Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

"Uma festa para Saramago" no "Público" - notícia recuperada de 26/02/2000 (por Carlos Câmara Leme)

A crónica do "Público" pode ser consultada e recuperada, aqui
em https://www.publico.pt/2000/02/26/jornal/uma-festa-para-saramago-140578

"Uma festa para Saramago" de Carlos Câmara Leme (26/02/2000)

Capa da edição - Colóquio Letras #151/152 - "José Saramago: O Ano de 1998"


"Pela primeira vez, um número da "Colóquio/Letras" é dedicado a um autor vivo. O volume sobre José Saramago é uma festa para os olhos e para o espírito.

1. Agosto de 1996. Quando soube que a Universidade de Massachusetts, Amherst, EUA, iria realizar o I Colóquio Internacional sobre a sua obra, José Saramago causticamente afirmou: "É, de facto, uma ironia que vem confirmar mais uma vez algo que já é muito antigo, ou seja que o nosso mundo universitário na nossa querida terra não presta muita atenção aos escritores vivos."Ao fim de dois dias de colóquio, e dois anos antes da atribuição do Nobel, depois de ouvir duas dezenas de comunicações na sua maior parte oriundas de universitários portugueses, o escritor emendou a mão e confessou: "Um bombardeamento destes nunca me tinha acontecido. Afinal, ando a fazer muito mais coisas do que aquelas que julgava andar a fazer." (ver PÚBLICO de 22/9/1998.) 

2. Fevereiro de 2000. A revista "Colóquio/Letras", com coordenação científica de Maria Alzira de Seixo, lançava um número duplo, um volumoso tijolo de 500 páginas que, sob o título "José Saramago: o Ano de 1998", é o primeiro tomo da publicação editada pela Fundação Calouste Gulbenkian dedicado a um escritor português vivo. Se é certo que, após a atribuição do Nobel da Literatura o interesse em torno da sua obra cresceu, a primeira constatação digna de registo é clara: o mundo universitário português, afinal, não só presta atenção aos seus escritores vivos como, no caso em apreço, a bagagem ensaística saramaguiana está de boa saúde e recomenda-se. Saramago não tem razões para se queixar. Justiça seja feita: no dia do lançamento (ver PÚBLICO de 18/2/2000), o romancista não se fez rogado e, à imagem das palavras que pronunciou em Estocolmo, reconheceu que não tinha nascido para ter direito a este número da "Colóquio/Letras". Não é verdade. Tem - como outros romancistas vivos (de Agustina Bessa-Luís a António Lobo Antunes) ou que desapareceram recentemente (José Cardoso Pires é, de todos, o caso mais gritante!!!). Mas isso é outra história...

3. Fevereiro de 1997. Durante a longa conserva que manteve com Carlos Reis em Lanzarote ("Diálogos com José Saramago", ed. Caminho), o entrevistado a certa altura afirma: "Leituras que tivessem levado directamente àquilo a que estamos a chamar 'o meu estilo', não há. E sobretudo se tivermos em conta as condições em que ele nasceu, ele é tudo menos premeditado. Agora, o que está claríssimo é que ele não pode nascer do nada, embora seja curioso que, mesmo em textos antigos (...) se é certo que o estilo não é tão claramente aquilo que veio a ser depois, em todo o caso já se anuncia aí uma certa vibração, uma espécie de necessidade de não ocupar só o espaço em que está, de se abrir e de abranger o que está ao lado." E remata: "Só que graficamente isso não é imediatamente visível."Pois bem, agora já o é. Este dado é, sem dúvida, a primeira grande qualidade deste número da "Colóquio/Letras". A partir de agora há um marco incontornável - do teatro à poesia, desta à crónica, do romance ao conto ou ao diário - para se estudar e aprofundar a obra de Saramago. Cada núcleo destes dava para uma recensão crítica... 

4. Tendo-se estreado em 1947 com "Terra do Pecado", é pela via da poesia que o nome e a obra de Saramago começam por se afirmar, primeiro com "Poemas Possíveis" (1966), depois com "Provavelmente Alegria" (1970), o primeiro porto de reflexão da revista. Reflexão que revela que, mais tarde, quando Saramago apostou definitivamente no romance, a veia poética foi absolutamente decisiva (ao contrário do que o próprio escritor várias vezes desvalorizou). Num e noutro livro, nota Maria de Lourdes Cidraes, "o poder das palavras e a dificuldade em conhecer o seu peso exacto, o rigor de uma temporalidade inelutável e o breve fulgor do instante, a urgência do amor, a pouquidade do existir e o sem sentido da vida" são obsessões que perpassarão e enformarão a obra posterior de Saramago. O que também acontece com as técnicas literárias da crónica, onde Isabel Moutinho encontra - num dos textos mais interessantes do volume - pistas para uma das questões centrais que paira ao longo dos múltiplos ensaios do volume: a pós-modernidade, ou não, da escrita do autor de "O Ano da Morte de Ricardo Reis". Se é um dado adquirido que romances como "Ensaio sobre a Cegueira" ou "Todos os Nomes" são, em sentido literal, romances pós-modernos (cf. os artigos de Douwe Fokkema, Wladimir Krysinski, Jean Bessière ou Isabel Pires de Lima), os denominados históricos - a começar por "Levantado do Chão" até "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" - prenunciam, se é que já não são, obras de pendor pós-moderno. Os textos mais significativos, e incontornáveis a este respeito, são de dois especialistas saramaguianos: Horácio Costa e Teresa Cristina Cerdeira da Silva (ambos de leitura obrigatória).Peça igualmente importante para esta questão é a separata do caderno que esteve na origem de "A Jangada de Pedra", magnificamente iluminada por Alzira Seixo: porque se por um lado dá a conhecer o laborioso e difícil trabalho da oficina do escritor, por outro, revela a consciência que o romancista tem das dominantes paródica e desconstrutiva da História que a atravessam, as quais, como é sabido, constituem elementos cruciais da mundivência pós-moderna.

5. No lançamento da revista, a coordenadora classificou-o "como uma festa da literatura". Aos contributos ensaísticos propriamente ditos - a que faltam talvez nomes como os de Eduardo Lourenço, Vítor Aguiar e Silva ou Óscar Lopes... - esta "Colóquio/Letras" é uma festa para os olhos. As ilustrações especialmente encomendadas a Bartolomeu Cid dos Santos são belíssimas, assim como as fotografias de Lisboa, de Mariano Piçarra. Os documentos, alguns deles inéditos, como é o conto "Natal", o texto que (quem saberia?) Saramago escreveu para o jornal do Sport Lisboa e Benfica (!) e, o divertíssimo conta-corrente de imagens e "flashes" de Pilar del Río, à volta dos dias estonteantes aquando da entrega do Nobel da Literatura, fazem desta "Colóquio/Letras" um marco histórico na vida literária portuguesa.Para ler. Para pensar. Para ver. E, certamente, para mais tarde recordar..."

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