José Saramago.
Uma visão apaixonada, sobre o homem que da Estátua descobriu a Pedra.
Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"
"Escrevo entre as 12 da noite e as 12 da note. A Península já passou em 1995, aqui ainda nos restam vinte minutos de 1994 para viver. Em Canárias não fazemos as coisas por menos: necessitamos vinte e quatro badaladas para passar de um ano para o outro. Os amigos que vieram de Portugal e Espanha olham desconfiados os relógios, por pouco dirão que não sabem onde se encontram. De um deles, Javier Ryoio, sociólogo e escritor, sei eu que dormiu há dez anos no Hotel Bragança, de Lisboa, na cama que foi de Ricardo Reis, O tempo é uma tira de elástico que estica e encolhe. Estar perto ou longe, lá ou cá, só depende da vontade. Na Península já se apagaram os fogos-de-artifício. Anoite de Lanzarote é cálida, tranquila. Ninguém mais no mundo quer esta paz?»
Cadernos de Lanzarote - Diário II
Caminho, página 268
"Um dia escrevi que tudo é autobiografia; que a vida de cada um de nós estamos contando enquanto fazemos e dizemos; nos gestos, na maneira como andamos e olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objecto no chão. Queria eu dizer, então, que vivendo rodeado de sinais, nós próprios somos um sistema de sinais. Seja como for, que os leitores se tranquilizem: este Narciso que hoje se contempla na água, desfará, amanhã, com sua própria mão, a imagem que o contempla". - José Saramago
Difícil dizer qual dos dois é mais lindo, José Saramago ou sua companheira e fiel escudeira, a jornalista espanhola a jornalista Pilar Del Río.
Miguel Gonçalves Mendes dirige o filme a partir da coleta de 240 horas de material sobre o cotidiano de José e Pilar que, portanto, são os próprios atores de seus personagens.
O filme se desenvolve em torno da criação e lançamento do livro "A Viagem do Elefante", de Saramago.
Os quatro anos de filmagens resultaram em um filme inicial com 6 horas de duração, das quais Saramago pode assistir a uma versão com 3 horas, antes de morrer.
A edição do filme durou mais de um ano e meio.
Para convencer o casal a filmar, o diretor Miguel Gonçalves Mendes levou 6 meses.
O resultado é um filme surpreendente onde somos levados ao dinâmico e cultural universo de Saramago e Pilar, nos deparando com um relacionamento belíssimo de dois seres que fazem jus ao adjetivo "humanos".
Saramago, o comunista ateu que quando o vestiam com roupa de marca, pedia que arrancassem com a tesoura a etiqueta da Armani, nos presenteia com passagens belíssimas de sua vida, já perto dos 84 anos de idade, sempre ativa e produtiva.
Destaque para suas declarações sobre religião,após a leitura de um trecho de seu livro "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", onde Jesus clama, sobre seu pai "Homens, perdoai-lhe, por que ele não sabe o que faz": "É uma aldrabice, pá, uma aldrabice completa... Eu fui uma ou duas vezes à missa, quando tinha 6 anos, mas eu não... Enfim, aquilo não me convenceu nada, pá. E fui eu quem disse a minha mãe: 'não, eu não vou a isso...' E não fui... E Nunca mais... E não tive nenhuma crise religiosa, e não tenho medo da morte, não tenho medo inferno, não tenho medo, digamos, do castigo eterno pelos pecados... Que pecados? Pecados? O que é isso, o pecado, pá? Quem é que inventou o pecado? A partir do momento em que se inventa o pecado, o inventor passa a dispor de um instrumento de domínio sobre o outro, tremendo! E foi o que a igreja fez, e já não faz tanto, porque, coitados, já não têm nem metade do poder que tinham, é mais uma farsa, mais uma farsa trágica... Deus... Onde está? Antigamente, dizia-se: 'está no céu'. Mas, o céu não existe! Não há céu! Não há céu! O que é isso, pá, céu? Há o espaço. Há 13 mil milhões de anos-luz. Imagina, pá...
Os limites do universo se encontra há 13 mil e 700 milhões de anos-luz... Anos-luz! Onde está deus? Quem quiser crer, creia e acabou-se! Eu digo em alto e bom som, que não, enfim, para mim, não. E repara que com 83 anos já seria uma boa altura para começar a pensar no futuro, quer dizer, uma pessoa, durante a vida, pode fazer umas quantas tonterias, dizer umas quantas barbaridades a respeito do senhor deus, mas quando chega aos 83 tem de, deveria começara a ter um bocadinho de cuidado com o que diz. Mas isso não muda nada a realidade. A realidade continua a ser igual a de sempre: nascer, viver e morrer, e acabou. Mais nada. Que isso não aconteça. Espero morrer lúcido e de olhos abertos. Pelo menos gostaria, que fosse assim".
A força e o carácter de Pilar, se reflectem bem no trecho do filme em que ela declara:
"A mim o que me parece é que a razão tem que prevalecer sobre a vontade. Isso parece o que há de mais frio e o que há de mais forte que se pode dizer, mas creio que somos racionais, e temos a obrigação de ser racionais e de não nos deixar levar, jamais, pelo instinto. Ou seja, recuso-me, recuso-me a chorar e a ficar insatisfeita e deprimida. "Ah, mas é que a depressão existe..." Sim, pois sim, mas tomamos uns comprimidos e vamos trabalhar, ponto! Sou a favor dos fármacos. Ouve, uma vida inteira sofrendo com dores quando há a Medicina, que nos ajuda, e vêm agora uns quantos gurus dizer: "Não... É que fazem mal!" Não, o que faz mal é passar mal! É preciso desdramatizar! Sobretudo nós, os privilegiados... Eu não posso estar e não posso me dar ao luxo de estar desesperada, nem sem esperança, nem triste, porque tenho tudo, e mais, tenho, inclusive, a força para combater, o que é o maior privilégio!"
Será que as palavras de ontem perderam o seu significado?
José Saramago dizia que o peso e significado de palavras ou conceitos, podem perder/ganhar dimensão ou alterar o seu valor substancial ao longo dos tempos. Por exemplo, a palavra "justiça" praticada pelo Tribunal do Santo Ofício na Idade Média, encerrou em si um valor diferente de aplicabilidade da "justiça" e do seu conceito geral, muito diferente do que é praticada em outras épocas, anteriores e posteriores, claro está.
A palavra, enquanto instituição formal manteve-se a mesma, o conceito evoluiu.
Mas da imutabilidade ou evolução das palavras e dos conceitos, podemos também verificar, que o outrora desejado, nos dias de hoje, mantém a mesma urgência na realização e concretização.
A Fundação José Saramago, imortalizou os votos de "Bom 2013", através das palavras do 1.º Visconde de Almeida Garrett, que foram publicadas no romance "Viagens na Minha Terra" (1846), onde, este questionava a justeza (leia-se justiça) dos actos praticados pelos senhores poderosos de então, ao condenar o povo a uma espécie de escravatura, miséria e decadência social. São palavras escritas há quase 2 séculos, num Portugal feudal e senhorial, que tardava a descobrir os tempos das "luzes".
Em finais de 2014, a Fundação José Saramago, sente a necessidade de agigantar valores profundamente esquecidos e desvalorizados por um povo cansado, que não se consegue libertar da profunda agonia social em se deixou mergulhar, e que, ao mesmo tempo desespera pela chegada de norte, uma via diferente, um caminho mais iluminado.
Na declaração de "Princípios", assinada pelo punho de José Saramago (29/06/2007), ficaram imortalizadas estas palavras:
«Que todas as acções da Fundação José Saramago sejam orientadas à luz deste documento que, embora longe da perfeição, é, ainda assim, para quem se decidir a aplicá-lo nas diversas práticas e necessidades da vida, como uma bússola, a qual, mesmo não sabendo traçar o caminho, sempre aponta o Norte.»
O "morrer de cegueira", em contraponto com o "Bom e lúcido".
O "não usa a razão para viver", em confronto com "como uma bússola (...) sempre aponta o Norte".