Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 19 de novembro de 2016

Cartas aos avós "O meu avô, também" e "Carta para Josefa, minha avó" - publicadas no livro de crónicas "Deste mundo e do outro"

Crónica emoldurada e presenta na exposição permanente da
Fundação José Saramago

"O meu avô, também"

"Talvez o dia chuvoso seja o responsável desta melancolia. Somos uma máquina complicada, em que os fios do presente activo se enredam na teia do passado morto, e tudo isto se cruza e entrecruza de tal maneira, em laçadas e apertos, que há momentos em que a vida cai toda sobre nós e nos deixa perplexos, confusos, e subitamente amputados do futuro. Cai a chuva, o vento desmancha a compostura árida das árvores desfolhadas – e dos tempos passados vem uma imagem perdida, um homem alto e magro, velho, agora que se aproxima, por um carreiro alagado. Traz um cajado na mão, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente, caminham animais fatigados, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. Homem e bichos avançam sob a chuva. É uma imagem comum, sem beleza, terrivelmente anónima.
Mas o homem que assim se aproxima, vago, entre cordas de chuva que parecem diluir o que na memória não se perdeu, é meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de desconforto, de ignorância. E, contudo, é um homem sábio, calado e metido consigo, que só abre a boca para dizer as palavras importantes, aquelas que importam. Fala tão pouco (são poucas as palavras realmente importantes) que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende qualquer coisa como uma luz de aviso. Fora isso, tem um modo de estar sentado, olhando para longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede mais próxima, que chega a ser intimidade. Não sei que diálogo mudo o mantém alheado de nós. O seu rosto é talhado a enxó, fixo mas expressivo, e os olhos, pequenos e agudos, têm de vez em quando um brilho claro como se nesse momento alguma coisa tivesse sido definitivamente compreendida. Parece uma esfinge, direi eu mais tarde, quando as leituras eruditas me ajudarem nessas comparações tão abonatórias de uma fácil cultura. Hoje digo que parecia um homem.
E era um homem. Um homem igual a muitos desta terra, deste mundo, um homem sem oportunidades, talvez um Einstein perdido sob uma camada espessa de impossíveis, um filósofo (quem sabe?), um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria, que não pôde ser nunca. Recordo agora aquela noite morna de verão, que dormimos, nós dois, debaixo da figueira – ouço-o ainda falar da vida que tivera, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia (as coisas que ele sabia do céu e das estrelas), do gado que o conhecia, das histórias e lendas que eram o seu cabedal da infância remota. Adormecemos tarde, enrolados na manta lobeira, que a madrugada refrescaria com certeza e o orvalho não caía só sobre as plantas.
Mas a imagem que me não larga é a do velho que caminha sob a chuva, obstinado e silencioso, como quem cumpre um destino que nada pode modificar. A não ser a morte. Mas, nessa altura, este velho, que é meu avô, ainda não sabe como vai morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia vai ter a premonição (perdoa a palavra, Jerónimo) de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, dos frutos que não voltará a comer, das sombras amigas. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória o não fizer ressurgir no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a interrogação das estrelas. Só isto – e também o gesto que de repente me põe de pé e a urgência da ordem que enche o quarto aquecido onde escrevo."

José Saramago 
"Deste Mundo e do Outro: Crónicas" 
1985 (3.ª edição) Editorial Caminho, 29 a 31

Crónica emoldurada e presenta na exposição permanente da
Fundação José Saramago

"Carta para Josefa, minha avó"

“Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio começava a gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua cama, lume da tua lareira, – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz. 
Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos da rua, casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti a palavra Vietnam é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de palmo. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?). Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. Como tu não vi rir ninguém.
Estou diante de ti e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de sabes onde é o mundo. Chegaste ao fim da vida e o mundo é para ti o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior.
Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas e dezes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “o mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”
É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.”

José Saramago 
"Deste Mundo e do Outro: Crónicas" 
1985 (3.ª edição) Editorial Caminho, 27 e 28

José Saramago, in Deste Mundo e do Outro (1971)

Pilar del Río: «Hay una obra de teatro y varios cuentos inéditos de Saramago» ao "ABC" (Francisco Chacón - 16/11/2016)

A notícia pode ser recuperada e consultada, aqui

Publicado pelo "ABC" (Francisco Chacón - 16/11/2016)

"Pilar del Río recibe a ABC en su morada literaria de la Fundación Saramago, en la antesala de las mejores casas de fado de Lisboa. Allí desarrolla la necesaria divulgación de la obra del Premio Nobel portugués de cara a las nuevas generaciones, una labor que la ha acreditado para hacerse con el Premio Luso-Español de las Artes en su sexta edición.

El galardón, instituido por el Ministerio de Cultura en colaboración con la República portuguesa, se falla cada dos años y arrancó precisamente hace una década con una convocatoria en la que fue jurado el propio José Saramago.

Después de 24 años de vida en común con el autor de «La caverna» o «El evangelio según Jesucristo», Pilar del Río se acostumbró a la constancia de tender puentes entre Portugal y España. Y ahora esta distinción reconoce su esfuerzo.

«Este premio lo ha ganado él», asegura a este periódico al borde de las lágrimas, aunque muy contenta porque la distinción le llega justo en el 30 aniversario de la publicación original de «La balsa de piedra», que fabula sobre la unión ibérica e incluso su separación geográfica de Europa .

«Lo primero que pensé fue "hostia, José" y después me acordé de la casa-museo de Lanzarote [donde falleció el escritor en junio de 2010], que es un proyecto personal mío pero que me cuesta dinero porque es deficitario», relata quien se define como «la primera reivindicadora de su obra».

Pilar del Río preside la Fundación Saramago para «cumplir su mandato». Se desplaza en metro cada mañana para acudir a su despacho y mantener viva la antorcha de quien fue su compañero de viaje y marcó su existencia para siempre.

¿Quedan aún textos inéditos de don José por publicarse?, le preguntamos conscientes de que miles de lectores los aguardan como un maná literario. «Fernando Gómez Aguilera está investigando ese tema y sí, podemos decir que hay una obra de teatro y varios cuentos que todavía no han visto la luz».

En medio de la emoción del momento, le viene a la mente la lucidez de Saramago, omnipresente hoy como ayer: «Aquí, en esta fundación, lo que pretendemos no es otra cosa que construir un mundo mejor. Él nunca hablaba de revoluciones, decía que los cambios no pueden arrancar más que a partir de la responsabilidad individual. Decía también que si hay armas es porque permitimos que las haya, y si hay guerras es también porque lo permitimos. No se trata de gobiernos, se trata de la necesidad de asumir la responsabilidad individual».

De forma inminente, Pilar del Río tiene previsto ir a la Feria del Libro de Guadalajara (México) para presentar el teatro completo de José Saramago, recién publicado por Alfaguara."

"Paulo Coelho e Saramago são os mais traduzidos" via Público (de Luís Miguel Queirós, 15/11/2016)

A notícia (Jornal Público, em 15/11/2016 - Luís Miguel Queirós), pode ser recuperada e consultada, aqui em, https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/paulo-coelho-e-saramago-sao-os-mais-traduzidos-1751172

"O espanhol é a língua com mais traduções do português."

"Exposição com as traduções dos livros de José Saramago" 
Fotografia de RG Rui Gaudêncio

"Nas línguas para as quais mais se traduz, o português está em oitavo, e é a 18.ª língua mais traduzida para outros idiomas. Dados da UNESCO relativos ao período que vai de 1979 a 2015 permitiram ainda aos autores do Novo Atlas da Língua Portuguesa, que esta terça-feira é apresentado em Lisboa, incluir informação mais detalhada, como a lista das línguas e países para os quais o português é mais traduzidos, e ainda os autores lusófonos mais traduzidos no mundo.

O espanhol é a língua com mais traduções do português, seguido do inglês, do francês, do alemão e do italiano. Já o inglês é de longe a língua com mais traduções para português, numa lista cujos 7.º e 8.º lugar são ocupados pelo latim e pelo grego antigo.

No top five dos autores de língua portuguesa mais traduzidos, a maior surpresa é talvez a presença, em 5.º lugar, do teólogo Leonardo Boff, a grande figura da Teologia da Libertação no Brasil. A lista é encabeçada por outro brasileiro, o ficcionista Paulo Coelho, e seguem-se José Saramago, Jorge Amado e Fernando Pessoa.

Se olharmos para as línguas e países para os quais estes cinco autores são mais traduzidos, o que se afasta mais do padrão é Paulo Coelho. Em todos os casos, a língua de destino mais usual é o espanhol, mas enquanto nos outros quatro escritores, os dois lugares seguintes são ocupados por combinações de francês, inglês ou alemão, o autor de O Alquimista goza de particular sucesso em húngaro e sérvio. E se Saramago, Amado, Pessoa e Boff são muito traduzidos em Espanha e na Alemanha, a lista de Paulo Coelho é novamente a que menos tem a ver com as restantes: o país que mais o traduz é a Rússia, seguida da Suíça e da Croácia.

A lista dos dez autores lusófonos mais traduzidos completa-se com dois portugueses - Eça de Queirós e António Lobo Antunes - e três brasileiros: José Mauro de Vasconcelos, Clarice Lispector e Machado de Assis."

Nota Blog
Segundo a notícia, a obra de José Saramago tem 541 traduções em 38 línguas (espanhol, alemão, inglês, catalão e francês) de 50 países (Espanha, Alemanha, Noruega, França e Itália).