundação Saramago valeu-lhe o Prémio Luso-Espanhol de Cultura, que receberá em maio"

"Recebe-nos no gabinete que ocupa na Fundação Saramago. E, mal abre a porta, a luz: Pilar é alta, bonita, exuberante, jovem. Uma jovem de 67 anos — idade que, dirá, não encontra em nenhuma parte do seu corpo. Rapidamente somos puxados para dentro do seu turbilhão, esse que a levou a criar esta casa há uma década, a casar com “um dos cidadãos mais completos do século XX”, 30 anos mais velho do que ela, a abdicar de uma carreira de jornalista, a mudar de pele, de país, a não parar de trabalhar, mesmo que o cansaço por vezes se imponha. E quem é esta mulher? Alguém que não quer morrer numa “decadência ostensiva”. Que não corresponde, nunca correspondeu, a estereótipos ou normas sociais. Que acorda todos os dias para viver “da e com a memória”, consciente de ter sido protagonista de uma experiência que muitas mulheres gostariam de ter tido. Uma “maldição” que ainda hoje, sete anos passados sobre a morte de José Saramago, a afasta de refazer a vida, porque, simplesmente, não lhe apareceu à frente outro igual a ele.

Sabendo que não gosta que lhe chamem a viúva de Saramago, quem é Pilar del Río hoje, aos 67 anos?
Não gosto que me chamem ‘viúva de’ porque ninguém me chamou ‘mulher de’ enquanto Saramago foi vivo. Isto por duas razões: porque tinham de enfrentar Saramago e tinham de me enfrentar a mim. Cada um de nós é o produto de si próprio. Não somos nem do pai nem do filho. Somos o que queremos ser. Nunca fui a mulher de Saramago nem serei a viúva dele, por respeito a Saramago e a mim própria.

E então quem é essa Pilar?
Uma mulher que não corresponde a estereótipos como o bom comportamento ou às normas sociais que se esperam de alguém que já tem uma idade. Talvez porque essa mulher ainda não consiga encontrar os 67 anos em nenhuma parte do seu corpo. Claro que me olho ao espelho, mas acho que o que está mal é um problema do espelho. Sou uma pessoa que todos os dias, ao acordar, pensa no que quer fazer da sua vida. Não tenho ainda um caminho definido. Ou seja, não estou reformada de nada. Faço a minha vida como quando tinha 20 ou 30 anos. Vou trabalhar. Não quer dizer que não tenha problemas. Tenho-os, de saúde...

Não sente que abdicou de uma carreira?
Sinto que tive um impasse. Isso também me dizia o meu marido, que eu tinha abdicado de uma carreira para estar com ele, para participar e estar no seu projeto, e, de facto, fui parte ativa nesse projeto. Mas ele também dizia, nos últimos anos da sua vida e pensando nestas coisas da internet (fiz-lhe um site), que eu tinha voltado à minha antiga profissão, a de jornalista. A contar, a dizer, a compor... Se calhar, estou de volta ao projeto inicial da minha vida.

Essa mulher que está no seu projeto original persegue um caminho, quer alguma coisa. O que é?
Tendo conseguido que esta fundação funcione e que tenha gente entre os 30 e os 40 anos, essa mulher não quer morrer numa decadência ostensiva.

Porque é que se tornou jornalista?
Porque gostava de contar coisas que antes gostava de ouvir. Acima de tudo, sou uma ‘ouvidora’, oiço, oiço todo o tipo de gente em todo o tipo de circunstâncias. Tudo me maravilha. Nasci para me maravilhar com uma bola que rebola, com uma estrada que está a ser arranjada... Gosto de contar essas coisas. Tive um programa de rádio há muito tempo, já depois de ter conhecido o José, chamado “Blimunda Não Se Rende”. Nele contava as maravilhas que Blimunda, que era pobre e sozinha, ia encontrando no mundo.

É mais fácil viver quando se acredita no mundo e se está maravilhado com ele?
Eu não acredito absolutamente nada num mundo que está a ser governado por gente em que não acredito nem quero acreditar. O que não me maravilha são todas as insolências e as perversões que os poderes económicos praticam no mundo e as guerras que criam. Maravilha-me que haja refúgios e momentos de harmonia e de poesia. Fomos feitos para sermos seres passivos e sofredores, estamos preparados para ser a massa no que respeita aos conceitos de política e ao domínio do social e fiéis no que concerne à religião. Maravilha-me que de repente haja gente que é ela própria e que é feliz.

A religião fez parte da sua vida...
Nunca vi Deus. O que me atraía na religião era uma forma bonita de relação com os seres humanos, que acontecia através da caridade cristã, entendendo a caridade como amor. Mas isso foi antes de descobrir que acima da caridade estava a solidariedade. Esse momento teve a ver com a minha chegada à faculdade, com a possibilidade de partilhar, com as melhores pessoas, as ideias de liberdade, contra a tirania e a ditadura, ideias que vieram também com a leitura. Hoje descubro que a caridade, no seu sentido etimológico de amor e de partilha, também me interessa muito.

Quando é que percebeu que Espanha vivia numa ditadura?
Desde sempre. Em criança sabia que vivíamos num país criado por obra e graça de Deus. Sabia que Deus tinha criado Franco para fazer o país preferido dele.

Aprendeu-o na escola?
Não foi preciso, já o tinha aprendido em casa: Deus criou Franco e Espanha! Claro que, ao crescermos, nos apercebemos de que o mundo é maior do que Espanha. Damo-nos conta disso por uma notícia num jornal, um livro que lemos... Com 14 ou 15 anos descobres que há países onde se vota e aos 18 já sabes que em Paris está a acontecer muita coisa. Tudo começa a encaixar-se, a fazer sentido. E, com a mesma naturalidade que se aceitou fazer a primeira comunhão, aceita-se deixar de ir à missa. Lembro-me perfeitamente da última vez que me fui confessar: o padre perguntou-me se já tinha acabado, e eu respondi-lhe que sim, mas que havia coisas que não lhe ia dizer. Não ia confessar o amor nem que estava com o homem que escolhi, o meu primeiro marido.

No entanto, casou com ele pela Igreja e batizou o seu filho...
Fi-lo para não dar um desgosto à minha mãe, que vivia uma guerra civil e não tinha de suportar as iras do meu pai. Porém, a palavra ‘família’ provoca-me fastio, repugna-me. Faz parte do ADN que te dão a conhecer: Estado, Família e Religião; Deus, Pátria e Família, se quiserem. Vi tudo isso em casa. Fi-lo para não aumentar o conflito entre a minha mãe e o meu pai. Para mim, era igual, queria lá saber da religião. Casei-me pela Igreja porque a religião não me dizia nada. Era como pôr um vestido comprido para ir a uma festa social ou usar uma joia, tanto me fazia. Deus não significa nada para mim. Se há um Deus, ele vai perceber que tudo o que inventaram à sua volta é uma merda. Quero que haja um Deus para lhe pedir contas sobre o que fez aos seres humanos, às mulheres.

De onde vêm as suas convicções?
De um mundo cheio de pobres diabos. Vivo com seres humanos que tentam levantar a cabeça e não conseguem, porque lha cortam.

Disse que em sua casa havia um conflito e que rejeita a ideia 
de família. Porquê?
Rejeito-a porque tenho os olhos abertos para o que acontece no mundo, as hipocrisias e mentiras que se fazem e dizem por aí. Descobri isso ao ver “O Último Tango em Paris”, de Bernardo Bertolucci, em especial o momento em que ele se vira para ela e lhe diz: “Mete o dedo no cu. A que cheira?” Era uma boa família! Quer isto dizer que as primeiras mentiras que o ser humano diz — porque se chegou tarde a casa, porque se precisa de qualquer coisa, porque se tem medo — são à família, em família. Na minha casa, o conflito traduzia uma sociedade patriarcal a viver numa ditadura política e religiosa. Havia o nacional-catolicismo. Eu não sabia quem era mais importante, se Deus, se Franco. Tinha dias. Qualquer coisa que saísse do âmbito do nacional-catolicismo era um problema, e se fosses respondona como eu eram problemas acrescidos. A última vez que o meu pai me deu uma bofetada já eu tinha 23 anos.

O que fez?
Fui-me embora, estava de férias e fui ter com o meu namorado. Até a minha mãe me apoiou. Bateu-me porque eu estava a defender uma irmã adolescente que tinha chegado a casa 10 minutos atrasada.

Percebe-se que a relação com o seu pai era complicada...
Não era complicada, porque nem sequer tive uma relação com o meu pai. Não se têm relações com os pais. Os pais existem para mandar em nós."

"Trabalhar. É o que Pilar faz todos os dias, desde que assumiu a 
presidência da Fundação Saramago, a completar uma década. 
Na foto lê a passagem de “Jangada de Pedra” em que Saramago 
descreve o primeiro encontro entre os dois"
Fotografia: João Lima

O que faziam os seus pais?
O meu pai era um tipo singular. Foi frade dominicano e depois aviador e agente de seguros. A minha mãe, submissa, tinha de ‘se defender’ de 15 filhos e do marido. Era uma mulher extraordinária.

E como é ser a mais velha de 15 irmãos?
Não sei, acho que gostava de ter sido a mais nova de todos. A verdade é que partilhei a responsabilidade com a minha mãe na hora de tomar decisões, assim como as tarefas diárias, que iam de pôr toda a gente na escola a dar de comer e vestir... Foi um excesso de responsabilidade, do qual beneficio hoje em dia.

Tentou ser diferente como mãe?
Fui uma má mãe, porque sempre pensei que seria a vida a educar o meu filho e não eu. Nunca pensei no que queria ser como mãe, tinha outras coisas que fazer.

Que relação mantém com o seu filho, hoje já com 40 anos?
Trato-o como uma pessoa que é independente e que está a trabalhar. E está a trabalhar sobre Saramago.

O que é que faz?
É uma história linda. O meu filho estava a viver na Argentina, pois detestava a ideia de estar num país onde tivesse de se relacionar com o José ou comigo. Mas quando o José adoeceu a sério, perguntou-me se eu queria que me viesse ajudar. E veio da Argentina para Lanzarote com um amigo e fez com que a minha casa nunca fosse uma enfermaria. Ficaram até ao dia em que o José morreu. Neste momento está em Lanzarote a fazer visitas guiadas à casa todos os dias.

Houve um antes e um depois de Saramago?
Claro. Eu trabalhava como jornalista, tinha um programa e vivia num país. O facto de estar com José Saramago fez-me deixar um posto de trabalho estupendo e vir para um país onde não faço parte da memória de ninguém, nem então nem agora. Antes estava com o José, agora estou com a memória do José.

E quem é a Pilar depois do José?
Uma mulher muito mais velha, com uma experiência maravilhosa que muitas das mulheres que conheço, e mesmo algumas que não conheço, gostariam de ter tido. Sou uma privilegiada, vivi uma história absolutamente singular que partilho de manhã à noite todos os dias na fundação, na casa de Lanzarote, na Azinhaga. Vá para onde for, partilho essa história, porque é demasiado grande para a guardar só para mim: é a história de um dos cidadãos mais completos do século XX, uma pessoa que nasceu para ser massacrada e não o foi, que se levantou do chão, que se fez a si próprio, que não precisou de ser ‘filho de’, que nem sequer tinha o apelido do pai. Uma figura que os burgueses de mente curta ainda não conseguem compreender. Aqueles que não entendem a literatura de Saramago ou o próprio Saramago têm de ir a um especialista, pois são egoístas ou doentios ou têm uma conceção da vida demasiado elitista. Mesmo os que não concordam com Saramago não podem negar que ele os arrasa. Saramago é a-rra-sa-dor, um tipo que em menos de 30 anos construiu uma obra como esta. Alguém que escreveu “O Evangelho segundo Jesus Cristo”.

Fala de uma elite que ainda não compreendeu Saramago. Alguma vez se zangou com Portugal?
Não. Para mim, não existem países. Tenho semelhantes. O que é que herdei do franquismo? A repulsão pela bandeira.

Então reformulemos: alguma vez se zangou com os semelhantes de Saramago?
Zanguei-me com os espíritos pequenos, ou melhor, com o comportamento de alguns indivíduos, sobre os quais só me ocorre dizer “coitados”. Esses que escrevem uma coluna em Portugal e teorizam e dogmatizam, mas não chegam nem à raia de Badajoz. Passando Badajoz, não são ninguém. Não suporto quando começam com a conversa de que Saramago saneou não sei quantas pessoas. Não, desculpem, o diretor literário não faz saneamentos, foi a administração, há provas. E escrevem isso em jornais que mal pagam aos seus colaboradores, que mal pagam aos seus redatores e que põem na rua jornalistas. Mas esses não são saneados. Têm ódio à revolução, no fundo querem ser aristocratas. Mas não são!

Como é que um encontro pode mudar uma vida?
Não tive consciência de que a terra tremeu. José Saramago sim, e descreve-o na “Jangada de Pedra”. Eu não. Senti tudo isso com uma enorme naturalidade. Saí do encontro com ele e disse: “Vai acontecer qualquer coisa!” Cheguei a Espanha, e a primeira coisa que fiz foi telefonar à pessoa com quem namorava na altura para lhe dizer que não íamos continuar. Passou junho, julho, agosto. Em setembro recebi uma carta: “Se as circunstâncias da vida mo permitirem, gostaria de te ir ver.” Já me tinha dado recomendações de leitura, a nossa correspondência nesse sentido era quase ditatorial. Eu tinha de ler “Uma Família Inglesa”, de Júlio Dinis, o “Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco, a Agustina Bessa-Luís, a Lídia Jorge...

Soube logo que ia dedicar-se a este homem?
Dedico-me à vida, aos meus irmãos, e se na vida está o meu marido dedico-me a ele; se está a fundação, dedico-me a ela. Ou seja, sou uma mulher dedicada. Mas, sim, dediquei-me a ele de corpo e alma, sabendo que era uma pessoa inesgotável. Começava uma conversa que nunca dava por terminada, porque tinha sempre pontos de vista diferentes, tal como a sua literatura. Era uma pessoa com uma formação infinitamente superior à minha. Foi uma maldição.

Maldição?
Sim, depois de o ter conhecido já não consegui gostar de mais ninguém.

Nunca pensou em refazer a sua vida?
Com quem? Deem-me outro. Só teria reconstruído a minha vida se tivesse aparecido alguém assim por quem me apaixonasse. Acho que os homens se impressionam com isso, que não querem ser comparados.

Como era ser 28 anos mais nova e saber que sobreviveria a esse amor?
Tínhamos isso muito claro e preparámos tudo. Uma vez, Madalena Perdigão disse-me, pouco tempo depois de a conhecer, que tinha uma relação com um homem mais velho e que isso a fazia sofrer muito, pois a sociedade não a entendia. A sociedade só percebe o lugar-comum. Acontece que ela morreu dois anos depois e o marido viveu quase até aos 100. O José e eu sabíamos que era uma lei da vida. E numa conversa ao almoço em Lanzarote, com dois amigos espanhóis, surgiu a ideia de fazer uma fundação para tomar conta do seu legado humanista — não de uma herança ou de uma biblioteca. Saramago primeiro não achou grande ideia, mas a conversa continuou e, no final, disse-me que, se eu lhe sobrevivesse, queria que me ocupasse da fundação.

"Legado. Foi num almoço em Lanzarote que 
surgiu a ideia de criar uma fundação. Saramago acabou 
por anuir e disse a Pilar que, se ela lhe sobrevivesse, 
queria que avançasse com o projeto"
Fotografia: João Lima

Uma vez disse que ele queria que “o continuasse”. Como se continua José Saramago?
É terrível. Pelo menos, Saramago tinha uma companhia, eu não.

Sente-se sozinha?
Não. O problema é quando viajo. Nos últimos dois anos tem sido mais difícil viajar sozinha, com uma mala, de aeroporto em aeroporto, para compromissos relacionados com Saramago. No penúltimo país que visitei tive uma quebra, pensei que ia morrer, tive de tomar um tranquilizante. Sou a escrava, a protagonista e a que apanha os copos. Ou seja, há de chegar o dia em que não conseguirei fazer mais. O José não tinha de fazer a mala, não ia sozinho. Falava e era Deus. Eu não sou Deus e tenho de falar como Deus. Sou recebida por chefes de Estado, estou presente em conferências, em todo o tipo de situações. A vida é complicada.

O que significa para si a Fundação Saramago?
É a residência do pensamento do José. As editoras só publicam livros para ganhar dinheiro. É um negócio. Mas quem trabalha o pensamento de José Saramago? Já não há editoras que publiquem ensaios. Então somos nós que o fazemos. Exemplo disto é a “Proposta de Declaração Universal dos Deveres Humanos” — que tem a ver com a nossa obrigação de retribuir à sociedade e vai ser apresentada à ONU — ou a difusão do teatro. Houve teatro de Saramago em Portugal, em Espanha, em Itália, óperas... Alguém se deu conta? E quem leva isto para a frente? Os herdeiros? Eles têm a sua própria vida e não lhes pode cair o legado em cima. É a fundação que se ocupa de tudo.

Com uma vida como essa, porque aceitou ser administradora da TVI?
Uns amigos ligaram-me e pediram-me para aceitar o cargo. Eu estava numa apresentação de Vargas Llosa e não podia atender o telefone e acabei por responder por mensagem. A proposta em si era tão surpreendente que não sabia o que dizer ou fazer. No entanto, pensei: se não for eu, vai ser outro. E porque não estar lá uma pessoa tão vincadamente de esquerda? Eu sou uma pessoa de esquerda e muito antissistema.

E o que faz como administradora não executiva?
Só participei em reuniões, espero agora poder participar em algo mais. Mas o que faço é basicamente aprovar as contas e um pouco da linha editorial. Não posso chegar ao Conselho de Administração de uma empresa a opinar, cheguei a ouvir. Agora espero mais.

Sentia saudades de estar num meio de comunicação social?
Há 20 anos teria respondido que sim. Queria ser diretora do “El País”. Estava muito irritada, e ainda estou, pelo facto de quase não haver mulheres nesses cargos. O meu jornal ideal seria aquele que me deixasse ser mulher e dar a minha opinião, sem prestar tanta atenção à lógica do mercado, mas sim à dos leitores.

Não é ingénuo pensar que isso é possível?
O que nos ensinaram já não faz parte daquilo a que se chama ‘fazer jornais’. Já não contamos o lado obscuro das coisas. Pelo contrário, somos os que beneficiamos os interesses do poder. Estamos ali para esconder as falhas do sistema capitalista e não para trabalhar para uma sociedade que se quer socialista na sua essência.

Acredita no jornalismo independente?
Acredito muito nas pessoas, mas cada vez que um jornal tratou de levantar a cabeça e fazer frente ao poder económico foi abafado. Um jornal progressista, independente, tem de fazer imediatamente concessões. E tudo acaba por não passar de um jogo de concessões.

Voltando atrás, quem é hoje a sua família?
Em Portugal não faço parte da memória de ninguém. Estou muito só, mesmo que esteja rodeada de gente fantástica aqui na fundação. A minha família é a memória. Irrita-me dizê-lo, mas vivo da e com a memória — embora seja uma memória que projeta, uma memória para o futuro. Tenho amigos adoráveis, um grupo de amigas em Sevilha... E tenho a tribo — é assim que chamamos a nós mesmos em família. Eu saberia dizer o que estão agora a comer os 15 membros da tribo, ou seja, os meus irmãos. Sei que nunca mais me vou encontrar com o José, que ele nunca me vai poder dizer se estou a fazer bem ou mal.

Porque é que insiste em dizer que não faz parte da memória de ninguém?
Porque não faço. Cheguei com 40 anos e não tenho a chave, o código, para as pessoas daqui.

Não se está a subestimar?
Não, sou realista. E a realidade é a minha idade. As pessoas andam para trás, recuperam momentos do passado, e eu não estou lá. Cheguei tarde, já bem crescida, como o apêndice de um homem. E durante os 25 anos que vivi com ele não tinha existência real, era uma sombra. E agora tenho uma existência real relativa.

Relativa como?
Não sei se as pessoas se dirigem a mim como a um ser humano que querem agarrar ou beijar ou como a uma mulher que tomou decisões que Saramago nunca tomaria. Em Granada e em Sevilha existo como pessoa e companheira de trabalho. Em Portugal não existo sem Saramago.

Gostava de mudar isso?
Teria de ter vontade de o fazer, e se calhar já não tenho. Mas é curiosa a quantidade de viúvos que Saramago tem. Um dia, aqui no meu gabinete, contaram-me como foi o casamento de Saramago. Foi comigo que ele se casou! Não se lembram? Não me veem?

Mas há muita gente que a conhece...
Não sei se me estão a ver a mim ou à sombra de Saramago, mas houve um tempo em que tive a ilusão que me estavam a ver a mim. Agora desconfio sempre. Já não sei quem me olha, porque me olha, que olhar é esse.

No fundo, fala da sua individualidade. Como a manteve sendo tradutora de Saramago e o seu braço-direito?
Mantive-a sempre, mas ninguém o sabia. Isso fazia parte da nossa intimidade, onde cada um era livre. Não estávamos comprometidos nem com partidos políticos, nem com Estados, nem com nacionalizações, nem com o casal que formávamos... Éramos um projeto, trabalhávamos juntos. Quando decidíamos o que íamos fazer, não o fazíamos em função de Saramago, mas do projeto e da agenda, do livro que se estava a escrever ou a traduzir. Trabalhávamos para um projeto no qual participavam outras pessoas, a que chamávamos ‘saramaguitos’.

Como foi traduzir Saramago?
Foi uma ousadia própria da juventude. Eu lia os originais das traduções que mandavam a Saramago e muitas vezes não estava de acordo. Mas ele tinha um tradutor muito bom, que era professor catedrático da Universidade de Barcelona, e quem era eu para opinar... O tradutor veio à apresentação espanhola de “Ensaio sobre a Cegueira”, de óculos escuros e de bengala: “Venho à apresentação deste livro consciente de que será o último que traduzirei, porque estou a ficar cego.” Não ficou cego, exagerou um pouco. Mas eu já lhe tinha dito que a partir dali traduziria eu! Fi-lo porque era ousada, senão nunca teria traduzido Saramago.

Que relação tem com a família do seu marido?
A neta trabalha aqui na fundação e a filha, que vive no Funchal, também faz parte da organização. Mas como está longe relacionamo-nos menos. É uma relação sem problemas, cordial.

Já disse que não gosta de bandeiras. Porque é que escolheu ter a nacionalidade portuguesa?
Para pagar impostos em Portugal. Não vou pagar por José Saramago fora de Portugal. E a verdade é que o Governo se portou muito bem, pois fiz um pedido normal e responderam-me logo. Ao cabo de dois meses já tinha a nacionalidade e já podia apresentar a declaração de impostos aqui. Pago muito mais aqui do que pagaria em Lanzarote, mas agora tenho legitimidade para criticar o Governo e o Estado ao qual pago os meus impostos. Fico colérica de cada vez que gastam mal o dinheiro.

Como é que essa formalização da relação com Portugal se conjuga com o ideal de uma Ibéria sem fronteiras?
Sabe, no outro dia deram-me o Prémio Luso-Espanhol de Cultura, por eu servir de ponte de comunicação entre Espanha, Portugal e América Latina, segundo o júri. Fiquei muito feliz. Como na “Jangada de Pedra”, creio que é para lá que caminhamos, para a América Latina. E servir de agente de comunicação entre culturas parece-me muito importante. Sugeri que mo entregassem em finais de maio, na Feira do Livro de Madrid, cujo país-tema será Portugal. Não sou mulher de salões nobres.

"Uma festa para Saramago" no "Público" - notícia recuperada de 26/02/2000 (por Carlos Câmara Leme)

A crónica do "Público" pode ser consultada e recuperada, aqui
em https://www.publico.pt/2000/02/26/jornal/uma-festa-para-saramago-140578

"Uma festa para Saramago" de Carlos Câmara Leme (26/02/2000)

Capa da edição - Colóquio Letras #151/152 - "José Saramago: O Ano de 1998"


"Pela primeira vez, um número da "Colóquio/Letras" é dedicado a um autor vivo. O volume sobre José Saramago é uma festa para os olhos e para o espírito.

1. Agosto de 1996. Quando soube que a Universidade de Massachusetts, Amherst, EUA, iria realizar o I Colóquio Internacional sobre a sua obra, José Saramago causticamente afirmou: "É, de facto, uma ironia que vem confirmar mais uma vez algo que já é muito antigo, ou seja que o nosso mundo universitário na nossa querida terra não presta muita atenção aos escritores vivos."Ao fim de dois dias de colóquio, e dois anos antes da atribuição do Nobel, depois de ouvir duas dezenas de comunicações na sua maior parte oriundas de universitários portugueses, o escritor emendou a mão e confessou: "Um bombardeamento destes nunca me tinha acontecido. Afinal, ando a fazer muito mais coisas do que aquelas que julgava andar a fazer." (ver PÚBLICO de 22/9/1998.) 

2. Fevereiro de 2000. A revista "Colóquio/Letras", com coordenação científica de Maria Alzira de Seixo, lançava um número duplo, um volumoso tijolo de 500 páginas que, sob o título "José Saramago: o Ano de 1998", é o primeiro tomo da publicação editada pela Fundação Calouste Gulbenkian dedicado a um escritor português vivo. Se é certo que, após a atribuição do Nobel da Literatura o interesse em torno da sua obra cresceu, a primeira constatação digna de registo é clara: o mundo universitário português, afinal, não só presta atenção aos seus escritores vivos como, no caso em apreço, a bagagem ensaística saramaguiana está de boa saúde e recomenda-se. Saramago não tem razões para se queixar. Justiça seja feita: no dia do lançamento (ver PÚBLICO de 18/2/2000), o romancista não se fez rogado e, à imagem das palavras que pronunciou em Estocolmo, reconheceu que não tinha nascido para ter direito a este número da "Colóquio/Letras". Não é verdade. Tem - como outros romancistas vivos (de Agustina Bessa-Luís a António Lobo Antunes) ou que desapareceram recentemente (José Cardoso Pires é, de todos, o caso mais gritante!!!). Mas isso é outra história...

3. Fevereiro de 1997. Durante a longa conserva que manteve com Carlos Reis em Lanzarote ("Diálogos com José Saramago", ed. Caminho), o entrevistado a certa altura afirma: "Leituras que tivessem levado directamente àquilo a que estamos a chamar 'o meu estilo', não há. E sobretudo se tivermos em conta as condições em que ele nasceu, ele é tudo menos premeditado. Agora, o que está claríssimo é que ele não pode nascer do nada, embora seja curioso que, mesmo em textos antigos (...) se é certo que o estilo não é tão claramente aquilo que veio a ser depois, em todo o caso já se anuncia aí uma certa vibração, uma espécie de necessidade de não ocupar só o espaço em que está, de se abrir e de abranger o que está ao lado." E remata: "Só que graficamente isso não é imediatamente visível."Pois bem, agora já o é. Este dado é, sem dúvida, a primeira grande qualidade deste número da "Colóquio/Letras". A partir de agora há um marco incontornável - do teatro à poesia, desta à crónica, do romance ao conto ou ao diário - para se estudar e aprofundar a obra de Saramago. Cada núcleo destes dava para uma recensão crítica... 

4. Tendo-se estreado em 1947 com "Terra do Pecado", é pela via da poesia que o nome e a obra de Saramago começam por se afirmar, primeiro com "Poemas Possíveis" (1966), depois com "Provavelmente Alegria" (1970), o primeiro porto de reflexão da revista. Reflexão que revela que, mais tarde, quando Saramago apostou definitivamente no romance, a veia poética foi absolutamente decisiva (ao contrário do que o próprio escritor várias vezes desvalorizou). Num e noutro livro, nota Maria de Lourdes Cidraes, "o poder das palavras e a dificuldade em conhecer o seu peso exacto, o rigor de uma temporalidade inelutável e o breve fulgor do instante, a urgência do amor, a pouquidade do existir e o sem sentido da vida" são obsessões que perpassarão e enformarão a obra posterior de Saramago. O que também acontece com as técnicas literárias da crónica, onde Isabel Moutinho encontra - num dos textos mais interessantes do volume - pistas para uma das questões centrais que paira ao longo dos múltiplos ensaios do volume: a pós-modernidade, ou não, da escrita do autor de "O Ano da Morte de Ricardo Reis". Se é um dado adquirido que romances como "Ensaio sobre a Cegueira" ou "Todos os Nomes" são, em sentido literal, romances pós-modernos (cf. os artigos de Douwe Fokkema, Wladimir Krysinski, Jean Bessière ou Isabel Pires de Lima), os denominados históricos - a começar por "Levantado do Chão" até "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" - prenunciam, se é que já não são, obras de pendor pós-moderno. Os textos mais significativos, e incontornáveis a este respeito, são de dois especialistas saramaguianos: Horácio Costa e Teresa Cristina Cerdeira da Silva (ambos de leitura obrigatória).Peça igualmente importante para esta questão é a separata do caderno que esteve na origem de "A Jangada de Pedra", magnificamente iluminada por Alzira Seixo: porque se por um lado dá a conhecer o laborioso e difícil trabalho da oficina do escritor, por outro, revela a consciência que o romancista tem das dominantes paródica e desconstrutiva da História que a atravessam, as quais, como é sabido, constituem elementos cruciais da mundivência pós-moderna.

5. No lançamento da revista, a coordenadora classificou-o "como uma festa da literatura". Aos contributos ensaísticos propriamente ditos - a que faltam talvez nomes como os de Eduardo Lourenço, Vítor Aguiar e Silva ou Óscar Lopes... - esta "Colóquio/Letras" é uma festa para os olhos. As ilustrações especialmente encomendadas a Bartolomeu Cid dos Santos são belíssimas, assim como as fotografias de Lisboa, de Mariano Piçarra. Os documentos, alguns deles inéditos, como é o conto "Natal", o texto que (quem saberia?) Saramago escreveu para o jornal do Sport Lisboa e Benfica (!) e, o divertíssimo conta-corrente de imagens e "flashes" de Pilar del Río, à volta dos dias estonteantes aquando da entrega do Nobel da Literatura, fazem desta "Colóquio/Letras" um marco histórico na vida literária portuguesa.Para ler. Para pensar. Para ver. E, certamente, para mais tarde recordar..."

"A outra razão de Alonso Quijano" de José Saramago (FJS, 22/09/2009)

O texto publicado e que consta na página da Fundação José Saramago, pode ser consultado e recuperado aqui
em https://www.josesaramago.org/a-outra-razao-de-alonso-quijano/

"A outra razão de Alonso Quijano"

"Todos sabemos como a história começa: naquele lugar de La Mancha cujo nome nunca viremos a conhecer, vivia um fidalgo pobre chamado Alonso Quijano que, um dia, em consequência do muito ler e do muito imaginar, passou do juízo à loucura, tão simplesmente como quem abre uma porta e a torna a fechar. Assim o quis Cervantes, acaso porque à mentalidade do seu tempo repugnasse aceitar que um homem em posse plena das faculdades mentais, mesmo sendo apenas uma personagem de romance, decidisse, por um acto de vontade, deixar de ser quem tinha sido para converter-se em outro: graças à loucura, a rejeição das regras do chamado comportamento racional torna-se pacífica, não problemática, uma vez que permitirá desprezar qualquer aproximação ao louco que não proceda em conformidade com as vias que têm a cura como objectivo. Do ponto de vista dos contemporâneos de Cervantes e das personagens do livro, Quijote é louco porque Quijano enlouqueceu. Em momento algum se insinua a suspeita de ser Quijote, tão-somente, ou, pelo contrário, de supremo modo, o outro de Quijano. Não obstante, Cervantes tem uma visão muito precisa da irredutibilidade das consequências da mudança de Quijano, tanto assim que reforma e reorganiza de alto a baixo o mundo em que vai entrar essa entidade nova que é Quijote, mudando os nomes e as qualidades de todos os seres e coisas: a estalagem torna-se castelo, os moinhos são gigantes, os rebanhos exércitos, Aldonza transforma-se em Dulcinea, para não falar de um mísero cavalo promovido a épico Rocinante e de uma bacia de barbeiro alçada à dignidade de elmo de Mambrino. Já Sancho, tendo embora de viver as aventuras e as imaginações de Quijote, não precisará nunca de enlouquecer nem de mudar de nome: mesmo quando o proclamarem governador de Bartaria continuará a ser, no físico e no moral, mas sobretudo na sólida identidade que sempre o definiu, Sancho Panza. Nada mais, mas também nada menos.

Que nos diz Cervantes da vida de Alonso Quijano antes que a suposta loucura tivesse transformado o mal favorecido e infatigável cavaleiro a quem as derrotas nunca diminuirão o ânimo, antes parecerá encontrar nelas o alento para o combate seguinte, infinitamente perdido e infinitamente recomeçado? Cervantes, dessa vida enigmática, nada nos quis dizer. E, contudo, Alonso Quijano frisava já os cinquenta anos de idade quando Cervantes o plantou inteiro na primeira página do Quijote. Mesmo numa aldeia perdida de La Mancha, tão perdida que nem o seu nome se achou, um homem de cinquenta anos teria tido, por força, uma vida, acidentes, encontros, sentimentos vários. Seus pais, quem foram? De que irmão ou irmã lhe veio a sobrinha? Não teve Alonso Quijano filhos, um varão, por exemplo, que por não ter nascido à sombra do santo sacramento do matrimónio foi deixado ao deus-dará? E a mãe desse filho, quem teria sido? Uma moça de aldeia, barregã por uns tempos, ou apenas tomada de ocasião em tarde de calor, no meio da seara ou atrás de um valado? Conhecemos tudo da vida de D. Quijote de La Mancha, porém nada da vida de Alonso Quijano, no entanto o mesmo homem, primeiro dotado de razão, depois deixado dela, senão, como me parece hipótese mais sedutora, deixada ela por ele, conscientemente, para que Alonso Quijano pudesse, sob a capa de uma loucura que passaria a justificar tanto o sublime como o ridículo, ser enfim outro, para como outro poder viver em outros lugares e fazer da labrega Aldonza (quem sabe se antes mãe de filhos que não foram reconhecidos?) uma puríssima e inalcançável Dulcineia, mudando assim, como numa operação alquímica, o chumbo cinzento em ouro resplandecente.

É neste ponto, segundo entendo, que deparamos com a questão crucial. Se Alonso Quijano foi o mero invólucro físico de um delírio mental produzido pelo muito ler o pelo muito imaginar, então não haveria grandes diferenças entre ele e aqueles outros loucos que, dois ou três séculos mais tarde, se tomaram por Napoleão Bonaparte só porque dele ouviram falar, ou acerca dele leram, como capitão, general e imperador. Quanto a mim, prefiro acreditar que, em um dia da sua insignificante vida, Alonso Quijano decidiu ser outra pessoa, e, tendo, por isso mesmo, que colocar-se contra o seu tempo, onde só a pessoa Quijano tinha lugar, optou por fazer aquilo que então já ninguém ousaria: restabelecer a ordem da cavalaria andante, pondo ao seu serviço, por inteiro, alma e corpo. Se falasse francês, Quijano poderia ter antecipado, naquele seu momento fundador, o dito célebre de Rimbaud: la vraie vie est ailleurs. Pelo menos, imaginemos que, ao deixar a tranquilidade e a segurança da sua casa, grotescamente armado, montado na esquelética cavalgadura, teria proferido, no seu castelhano manchego, estas palavras, postas aqui também na língua de Rimbaud para manter o paralelismo, e que seriam, ao mesmo tempo, uma divisa e um programa: Le vrai moi est ailleurs. E foi assim que começou a caminhar, já outro, e portanto à procura de si mesmo.

Este jogo entre um eu (Quijano) que se torna em um outro (Quijote), ponto forte, se posso atrever-me a dizê-lo, desta interpretação, encontra uma simetria recente no conhecido sistema de espelhos, cientemente organizado por Fernando Pessoa, que é constelação heteronímica. Sendo os tempos diferentes, Pessoa não necessitou enlouquecer para se tornar nesses outros Napoleões que são o Álvaro de Campos da Tabacaria, o Alberto Caeiro do Guardador de Rebanhos, o Ricardo Reis das Odes, ou o Bernardo Soares do Livro do Desassossego. Curiosamente, porém (tanto pode, afinal, a suspeita social que pesa sobre aqueles que, de modo directo ou indirecto, aspiraram a retirar-se da humana convivência), o próprio Fernando Pessoa, para dar do seu caso uma explicação que não relevasse da simples vontade de ser outro (ou, mais complexamente, necessidade de não ser quem era), diagnosticou-se a si mesmo como histero-neurasténico, por esta maneira transitando, com perturbador à-vontade, das auras poéticas ao foro psiquiátrico. Isso lhe servirá para explicar os seus heterónimos, atribuindo-se a si mesmo uma «tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação». (Falar de «despersonalização», neste caso, não de uma despersonalização – situação, suponho, em que o poeta, no mesmo instante em que deixa de ser ele próprio, assiste à ocupação do vazio por uma nova entidade poética, tornando portanto a ser alguém, na medida em que havia podido tornar-se outro).

É interessante observar, repito, como Pessoa nos quer fazer crer na «origem orgânica» dos seus heterónimos, aliás em total e flagrante contradição com a descrição que faz do «nascimento» deles, que mais parece corresponder a uma sequência de lances de um jogo dentro de outro jogo, como caixas chinesas saindo de caixas chinesas: «lembrei-me de inventar um poeta bucólico», «aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir uns discípulos», «arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente», «de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo (Álvaro de Campos)»… É de supor que o aparecimento dos outro heterónimos, ou semi-heterónimos, que foram António Mora, Vicente Guedes ou Bernardo Soares, tenha percorrido caminhos mentais similares e modos de elaboração e definição paralelos. Para fazer um Quijote, Cervantes tinha de levar Quijano à loucura, ao passo que Fernando Pessoa, que já levava dentro de si a tentação de mil vidas diferentes, e que, de alguma maneira, já era personagem de si mesmo, não podendo enlouquecer deveras e tornar-se, nessa loucura, outro, criou para seu uso e nossa mistificação uma fingida histero-neurastenia, ao abrigo da qual se poderia permitir quantas multiplicações o seu espírito fosse capaz de suportar. Parece claro, pois, que a ironia pessoana se vai exercer em duas direcções distintas: a o leitor, obrigado pelo poder compulsivo de uma expressão artística invulgar a tomar a sério o que é pura mistificação, e a do próprio Pessoa, agente e objecto conscientes dessa mesma mistificação.

Ou muito me engano, ou não é este o caso de Cervantes. É verdade que ele, com aparente frieza e indiferença, parece querer expor, primeiro Quijano e depois Quijote, à irrisão familiar e pública, mas esse homem uno e duplo, Janos bifronte, cabeça de duas caras, de quem o leitor se rirá mil vezes, também será capaz mil vezes de despertar no nosso espírito os mais subtis sentimentos de compaixão e solidaridade, e, como se tal fosse pouco, criar em nós o desejo profundo e irresistível de identificação com alguém como esse Quijote – personagem incorpórea de romance, criatura feita de tinta e papel –, em verdade desprovido de tudo, menos de ansiedade e de sonho. Ainda que não o queira confessar, todo o leitor, no segredo de seu coração, desejaria ser D. Quijote. Talvez pelo facto de ele não ter consciência de seu ridículo e nós vivermos sujeitos a ela em todas as horas lúcidas, mas sobretudo, creio, porque na aventura risível do Cavaleiro da Triste Figura está presente, sempre, o sentido mais dramaticamente interiorizado e mascarado da existência humana: o da sua finitude. Sabemos de antemão que nenhuma das aventuras de Quijote será mortal ou sequer realmente perigosa, que, pelo contrário, cada uma delas será motivo de novas gargalhadas, mas, em contradição com esta tranquilizadora certeza, que resulta do pacto estabelecido com o Autor desde as primeiras páginas, percebemos que, afinal, Quijote encontra, a cada passo que dá, em permanente risco, como se, em vez de ali ter sido posto por Cervantes para meter a ridículo os romances de cavalaria, fosse a premonitória representação do homem moderno, sem toga nem coturnos, armado de uma razão desfalecente, incapaz de chegar ao outro por não poder conhecer-se a si mesmo, dividido tragicamente entre ser e querer ser, entre ser e ter sido.

Essa razão, porém, a que chamei desfalecente, como um fio que constantemente se parte e cujas pontas dilaceradas constantemente vamos tentando atar, é o único vademecum, possível, quer para Quijote quer para esse Sancho/Quijote que é o leitor. Razão de regras instáveis, por certo, mas razão trabalhando em estado de plenitude, ou razão de loucura, se aceitarmos o jogo de Cervantes, mas, tanto num caso como no outro, razão ordenadora, capaz de sobrepor leis novas ao universo das leis velhas apenas por uma introdução metódica de contrários. Pessoa dispersou-se noutros e nessa dispersão, porventura, se reencontrou. Quijano substituiu-se a si mesmo por outro enquanto a morte não chegava para fazer voltar tudo ao princípio, ao primeiro enigma e à primeira tentação: ser alguém que não fosse ele, estar num lugar que não fosse aquele.

Vítima de uma loucura simplesmente humana ou agente de uma vontade sobre-humana de mudança, Quijote procura recriar o mundo, fazê-lo nascer de novo, e morre quando compreende que não bastou ter mudado ele para que o mundo mudasse. É a última derrota de Quijano, a mais amarga de todas, a que não terá salvação. A vontade esgotou-se, não há tempo para enlouquecer outra vez.

José Saramago"
22/09/2009

Reportagem e entrevista do Canal 22 (México) de 2001



"Tratos Y Retratos" de Silvia Lemus entrevista José Saramago (Canal 22 México) - Maio de 2003

"Tratos Y Retratos é um programa organizado pela jornalista Silvia Lemus, reúne um grupo excepcional de artistas, escritores, pensadores, cineastas de renome universal, como Umberto Eco, Sebastião Salgado e José Saramago. O programa é uma produção do Canal 22, do México.

José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura 1998, é um dos escritores mais conhecidos e apreciado no mundo inteiro. Na Espanha, após a primeira publicação de O Ano da Morte de Ricardo Reis, em 1985, sua obra literária merece a melhor recepção dos leitores e críticos. Além deste volume, outros grandes títulos são Manual de Pintura e Caligrafia, quase um objeto, História do cerco de Lisboa, A Jangada de Pedra, Memorial do Convento, O Evangelho Segundo Jesus, todos os nomes, levantou, Ensaio sobre Ensaio sobre a Cegueira, A Caverna, o homem duplicado, Ensaio sobre a clareza, a morte intermitentemente, Poesia Completa e Cadernos de Lanzarote I e II. Alfaguara publicou também Viagem livro em Portugal e no conto O Conto da Ilha Desconhecida.

Entrevista realizada em maio de 2003, Saramago critica a atual democracia, em que há o aumento das diferenças sociais e desrespeito aos direitos humanos. Faz uma interessante observação da invasão do Iraque, em que os interesses não se limitam apenas ao petróleo."


https://www.youtube.com/watch?v=unVHpMe97R0&feature=youtu.be

https://www.youtube.com/watch?v=tY5EWrw6z-s

https://www.youtube.com/watch?v=KvZZnUzDK_4

https://www.youtube.com/watch?v=oemfRV9ig9w

"Revista de Estudos Saramaguianos" Edição #7 - Janeiro de 2017


Link do site https://estudossaramaguianos.com/
Link da presente edição https://estudossaramaguianos.com/n-7-vol-1-jan-2018/
Link para recuperar as anteriores edições https://estudossaramaguianos.com/archivo/

"Apresentação"
"Na recente aparição pública das correspondências entre José Saramago e Jorge Amado, encontramos o escritor brasileiro entregue, quase em definitivo, à sedução do reconhecimento glorioso que eventualmente o Prêmio Nobel de Literatura pode trazer ao escritor. Até a uma das últimas cartas a Jorge Amado, datada de 9 de outubro de 1997, o assunto é colocado em pauta por Saramago, que, ao contrário, não demonstra grande ambição e se mostra sempre apaziguador sobre a ansiedade do amigo: “Querido Jorge, não há nada a fazer, eles não gostam de nós, não gostam da língua portuguesa (que deve parecer-lhes sueca…) não gostam das literaturas que em português se pensam, sentem e escrevem. Não têm metro que chegue para medir a estatura de um escritor chamado Jorge Amado, para não falar de outros bastante mais pequenos, no número dos quais a voz pública insiste em pôr-me. Temos de aprender a nada esperar de Estocolmo por muito que nos venham cantar loas ao ouvido. A experiência de injustiça a que tens estado sujeito durante anos e anos deve levar-te, imagino, a encolher os ombros diante destas contínuas provocações suecas. Mas aqueles que, como eu, veem, em ti nada mais nada menos que o Brasil feito de literatura, esses indignam-se com a já irremediável falta de sensibilidade e de respeito dos nórdicos”.

Saramago também sempre se mostrou, publicamente e nas missivas reunidas em Com o mar por meio. Uma amizade em cartas, um favorável ao nome de Jorge Amado para o primeiro Prêmio Nobel a um escritor de língua portuguesa. O desejo, sabemos agora, cinquenta anos depois, esteve próximo de se cumprir: o nome do autor de Capitães da areia aparece entre os nomeados numa lista do galardão de 1968. Mas, o feito nunca se cumpriu. Jorge Amado morreu com a angústia de um injustiçado.

Pelo lado oposto, isto é, a expectativa do amigo brasileiro, nem sempre total, de que o autor de Memorial do convento ganhasse a honraria, se cumpriu em 1998. E comemorou como se fosse ele próprio o escolhido. “Acabo de saber que o prêmio Nobel foi concedido ao escritor português José Saramago. A notícia me causa grande satisfação. Se alguém merece o Nobel, este alguém é José Saramago” – dizia a nota que Jorge Amado, já muito abatido pelas intempéries do tempo, ditou à filha Paloma Jorge Amado e à companheira Zélia Gattai e que foi enviada em missiva a Saramago com data de 8 de outubro de 1998. Paloma junto com Bete Capinan e Ricardo Viel é também a organizadora da edição com as cartas editadas em 2017 pela Companhia das Letras.

Em 2018, 20 anos depois da conquista, ainda a celebramos, por Jorge Amado e pela literatura de língua portuguesa e, porque – o leitor perdoe nossa modéstia – numa lista muito irregular como a da Academia Sueca, o reconhecimento a José Saramago foi um dos mais honestos. Este é não apenas um escritor de relevo no que se refere ao alargamento das fronteiras do universo da criação literária como uma figura de presença política marcante entre os pensadores da contemporaneidade, capaz de não restringir sua intelectualidade aos círculos íntimos ou em favor de um ego narcisista, mas usá-la em favor de, publicamente, incitar os debates mais caros, urgentes e necessários para uma revisão dos rumos tomados pela civilização ocidental. Se olharmos para os galardoados com o Nobel encontraremos poucos em que na sua presença se harmonizam essas duas dimensões fundamentais para a comunidade humana: o compromisso com a palavra e o compromisso com o homem e seu tempo.

Antes e depois do Prêmio Nobel, José Saramago recebeu honrarias e homenagens diversas em toda parte do mundo. No Brasil, por exemplo, onde há muito assume unanimidade entre os leitores, um gesto só alcançado neste país por nomes como Eça de Queirós e Fernando Pessoa, várias universidades o distinguiram Doutor Honoris Causa: o primeiro título veio um ano antes do maior dos reconhecimentos pela Universidade de Brasília e grande parte dos demais um ano depois de Estocolmo num movimento conjunto de diversos departamentos de Letras e de Literatura.

E, para sublinhar que sua vigorosa atitude ética não é uma interpretação impressionista, basta lembrarmos que o escritor não deixou de fazer das honrarias recebidas naquele 1999 em ocasiões de reflexão crítica – seja literária, seja política. Ou mesmo, a transformação do acontecimento em gesto questionador. É sabido da sua recusa à distinção oferecida pela Universidade Federal do Pará, depois de saber que o estado era governado por aquele que se mostrou conivente com o massacre de Eldorado dos Carajás. A ida do escritor ao estado poderia servir de estratégia para o silenciamento midiático sobre o acontecido. A data de entrega, ao que parece, fora propositalmente mudada, num claro gesto de manobra que visava coincidir a chegada do escritor ao estado com o primeiro dia do julgamento sobre a morte dos 29 trabalhadores rurais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra assassinados.

No banquete de recepção do Prêmio Nobel, noutro gesto ético perfeitamente alinhado com o da recusa do Doutor Honoris Causa no Pará, Saramago sublinha o valor esquecido da Declaração Universal dos Direitos Humanos que então celebrava meio século de promulgação: “Neste meio século não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que moralmente estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente a morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante”.

Este discurso do escritor agudiza um alerta que tem sido notoriamente ignorado. Os governos que poderiam ser instrumentos para o povo estão cada vez mais alinhados com os modelos escusos baseados nos interesses de dominação e ignoram, sempre, a justiça e o zelo com o bem-estar coletivo. Neste curso, os tímidos avanços que alguns gestos representaram tornam-se obsoletos sob a instituição legislativa da barbárie. Na mesma ordem, os cidadãos que poderiam irromper numa revolução capaz de cobrar do Estado o que este se exime de cumprir, estão entretidos com a parafernália vendida pelo capital. Dessa madorra só levantaremos quando já for tarde para acordar. Porque as luzes que há no horizonte são quase nenhuma ou pequenas o suficiente para perecer ao acobertamento da vilania instituída. Por isso, recordar o trabalho de homens como José Saramago se insere no território das urgências; rareiam estes interessados em promover uma guinada em prol da humanidade. O legado maior do escritor foi o de nos motivar para ação por acreditar que sem este exercício raro todo o projeto civilizacional estará fadado ao fracasso. Os sinais na contemporaneidade já o demonstram, por isso, resistir se faz uma palavra de ordem e de atitude.

Equipe editorial"


SUMÁRIO

Ensaio sobre a cegueira. Silêncios
LUZIA APARECIDA BERLOFFA TOFALINI

Porque eu sou do tamanho do que vejo.Análise comparativa das três obras ilustradas d’A maior flor do mundo, de José Saramago
SANDRA ISABEL DOS SANTOS CARDOSO

Saramago e a astrologia: estudo do poema “Signode escorpião”
RODRIGO CONÇOLE LAGE

Alegorias saramaguianas em O homem duplicado
NEFATALIN GONÇALVES NETO

O silêncio cúmplice e adversário de Geneviève Leibrich, tradutora francesa de José Saramago
CÉLIA CARAVELA

Formas de dessubjetivação nos romances de José Saramago e Teolinda Gersão 
MIGUEL ALBERTO KOLEFF

O niilismo político: caminho para uma renovação da democracia em José Saramago
JAIME SÁNCHEZ NARANJO


Link para download da presente edição, aqui
em https://drive.google.com/file/d/1H79dvF2JNVTERoiiBgqJF39eBAmDzuC4/view

"A representação do espaço em Saramago: da negatividade à utopia" de Horácio Ruivo



A presente análise está publicada no "Blog Um Caderno para Saramago" aqui

"O livro de Horacio Ruivo incide sobre o espaço na obra literária de José Saramago. Considerada uma categoria intencionalmente privilegiada pelo escritor em muitos dos seus romances, não apenas na dimensão física, mas numa multiplicidade de sentidos emergentes a partir dos diferentes topoi apresentados, reconhece-se a existência de uma linha ascensional que reflete a forma evolutiva como vão sendo apresentados os espaços, reais ou sugeridos, em interação com as personagens, implicando nestas um forte crescimento interior. 

O texto editado pelas Edições Esgotadas explora as dimensões humana e simbólica do espaço. A cada uma destas dimensões é associada, respectivamente, a memória e a violência, ambas importantes linhas de forças na obra saramaguiana. A memória revela-se como um espaço determinante na formação da consciência individual e coletiva: a memória individual visa recuperar do passado a essência daquilo em que o ser humano se vem a tornar; a memória coletiva surge pela necessidade de resgatar momentos do passado histórico que foram intencionalmente eliminados do discurso canônico. Por seu turno, a violência surge associada a espaços – menos físicos do que simbólicos – e constitui-se como metáfora da sociedade, espaço onde o ser humano é frequentemente desrespeitado ou induzido a um estado de apatia que o impede de se afirmar e realizar.

A partir de cinco romances analisados, A representação do espaço em Saramago: da negatividade à utopia procura sustentar a tese segundo a qual o espaço, em Saramago, evolui da negatividade para uma dimensão de utopia, surgindo a negatividade refletida na forma como o autor nos apresenta o espaço inicial, no qual a movimentação das personagens parece contagiada por uma carga negativa que as condiciona; desse espaço emanam, contudo, forças que fazem germinar nas personagens a consciencialização do caos em que se encontram e as impelem à busca de um outro espaço, de utopia, onde seja possível (re)viver."

O "Blog Um Caderno para Saramago" pode ser visitado e consultado aqui 
em http://hotblogumcadernoparasaramago.blogspot.pt/

"¿Por qué piensan que no puedo defenderme? Qué falta de respeto" Pilar del Río (La Nacion - Argentina, 26/03/2017)

Entrevista de Laura Ventura do "La Nacion" (Argentina - 26/03/2017) a Pilar del Río.
Pode ser recuperada aqui
em https://www.lanacion.com.ar/1999148-pilar-del-rio-por-que-piensan-que-no-puedo-defenderme-que-falta-de-respeto


La viuda de José Saramago acaba de recibir un premio 
por la fundación que preside; pese a todo, no se siente la "mujer de"



"Abre la puerta y señala las pantuflas que acaba de quitarse para recibir a una desconocida. Tiene puestos los piecitos en unos zapatos negros y en un puente que une el pasado con el futuro. Comparte las historias detrás de cada cuadro que sostiene la pared de una memoria sin dobleces. Sus relatos no son asépticos. Es una mujer transparente, sin maquillaje, sin prejuicios. Como atea consecuente, no le teme ni al Diablo ni a Dios, pero le profesa fe a los mortales con una actitud vital de confianza. "En esta habitación escribía José Saramago cuando estaba en Madrid", prende la luz y su cara se ilumina. Pilar del Río, sevillana, es periodista y traductora. Compartió su vida con el premio Nobel portugués y conduce la fundación que lleva el nombre de su marido, una institución que goza de reconocimiento internacional y elogios de académicos y escritores. Hay en ella una esencia de los personajes femeninos de Saramago: fortaleza, dulzura, generosidad e independencia. "La viuda de" es un epíteto que la asfixia: "No-lo-so-por-to. Nunca fui la «hija de», ni «la madre de». ¿Por qué demonios voy a ser «la mujer de»? ¿Por qué piensan que ya no puedo defenderme? Pero qué falta de respeto. No renuncio ni a un país ni a idiomas ni a mi familia. No me definan en base a otros parámetros. Soy otras cosas que he concebido con mi decisión y voluntad", se enciende y luego hace bajar la temperatura de su ira para regresar a su calidez natural.


Es domingo, anochece, y Pilar del Río acaba de concluir el trabajo que expondrá en una conferencia. El día siguiente es feriado, pero tiene previsto una jornada de encuentros. Los mails no cesan de llegarle y tiene en la mesa un celular con chip español y otro portugués. Reside en Lisboa y reparte sus días entre Madrid, el mundo y la isla de Lanzarote, donde se encuentra la Casa Museo de José Saramago. Hace meses recibió una noticia inesperada. Ella -y no la institución, aunque en ella están sus pulmones y sus manos-, fue galardonada con el premio Luso-Español de Arte y Cultura (que consiste en la distinción y en la suma de 75 mil euros) por su trabajo como creadora y presidenta de la fundación, por su defensa de los derechos humanos y por su vínculo con Iberoamérica, es decir, más allá del Atlántico. Cuando falleció el escritor en 2010 pidió obtener la nacionalidad portuguesa: "Lo hice por algo romántico, que no se perdiera un número entre los habitantes de Portugal, y por algo práctico: quería pagar mis impuestos en el país de origen de José".

-¿Qué hará con el premio?
-Lo destino a la Casa Museo. Esa es mi casa y he decidido abrirla desde las 10 a las 14 para visitantes. Mi hermana, mi cuñado y sus hijos viven ahí y han cedido esa comodidad de su vida. Nos parecía que el espíritu de Saramago no se podía perder.

Su fundación dará a conocer la Declaración Universal de Deberes, hecha a partir del discurso de aceptación del Nobel en 1998, 50 años después de la firma de la Declaración de Derechos Humanos, un tiempo en el que, según el autor, los gobiernos hubiesen podido avanzar más. "El primer artículo busca el cumplimiento de todos los derechos y libertades, de prensa, de sindicación, a la vivienda, a protestar, etc. También el derecho a discrepar, incluso con las religiones hoy es algo medievalmente peligroso. Umberto Eco decía que pasamos de la estupidez a la locura [busca una cita del italiano en su computadora]... aquí dice que es un libro póstumo, y no. Hay muchos errores en Internet".

-Wikipedia dice que Saramago vivió en la Argentina.
-¿De dónde sacaron eso! ¡No! ¿Me lo muestras? [lee el texto y se ríe con resignación] ¿Sabes lo que es "Argentina"? ¡Es Azinhaga! Las afueras Lisboa. Por favor, cuéntalo.

La literatura de Saramago estaba cerca de las letras argentinas. Del Río recuerda las complicidades de su marido con Tomás Eloy Martínez y sus lecturas reiteradas de Julio Cortázar y Alberto Manguel ("José lo consideraba un sabio. En mi casa, en la sala de juntas, siempre hay un libro de Manguel al alcance de la mano"). También consideraba a Borges, a quien no conoció, un hilo conductor de su obra, pero sí tanto Pilar del Río como Saramago forjaron una amistad con María Kodama.

-¿Por qué piensa que Kodama es tan controvertida?
-¿Quiénes la critican? ¿Los viudos de Borges? Lamentablemente Borges no quiso vivir con ninguno de esos señores. Depositó su confianza en ella, y María en Borges. No pueden declararla incompetente y lo han intentado en los tribunales. Hay escritores que fueron a testificar a favor de María, como José Saramago. Y que no venga nadie a decir que Borges era tonto o no sabía lo que hacía. Te podrá gustar más o menos. A mí me gusta, es mi amiga, la quiero. A nadie hay que pedirle que adore a María. Punto. Y si respetan a Borges, respetan sus decisiones... o a lo mejor lo que quieren es utilizar a Borges en beneficio propio. Puedo o no estar de acuerdo con ella. Mientras ella cuida a Borges de una manera, yo dejo que José Saramago ande por el mundo y se cuide solo. Son dos formas distintas de enfocar la vida, pero ninguna es mejor que otra. Las dos son válidas.

-¿Cómo es convivir recordando la figura de su marido?
-No nos hicimos falsa ilusión de eternidad. Cuando él estaba enfermo y sabía que tenía los días contados, lo vivimos con toda la naturalidad. De algún modo, hicimos juntos el luto. No siento ni dolor ni extrañeza. Mi vida es una declaración de amor hacia él.

"Mientras Kodama cuida a Borges de una manera, 
yo dejo que Saramago se cuide solo. Ambas formas son válidas"

"En mi casa, en la sala, siempre hay un libro de 
Alberto Manguel al alcance de la mano. José lo consideraba un sabio"

"Pedí la nacionalidad portuguesa por algo romántico, 
para que no se perdiera un número entre los habitantes de Portugal"

"Terra" (1997) de Sebastião Salgado com prefácio de José Saramago e musicas de Chico Buarque


Apresentação da obra via Companhia das Letras, aqui

"Apresentação
Se existe alguém que merece o título de Cidadão do Mundo, essa pessoa é o fotógrafo Sebastião Salgado. Cidadão porque seu talento tem a marca da generosidade, da luta incansável por uma melhor compreensão do homem; do Mundo porque sua lente solidária ignora preconceitos e fronteiras. "Fotografia militante": essa definição do próprio Salgado sobre seu trabalho - simples, precisa - está em Terra, assim como estava em Trabalhadores, também lançado pela Companhia das Letras. Em ambos, um profundo senso ético alimenta uma estética requintada. Mas enquanto naquele retratava-se o trabalho braçal em mais de vinte países, as cem fotos deste, todas em preto e branco, foram feitas no Brasil, entre 1980 e 1996. São imagens de pessoas de algum modo desterradas: trabalhadores rurais, mendigos urbanos, presos, garimpeiros, crianças de rua - gente vagando entre o sonho e o desespero, como escreve José Saramago no prefácio. Nessas fotos, a luminosidade bicromática reflete paisagens humanas onde pode faltar tudo, a começar pelo espaço mínimo para assentar a vida. Um CD com quatro canções de Chico Buarque (uma delas em parceria com Milton Nascimento) acompanha o livro, que teve lançamento simultâneo em quatro países: Brasil, França, Inglaterra e Portugal."



 Prefácio de José Saramago

"Oxalá não venha nunca à sublime cabeça de Deus a idéia de viajar um dia a estas paragens para certificar-se de que as pessoas que por aqui mal vivem, e pior vão morrendo, estão a cumprir de modo satisfatório o castigo que por ele foi aplicado, no começo do mundo, ao nosso primeiro pai e à nossa primeira mãe, os quais, pela simples e honesta curiosidade de quererem saber a razão por que tinham sido feitos, foram sentenciados, ela, a parir com esforço e dor, ele, a ganhar o pão da família com o suor do seu rosto, tendo como destino final a mesma terra donde, por um capricho divino, haviam sido tirados, pó que foi pó, e pó tornará a ser. Dos dois criminosos, digamo-lo já, quem veio a suportar a carga pior foi ela e as que depois dela vieram, pois tendo de sofrer e suar tanto para parir, conforme havia sido determinado pela sempre misericordiosa vontade de Deus, tiveram também de suar e sofrer trabalhando ao lado dos seus homens, tiveram também de esforçar-se o mesmo ou mais do que eles, que a vida, durante muitos milénios, não estava para a senhora ficar em casa, de perna estendida, qual rainha das abelhas, sem outra obrigação que a de desovar de tempos a tempos, não fosse ficar o mundo deserto e depois não ter Deus em quem mandar.

Se, porém, o dito Deus, não fazendo caso de recomendações e conselhos, persistisse no propósito de vir até aqui, sem dúvida acabaria por reconhecer como, afinal, é tão pouca coisa ser-se um Deus, quando, apesar dos famosos atributos de omnisciência e omnipotência, mil vezes exaltados em todas as línguas e dialectos, foram cometidos, no projecto da criação da humanidade, tantos e tão grosseiros erros de previsão, como foi aquele, a todas as luzes imperdoável, de apetrechar as pessoas com glândulas sudoríparas, para depois lhes recusar o trabalho que as faria funcionar -  as glândulas e as pessoas. Ao pé disto, cabe perguntar se não teria merecido mais prémio que castigo a puríssima inocência que levou a nossa primeira mãe e o nosso primeiro pai a provarem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. A verdade, digam o que disserem autoridades, tanto as teológicas como as outras, civis e militares, é que, propriamente falando, não o chegaram a comer, só o morderam, por isso estamos nós como estamos, sabendo tanto do mal, e do bem tão pouco.

Envergonhar-se e arrepender-se dos erros cometidos é o que se espera de qualquer pessoa bem nascida e de sólida formação moral, e Deus, tendo indiscutivelmente nascido de Si mesmo, está claro que nasceu do melhor que havia no seu tempo. Por estas razões, as de origem e as adquiridas, após ter visto e percebido o que aqui se passa, não teve mais remédio que clamar mea culpa, mea maxima culpa, e reconhecer a excessiva dimensão dos enganos em que tinha caído. É certo que, a seu crédito, e para que isto não seja só um contínuo dizer mal do Criador, subsiste o facto irrespondível de que, quando Deus se decidiu a expulsar do paraíso terreal, por desobediência, o nosso primeiro pai e a nossa primeira mãe, eles, apesar da imprudente falta, iriam ter ao seu dispor a terra toda, para nela suarem e trabalharem à vontade. Contudo, e por desgraça, um outro erro nas previsões divinas não demoraria a manifestar-se, e esse muito mais grave do que tudo quanto até aí havia acontecido.

Foi o caso que estando já a terra assaz povoada de filhos, filhos de filhos e filhos de netos da nossa primeira mãe e do nosso primeiro pai, uns quantos desses, esquecidos de que sendo a morte de todos, a vida também o deveria ser, puseram-se a traçar uns riscos no chão, a espetar umas estacas, a levantar uns muros de pedra, depois do que anunciaram que, a partir desse momento, estava proibida (palavra nova) a entrada nos terrenos que assim ficavam delimitados, sob pena de um castigo, que segundo os tempos e os costumes, poderia vir a ser de morte, ou de prisão, ou de multa, ou novamente de morte. Sem que até hoje se tivesse sabido porquê, e não falta quem afirme que disto não poderão ser atiradas as responsabilidades para as costas de Deus, aqueles nossos antigos parentes que por ali andavam, tendo presenciado a espoliação e escutado o inaudito aviso, não só não protestaram contra o abuso com que fora tornado particular o que até então havia sido de todos, como acreditaram que era essa a irrefragável ordem natural das coisas de que se tinha começado a falar por aquelas alturas. Diziam eles que se o cordeiro veio ao mundo para ser comido pelo lobo, conforme se podia concluir da simples verificação dos factos da vida pastoril, então é porque a natureza quer que haja servos e haja senhores, que estes mandem e aqueles obedeçam, e que tudo quanto assim não for será chamado subversão.

Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas estas mulheres, de todas estas crianças (sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra, assim lhes fora mandado), cujo suor não nascia do trabalho que não tinham, mas da agonia insuportável de não o ter, Deus arrependeu-se dos males que havia feito e permitido, a um ponto tal que, num arrebato de contrição, quis mudar o seu nome para um outro mais humano. Falando à multidão, anunciou: “A partir de hoje chamar-me-eis Justiça.” E a multidão respondeu-lhe: “Justiça, já nós a temos, e não nos atende. Disse Deus: “Sendo assim, tomarei o nome de Direito.” E a multidão tornou a responder-lhe: “Direito, já nós o temos, e não nos conhece." E Deus: "Nesse caso, ficarei com o nome de Caridade, que é um nome bonito.” Disse a multidão: “Não necessitamos caridade, o que queremos é uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos respeite.” Então, Deus compreendeu que nunca tivera, verdadeiramente, no mundo que julgara ser seu, o lugar de majestade que havia imaginado, que tudo fora, afinal, uma ilusão, que também ele tinha sido vítima de enganos, como aqueles de que se estavam queixando as mulheres, os homens e as crianças, e, humilhado, retirou-se para a eternidade. A penúltima imagem que ainda viu foi a de espingardas apontadas à multidão, o penúltimo som que ainda ouviu foi o dos disparos, mas na última imagem já havia corpos caídos sangrando, e o último som estava cheio de gritos e de lágrimas.

No dia 17 de Abril de 1996, no estado brasileiro do Pará, perto de uma povoação chamada Eldorado dos Carajás (Eldorado: como pode ser sarcástico o destino de certas palavras...), 155 soldados da polícia militarizada, armados de espingardas e metralhadoras, abriram fogo contra uma manifestação de camponeses que bloqueavam a estrada em acção de protesto pelo atraso dos procedimentos legais de expropriação de terras, como parte do esboço ou simulacro de uma suposta reforma agrária na qual, entre avanços mínimos e dramáticos recuos, se gastaram já cinqüenta anos, sem que alguma vez tivesse sido dada suficiente satisfação aos gravíssimos problemas de subsistência (seria mais rigoroso dizer sobrevivência) dos trabalhadores do campo. Naquele dia, no chão de Eldorado dos Carajás ficaram 19 mortos, além de umas quantas dezenas de pessoas feridas. Passados três meses sobre este sangrento acontecimento, a polícia do estado do Pará, arvorando-se a si mesma em juiz numa causa em que, obviamente, só poderia ser a parte acusada, veio a público declarar inocentes de qualquer culpa os seus 155 soldados, alegando que tinham agido em legítima defesa, e, como se isto lhe parecesse pouco, reclamou processamento judicial contra três dos camponeses, por desacato, lesões e detenção ilegal de armas. O arsenal bélico dos manifestantes era constituído por três pistolas, pedras e instrumentos de lavoura mais ou menos manejáveis. Demasiado sabemos que, muito antes da invenção das primeiras armas de fogo, já as pedras, as foices e os chuços haviam sido considerados ilegais nas mãos daqueles que, obrigados pela necessidade a reclamar pão para comer e terra para trabalhar, encontraram pela frente a polícia militarizada do tempo, armada de espadas, lanças e alabardas. Ao contrário do que geralmente se pretende fazer acreditar, não há nada mais fácil de compreender que a história do mundo, que muita gente ilustrada ainda teima em afirmar ser complicada demais para o entendimento rude do povo.

Pelas três horas da madrugada do dia 9 de Agosto de 1995, em Corumbiara, no estado de Rondônia, 600 famílias de camponeses sem terra, que se encontravam acampadas na Fazenda Santa Elina, foram atacadas por tropas da polícia militarizada. Durante o cerco, que durou todo o resto da noite, os camponeses resistiram com espingardas de caça. Quando amanheceu, a polícia, fardada e encapuçada, de cara pintada de preto, e com o apoio de grupos de assassinos profissionais a soldo de um latifundiário da região, invadiu o acampamento. varrendo-o a tiro, derrubando e incendiando as barracas onde os sem-terra viviam. Foram mortos 10 camponeses, entre eles uma menina de 7 anos, atingida pelas costas quando fugia. Dois polícias morreram também na luta.

A superfície do Brasil, incluindo lagos, rios e montanhas, é de 850 milhões de hectares. Mais ou menos metade desta superfície, uns 400 milhões de hectares, é geralmente considerada apropriada ao uso e ao desenvolvimento agrícolas. Ora, actualmente, apenas 60 milhões desses hectares estão a ser utilizados na cultura regular de grãos. O restante, salvo as áreas que têm vindo a ser ocupadas por explorações de pecuária extensiva (que, ao contrário do que um primeiro e apressado exame possa levar a pensar, significam, na realidade, um aproveitamento insuficiente da terra), encontra-se em estado de improdutividade, de abandono. sem fruto.

Povoando dramaticamente esta paisagem e esta realidade social e económica, vagando entre o sonho e o desespero, existem 4 800 000 famílias de rurais sem terras. A terra está ali, diante dos olhos e dos braços, uma imensa metade de um país imenso, mas aquela gente (quantas pessoas ao todo? 15 milhões? mais ainda?) não pode lá entrar para trabalhar, para viver com a dignidade simples que só o trabalho pode conferir, porque os voracíssimos descendentes daqueles homens que primeiro haviam dito: “Esta terra é minha”, e encontraram semelhantes seus bastante ingénuos para acreditar que era suficiente tê-lo dito, esses rodearam a terra de leis que os protegem, de polícias que os guardam, de governos que os representam e defendem, de pistoleiros pagos para matar. Os 19 mortos de Eldorado dos Carajás e os 10 de Corumbiara foram apenas a última gota de sangue do longo calvário que tem sido a perseguição sofrida pelos trabalhadores do campo, uma perseguição contínua, sistemática, desapiedada, que, só entre 1964 e 1995, causou 1 635 vítimas mortais, cobrindo de luto a miséria dos camponeses de todos os estados do Brasil. com mais evidência para Bahia, Maranhão. Mato Grosso, Pará e Pernambuco, que contam, só eles, mais de mil assassinados.

E a Reforma Agrária, a reforma da terra brasileira aproveitável, em laboriosa e acidentada gestação, alternando as esperanças e os desânimos, desde que a Constituição de 1946, na seqüência do movimento de redemocratização que varreu o Brasil depois da Segunda Guerra Mundial, acolheu o preceito do interesse social como fundamento para a desapropriação de terras? Em que ponto se encontra hoje essa maravilha humanitária que haveria de assombrar o mundo, essa obra de taumaturgos tantas vezes prometida, essa bandeira de eleições, essa negaça de votos, esse engano de desesperados? Sem ir mais longe que as quatro últimas presidências da República, será suficiente relembrar que o presidente José Sarney prometeu assentar 1.400.000 famílias de trabalhadores rurais e que, decorridos os cinco anos do seu mandato, nem sequer 140.000 tinham sido instaladas; será suficiente recordar que o presidente Fernando Collor de Mello fez a promessa de assentar 500.000 famílias, e nem uma só o foi; será suficiente lembrar que o presidente Itamar Franco garantiu que faria assentar 100.000 famílias, e só ficou por 20.000; será suficiente dizer, enfim, que o actual presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, estabeleceu que a Reforma Agrária irá contemplar 280.000 famílias em quatro anos, o que significará, se tão modesto objectivo for cumprido e o mesmo programa se repetir no futuro, que irão ser necessários, segundo uma operação aritmética elementar, setenta anos para assentar os quase 5.000.000 de famílias de trabalhadores rurais que precisam de terra e não a têm, terra que para eles é condição de vida, vida que já não poderá esperar mais. Entretanto, a polícia absolve-se a si mesma e condena aqueles a quem assassinou.

O Cristo do Corcovado desapareceu, levou-o Deus quando se retirou para a eternidade, porque não tinha servido de nada pô-lo ali. Agora, no lugar dele, fala-se em colocar quatro enormes painéis virados às quatro direcções do Brasil e do mundo, e todos, em grandes letras, dizendo o mesmo: 
UM DIREITO QUE RESPEITE, UMA JUSTIÇA QUE CUMPRA."

José Saramago