Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 23 de abril de 2015

"Histórias da Emigração" em "O Caderno 2"... tão actual em 2015 como em 2009

Barco com emigrantes à chegada da ilha de Lampedusa (2011) 
Fotografia: Ettore Ferrari/EPA

No seu livro/blog, "O Caderno 2", José Saramago escreveu este texto, hoje tão actual como cruel, na expressão mais severa que o ser humano, na sua condição de sobrevivência pode sofrer. Fugir da morte para morrer. 
Os cartéis e máfias, que a troco de fortunas, obrigam os que pretendendo escapar do "inferno local", desfazem-se dos seus poucos haveres e compram, literalmente, uma ida para outro inferno.
O Mediterrâneo é um mar de morte e de corpos afogados.
Neste momento, a comunicação social ocidental e os políticos da UE, retratam e abordam este flagelo com a leviandade da coisa natural que acontece com gente de outra condição de existência.
Os que ficam na sua terra natal, que sem nada para poder vender não chegam a poder adquirir um destes bilhetes trágicos, ficam entregues às sortes da morte. Os que embarcam, em barcos super lotados e de uma fragilidade assustadora, são enviados ao engano que a morte, quase certa, os bafejará. 

Pode ser lido aqui,

"Histórias da emigração"
"Que atire a primeira pedra quem nunca teve nódoas de emigração a manchar-lhe a árvore genealógica… Tal como na fábula do lobo mau que acusava o inocente cordeirinho de lhe turvar a água do regato onde ambos bebiam, se tu não emigraste, emigrou o teu pai, e se o teu pai não precisou de mudar de sítio foi porque o teu avô, antes dele, não teve outro remédio que ir, de vida às costas, à procura do pão que a sua terra lhe negava. Muitos portugueses morreram afogados no rio Bidassoa quando, noite escura, tentavam alcançar a nado a margem de lá, onde se dizia que o paraíso de França começava. Centenas de milhares de portugueses tiveram de submeter-se, na chamada culta e civilizada Europa de além-Pirinéus, a condições de trabalho infames e a salários indignos. Os que conseguiram suportar as violências de sempre e as novas privações, os sobreviventes, desorientados no meio de sociedades que os desprezavam e humilhavam, perdidos em línguas que não podiam entender, foram a pouco e pouco construindo, com renúncias e sacrifícios quase heróicos, moeda a moeda, centavo a centavo, o futuro dos seus descendentes. Alguns desses homens, algumas dessas mulheres, não perderam nem querem perder a memória do tempo em que tiveram de padecer todos os vexames do trabalho mal pago e todas as amarguras do isolamento social. Graças lhes sejam dadas por terem sido capazes de preservar o respeito que deviam ao seu passado. Outros muitos, a maioria, cortaram as pontes que os ligavam àquelas horas sombrias, envergonham-se de terem sido ignorantes, pobres, às vezes miseráveis, comportam-se, enfim, como se uma vida decente, para eles, só tivesse começado verdadeiramente no dia felicíssimo em que puderam comprar o seu primeiro automóvel. Esses são os que estarão sempre prontos a tratar com idêntica crueldade e idêntico desprezo os emigrantes que atravessam esse outro Bidassoa, mais largo e mais fundo, que é o Mediterrâneo, onde os afogados abundam e servem de pasto aos peixes, se a maré e o vento não preferiram empurrá-los para a praia, enquanto a guarda civil não aparece para levantar os cadáveres. Os sobreviventes dos novos naufrágios, os que puseram pé em terra e não foram expulsos, terão à sua espera o eterno calvário da exploração, da intolerância, do racismo, do ódio à pele, da suspeita, do rebaixamento moral. Aquele que antes havia sido explorado e perdeu a memória de o ter sido, explorará. Aquele que foi desprezado e finge tê-lo esquecido, refinará o seu próprio desprezar. Aquele a quem ontem rebaixaram, rebaixará hoje com mais rancor. E ei-los, todos juntos, a atirar pedras a quem chega à margem de cá do Bidassoa, como se nunca tivessem eles emigrado, ou os pais, ou os avós, como se nunca tivessem sofrido de fome e de desespero, de angústia e de medo. Em verdade, em verdade vos digo, há certas maneiras de ser feliz que são simplesmente odiosas." (17 de Julho de 2009)

Blimunda #35 - Abril 2015 - Revista Digital para descarregar gratuitamente

Capa da edição de Abril (#35)

Link para aceder à edição e descarregar gratuitamente,

Sinopse via Fundação José Saramago

"Precisamente três anos depois do arranque da revista da Fundação José Saramago, a 23 de abril de 2012, e para assinalar o Dia Mundial do Livro, é hoje publicada a edição # 35 da Blimunda.

Neste mês de abril, as perdas impõe-se e é preciso falar delas. O editorial da revista é dedicado a esses finais que são começos, como afirmou uma vez vez Eduardo Galeano, um dos grandes que partiu nos últimos dias e que nos deixará muitas saudades. Nas Leituras do Mês, Gunter Grass, Manoel de Oliveira, Galeano, François Maspero e Herberto Helder são recordados, publicando-se também deste último um conjunto de poemas escolhidos por Manuel Gusmão, Gustavo Rubim, Rita Taborda Duarte, Manuel Frias Martins e Manuel Alberto Valente.

Mas há muito mais nesta edição 35 da revista. 
A Blimunda esteve no Festival Rota das Letras, em Macau, e trouxe de lá uma conversa com Murong Xuecun, que nos conta como é ser um escritor na China dos dias de hoje. Viajámos também até Aveiro para acompanhar a The Child and Book Conference, este ano dedicado à análise de temas fracturantes neste género literário.

Em Lisboa, vimos e ouvimos a 13ª edição da Festa do Jazz do São Luiz, num dossier que inclui uma entrevista com o músico Carlos Martins, director artístico da Festa, e um texto do músico Matt Pavolka que, em 2008 actuou no São Luiz apresentando um tema composto a partir da última frase do primeiro capítulo de Ensaio sobre a Cegueira.

A propósito do centenário da revista Orpheu, esse acontecimento marcante para a arte e para a literatura do século XX, a Blimunda reproduz algumas páginas do número 3 da publicação, que nunca chegou a ser impresso.

Recuperamos também um texto de Pilar del Río, escrito no ano 2000, que fala sobre o modo como Sebastião Salgado vê e retrata o mundo.

Por fim, mas não menos importante, a secção Saramaguiana publica as palavras de Ondjaki e Adriana Lisboa ditas em Washington no mês passado, no tributo a José Saramago, integrado no Festival Iberian Suite.

Feliz Dia Mundial do Livro e boas leituras!"


(Editorial da edição)